Revista Topus, 1ª edição, volume 1
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EFEITOS DE SENTIDO NAS REPRESENTAÇÕES DO ESPAÇO NO ROMANCE PONTE DO
GALO, DE DALCÍDIO JURANDIR
EFFECTS OF MEANING IN THE REPRESENTATIONS OF THE SPACE IN THE NOVEL PONTE
DO GALO, BY DALCIDIO JURANDIR
Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues (1)
Resumo: Este estudo analisa os efeitos de sentido nascidos dos procedimentos de espacialização no romance Ponte do Galo (1971), de Dalcídio Jurandir (1909-1979), partindo de um minucioso exame do espaço. Esse esquadrinhar revela as singulares relações entre personagens e espaços de circulação, além de nichos recônditos de vivências e de íntima experienciação. Daí a relevância de se estudar aspectos que emergem das origens pessoal, familiar e/ou cultural dos personagens. Pode-se afirmar que tais aspectos constituem traços a sugerir dimensões semânticas múltiplas, carregadas de valores humanos de natureza vária: simbólica, social, psicológica, existencial, religiosa e afetiva, entre outras. Procedendo assim, a leitura do texto passa a extrapolar a estreiteza da compreensão trivial e alcança um grau de maior complexidade, redimensionando a relação textoleitor, renovando-a a cada descoberta de um efeito de sentido advindo do processo de espacialização em Ponte do Galo – este sétimo livro da série de dez denominada de Ciclo do Extremo-Norte. E no âmbito desse livro, a pesquisa exigiu a aplicação de um método analíticointerpretativo a partir de uma perspectiva teórica multifacetada, apoiada em conceitos de autores de grande relevância no domínio do espaço como categoria da narrativa.
Palavras-chave: efeitos de sentido; espacialização; Ponte do Galo; Dalcídio Jurandir.
Abstract: This study analyzes the effects of meaning born of the procedures of spatialization in the novel Ponte do Galo (1971), by Dalcidio Jurandir (1909-1979), starting from the detailed examination of the space. This scanning reveals the unique relations among characters and spaces of movement, besides niches of living and of intimate experiencing. Hence, the relevance of studying aspects that emerge from the personal, familiar and/or cultural origins of the characters. One can affirm that these aspects constitute traits that suggest multiple semantic dimensions, charged of human values of varied nature: symbolic, social, psychological, existential, religious and affective, among other things. In doing so, the reading of the text pass to extrapolate the narrowness of the trivial comprehension and reaches a greater degree of complexity, resizing the relation text-reader, renovating it to each discovery of an effect of meaning arising of the process of spatialization in Ponte do Galo – seventh book of the series of ten denominated Extreme-North Cycle. And within of this book, the search required the application of an analytical-interpretative method, starting from a theoretical and multifaceted perspective, supported in concepts of authors of great relevance in the domain of the space as category of the narrative.
Keywords: effects of meaning; spacialization; Ponte do Galo; Dalcidio Jurandir.
1 Introdução
Pôr em evidência os efeitos de sentido nascidos dos procedimentos de espacialização2 adotados pelo narrador no romance Ponte do Galo (1971), do autor
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[1] Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras, área de concentração Estudos Literários, da Universidade Federal do Pará. E-mail: ay21a@yahoo.com.br.
[ 2 ] Osman Lins adota o termo ‘ambientação’. ‘Espacialização’, utilizado neste artigo, é adotado por Ozíris Borges Filho.
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[p. 39] paraense Dalcídio Jurandir (1909-1979), constitui o propósito fundamental deste estudo. Para isso, a pesquisa exigiu a aplicação de um método analítico-interpretativo a partir de uma perspectiva teórica multifacetada, apoiada em conceitos de autores de grande relevância no domínio do espaço como categoria da narrativa. Esses autores são: Iuri Lotman, Gaston Bachelard, Antonio Candido, Osman Lins, Mikhail Bakhtin, Michel Foucault, Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Michel de Certeau e Ozíris Borges Filho, entre outros pesquisadores respeitados. Destes, tiraremos proveito de conceitos como ‘modelização’, ‘oxímoro espacial’, ‘topofilia’, ‘ambientação’, ‘cronotopo’, ‘heterotopia’, ‘topoanálise’, ‘espacialização’, etc.
Cabe explicitar que tais conceitos, empregados aqui como ferramentas analíticointerpretativas, ora estarão implícitas ora explícitas; em todo caso, a partir do diálogo e do confronto entre as ideias desses estudiosos, esperamos ter dado ensejo a uma instigante reflexão no campo dos Estudos Literários. Contudo, antes de se partir para essa etapa do estudo, achou-se por bem, em decorrência do pouco conhecimento em geral sobre Dalcídio Jurandir e sua obra, apresentar uma minibiografia desse que é considerado por especialistas como o Romancista da Amazônia. Além disso, também se acrescenta uma sinopse do corpus de estudo. É o que se passa a fazer a partir deste ponto.
1.1 Breves informações sobre vida e obra de Dalcídio Jurandir
Dalcídio Jurandir nasceu em Ponta de Pedras, em 1909, batizado como Dalcídio Ramos Pereira. Em 1910, a família mudou-se para Cachoeira do Arari [3] , lugar onde o futuro romancista viveria até 1922, momento em que partiu para Belém, com o objetivo de dar continuidade aos estudos, que acabam por ficar incompletos. Mais tarde, em 1928, parte para o Rio de Janeiro, vivendo ali precariamente, mas não pôde se fixar, voltando a Belém. Por convicções políticas, foi preso duas vezes, em 1936 e 1937, quando participou do movimento da Aliança Nacional Libertadora e da campanha contra o fascismo, respectivamente. Foi vencedor de relevantes prêmios de literatura, entre estes o VecchiDom Casmurro, o Paula Brito, O Luísa Cláudio de Sousa, o Machado de Assis (da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra, 1972). Escreveu e publicou onze romances, dez deles compondo o Ciclo do Extremo-Norte, que são Chove nos campos de Cachoeira (1941), Marajó (1948), Três casas e um rio (1958), Linha do Parque (1959, este fora do Ciclo), Belém do Grão Pará (1960), Passagem dos Inocentes (1963),
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[ 3] Tanto Ponta de Pedras quanto Cachoeira do Arari são, atualmente, municípios localizados no arquipélago do Marajó.
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[p. 40] Primeira manhã (1967), Ponte do Galo (1971), Os habitantes, Chão dos Lobos (ambos de 1976) e Ribanceira (1978). Trabalhou como jornalista em muitos revistas e jornais, tanto no Pará quanto no Rio. Além de romancista, publicou poemas (4) em jornais e revistas no Pará, ainda na década de 1930. Também foi militante da esquerda na política nacional, filiando-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) − para o qual escreveu sob encomenda o romance proletário, já mencionado, Linha do Parque, vertido para o russo, com publicação em Moscou em 1961. Além dessa, outra 2ª edição sai apenas em 1974, com a edição portuguesa de Belém do Grão Pará. Dalcídio ainda viu saírem as segundas edições de Chove nos campos de Cachoeira e Marajó, em 1976 e 1978, respectivamente, além de Três casas e um rio, em 1979, edição esta que não teve a alegria de testemunhar. Doente de mal de Parkinson, faleceu em 16 de junho de 1979, no Rio de Janeiro, ainda com planos para continuar sua obra. Em 2008, a Secretaria de Cultura do Pará homenageou o romancista marajoara com a instituição do Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura. Vale ressaltar, todavia, que o autor paraense ainda vem sendo pouco lido, publicado ou divulgado, o que demonstra ser ele vítima de certo apagamento histórico que, urgentemente, precisa ser revertido.
1.2 O romance Ponte do Galo
A história do romance Ponte do Galo se passa no início da década de 1920 e divide-se em duas partes, às quais o autor não deu título. Na primeira (que vai da página 03 à 120), o personagem central Alfredo regressou de seus estudos na capital, Belém. Ele tem nesse momento 17 anos, já é um ginasiano da segunda série e retornou para Cachoeira com o intuito de passar as férias no chalé dos pais, o Major Alberto Coimbra, e dona Amélia, esta que se empenhou como pôde em realizar o sonho do filho de ir estudar na cidade grande. A princípio, não saía da saleta; porém, instigado pela mãe, põe-se a circular por Cachoeira e arredores, encontrando-se com outros personagens e vivenciando experiências novas, além de ficar relembrando fatos do passado, vividos tanto ali em Cachoeira quanto em Belém. Já na parte II (da página 121 à 175), Alfredo está em Belém, durante o período letivo, morando de favor na casa da José Pio, no bairro do Telégrafo, na periferia, onde vive a flanar em suas constantes buscas por Ana e Nini, netas de D. Santa, a parteira, e sobrinhas da costureira, D. Dudu. O personagem vive sua “deriva sem meta e
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[4] Em 2011, o pesquisador Paulo Nunes publica como organizador uma coletânea de poemas da lavra de Dalcídio Jurandir, denominado de Poemas impetuosos ou O tempo é o do sempre escoa. Cf. nas referências.
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[p. 41] sem fim”, procurando por Luciana, a desabençoada, a que “caíra na vida”. Um tanto frustrado com seus estudos, vive pensando em Cachoeira. De fato, sente-se um desterrado tanto em Belém quanto em Cachoeira.
1.3 Peculiaridades da espacialização em Ponte do Galo
As duas partes em que Ponte do Galo se divide caracterizam-se pela intersecção dos macroespaços de circulação e de vivência do personagem central Alfredo (mas não apenas dele, diga-se), este que inicia seu percurso espacial em Cachoeira, município do arquipélago do Marajó, na primeira parte do romance, partindo para Belém, capital do estado do Pará, já na segunda parte, fato já mencionado. Além dos macroespaços de Cachoeira e Belém, avultam outros espaços, os microespaços, de circulação e vivência não só de Alfredo, mas de muitos outros seres de papel (d. Amélia, major Alberto, tio Sebastião, Andreza, Salu, Dadá, Rodolfo, Didico, Sabá Manjerona, Dr. Lustosa, Edgar Menezes, entre outros personagens, em Cachoeira; d. Santa, d. Dudu, Cel. Delabençoe, Luciana, Ana e Nini, Zuzu, Esmeia, d. Brasiliana, entre outros personagens, em Belém). Esses microespaços são, em Cachoeira, os campos, a lagoinha, o cemitério, o rio, o mondongo, as ruas, o chalé, o pardieiro dos saraivas, a venda do Salu, o buraco da Sabá Manjerona, a delegacia, os barcos; em Belém, são o bairro do Telégrafo, a Ponte do Galo, o Igarapé das Almas, o Ver-o-Peso, o quintal da jaqueira, as ruas, a casa da Trav. José Pio, o ginásio, os bondes.
Contudo, como já se sabe – e isto é uma peculiaridade da escritura de Dalcídio Jurandir em todos os dez livros que compõem seu Ciclo do Extremo-Norte (do qual Ponte do Galo é o sétimo) −, ocorre que Alfredo “viaja” em pensamento, de Cachoeira para Belém e de Belém para Cachoeira. Assim, por estar desencantado com o espaço físico em que está, em seu percurso espacial topográfico de origem, o personagem transporta-se para outros espaços pelo intercurso da rememoração, levando seu leitor consigo nesse trajeto de geografia afetiva (consubstanciada pelas estratégias do narrador dalcidiano), em um processo que acaba por dar origem ao que se denomina de espaço psicológico, afinal, trata-se de um espaço que é um translato e um construto mental, produto de uma modelização secundária de mundo (LOTMAN, 1978, p. 55).
Não temos dúvida, no entanto, da indissociabilidade das categorias do tempo e do espaço, já que, nesse processo de construto narrativo de ambientação ou espacialização, há uma fusão do tempo e do espaço, constituindo o tempo um componente da [p. 42] quadridimensionalidade espacial, denominada de cronotopo (5) por Bakhtin. Um exemplo interessante pode ser dado no excerto abaixo:
Seguiu sob a chuva, não de Belém, chuvas de Cachoeira, as de outrora sobre o chalé, sobre a casa de seu Cristóvão, sobre Eutanázio andando. Também Rodolfo, com a chuva no telhado, redistribui pelas caixas de tipos o “Cachoeira Nova”, por falta de papel e logo vai compondo outro número e assim por diante até que chegue, ou nunca chegue a prometida bobina de papel, tão prometida pelo Dr. Lustosa (JURANDIR, Dalcídio. Ponte do Galo, 1971, p. 139).
Tudo porque o personagem se sente um desterrado. Então, o ginasiano não se ‘ambienta’ na sua Belém, onde sonhava ir para estudar, nem tampouco consegue estar em Cachoeira sem ‘viajar’ em pensamento até a Cidade das Mangueiras. Neste ponto, é bom que se perceba que o filho de dona Amélia não só intersecciona espaços, mas tempos também: “Este tempe, em Cachoeira, é apanha de tucumã e gogó” (JURANDIR, 1971, p. 138). Só que o “este tempe”, ao qual se refere o narrador, está registrado na mente de Alfredo como uma estação passada − as tais “chuvas de Cachoeira, as de outrora sobre o chalé” −, como recordações, assim como as recorrentes lembranças de sua infância, de Mariinha (sua irmãzinha, já morta), do tio Sebastião, de Andreza e de outros personagens, fundem tempo e espaço, numa perfeita representação do cronotopo.
Nota-se que Cachoeira se tornou, por vários motivos, um lugar de desencanto para o Alfredo menino, passando Belém a ocupar esse lugar de afetividade positiva para o personagem central. Mas, com o passar do tempo, o desencanto também por Belém já é uma realidade na mente do Alfredo rapaz. Então, conforme o contato com e a vivência (e a errância também) por esses macroespaços, o sentimento de topofilia aos poucos se transforma em topofobia. Quase se pode dizer, em termos arcádicos, que o locus amoenus se converte em locus horrendus.
Para o Alfredo menino, seu torrão natal representaria um interior sem recursos e infraestrutura, lugar de pobreza e de muita mortandade, principalmente a infantil (como no caso da irmã Mariinha), além de ser um lugar sem possibilidades de continuar seus estudos. Fugir dali poderia significar fugir de tudo isso, inclusive das lembranças do meio-irmão Eutanázio, morrendo agonizante na saleta da tipografia, mais por causa do menosprezo de da amada Irene que pela DST que contraíra. Fugir dali também seria fugir da apatia do pai, major Alberto, e do alcoolismo da mãe, d. Amélia, a quem Alfredo sempre foi muito ligado.
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[ 5] Para maior entendimento deste conceito, recomenda-se a leitura do livro Bakhtin e o cronotopo: reflexões, aplicações, perspectivas. Cf. nas referências.
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[p. 43] Belém seria a musa encantatória (FURTADO, 2010, p. 90) de Alfredo, se ele não fosse morar na periferia, nos covões, nas ruas lamacentas do subúrbio, já frustrado com um ensino ginasiano descontextualizado e inútil; por isso, sem sentido. Assim, não é de se admirar que tal situação evoque aqueles versos de Drummond do poema “Explicação”, de seu livro Alguma poesia (1930): “No elevador penso na roça, / na roça penso no elevador” (ANDRADE, 2007, p. 36-37). Portanto, Alfredo vive uma bitopia de desolação. Assim como na capital pensava em Cachoeira, o inverso também ocorria: “Ia pros campos, aterro, igarapé da Chácara, ‘arco-íris doutro lado, me leva para onde tudo não é isto’” (JURANDIR, 1971, p. 8).
2 Efeitos de sentido nas representações do espaço em Ponte do Galo
No estudo específico de uma narrativa literária, pôr em prática uma aguda análise do espaço requer a plena necessidade de esquadrinhá-lo minuciosamente, em busca da riqueza de sentidos advinda dos procedimentos de espacialização evidenciados no processo narrativo. Nas palavras de Borges Filho: “O topoanalista busca desvendar os mais diversos efeitos de sentido criados no espaço pelo narrador: psicológicos ou objetivos, sociais ou íntimos, etc.” (BORGES FILHO, 2007, p 33). Conforme tais orientações, a passagem abaixo passa a ser objeto inicial de análise:
Aqui, no Igarapé6 das Almas, contam, tinha, ou tem, uma corrente, moradia de caboclo, um caruana (7) debaixo, bem debaixo desta ponte. A ponte era se pôr em pé logo arriava, os engenheiros não atinando. Veio um de sessão e vidência, um maioral lá da Pedreira, que invoca o índio da pena real, pena verde da arara real, e pede uma audiência às autoridades. – Só-só com licença do caboclo, aí da corrente, aí no incanti, doutor. Um caboco morador aí do fundo, é devera. Fora disso, jamais que a ponte se aguenta, sem faltar o respeito à engenharia, estou dizendo aos senhores. Assim foi com o Forte do Castelo, olhe o bote tempo que já faz. O capitãomor, das barcas de Portugal, só pôde levantar o Forte com o consentimento do fundo.
[...] Vá lá, cederam as autoridades. Então o mestre invocou:
– Licença caboco, pra esta ponte ficar de pé?
E assim se aguenta a ponte por onde passa o bonde [d]o subúrbio da Pedreira, o São João, gente do Umarizal, Pinheiro, todos que moram na Ponte do Galo, e a parteira, às vezes a mãe Ciana, e Alfredo a pé para o liceu. Agora também as duas netas. [...] O igarapé se mete barriga adentro da cidade, voltando escuro-escuro, podre. [...] Este igarapé é das armas ou
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[6] “Pequeno rio, riacho, arroio. Etim. Do tupi igarapé, ou iarapé. Os eruditos fazem-na provir de igara, canoa, e pé, caminho, significando caminho de canoa. [...] Divergindo dessa opinião tenho o vocábulo como significando ‘caminho-d’água’”; [...] decompõe-se em ig-a-ra-pé: yg água, a eufônico, ra prefixo e pé caminho.” Extraído de: MIRANDA,1968, p. 43. Cf. nas referências.
[7] “Espécie de demônio familiar, de gênio benfazejo e serviçal invocado pelos pajés [...]”. Extraído também de MIRANDA,1968, p. 20. Cf. nas referências.
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[p. 44] das almas? Das armas, dizem os doutores. Das almas, diz mãe Ciana [...] (JURANDIR, 1971, p. 148-149).
Notória é a relação simbólica de espacialização vertical presente no trecho destacado. Apesar de a ponte ser um logradouro e um elo horizontal, logicamente, entre um logradouro e outro, interligando-os, sendo passagem, permitindo travessias, trânsito de personagens diversos, inclusive de Alfredo para o ginásio, embora tudo isso, a ponte simboliza o intermédio: entre o céu e a água do rio, a ponte; entre o céu católico e o fundo do rio, místico e umbandístico, a ponte. Não se deve esquecer o fato de que se trata da ponte do Igarapé das Almas, segundo o conhecimento popular, já que a versão erudita considera a palavra uma hipercorreção, já que seria a transformação de ‘armas’ em ‘almas’.
A passagem permite perceber o que Lotman nomeou de “[...] modelização de conceitos, que não têm em si uma natureza espacial” (LOTMAN, 1978, p. 360). Ou seja, atribuem-se culturalmente valores positivos ou negativos do tipo bom versus mau àquilo que está verticalmente ou horizontalmente posicionado em relação ao corpo humano, fato bastante comum na cultura ocidental. Por exemplo, palavras e expressões tais como ‘alto’ ou ‘em cima’ apresentam valores axiológicos relacionados ao que é bom ou superior, ao passo que ‘baixo’ ou ‘fundo’ ligam-se ao que é considerado como ruim ou inferior. Essas relações são compreendidas como geradoras de carga semântica positiva (+) ou negativa (–), a euforia e a disforia, respectivamente. Desse modo, o espaço que contorna, tridimensionalmente, o corpo humano comumente pode ser percebido por intermédio da análise de categorias visuais: em cima/embaixo, frente/atrás, direita/esquerda, centro/periferia, a cujos primeiros elementos dos pares se atribuem axiologias positivas.
No entanto, na passagem analisada, Jurandir modeliza em sua escritura um espaço com valores ‘invertidos’, pois a ponte planejada e construída “era se pôr em pé logo arriava”, como nos informa a instância narradora, modalizando seu discurso utilizando o verbo “contam” (desse modo não assumindo a ‘veracidade’ da informação prestada). E o que contam? Que o conhecimento técnico-científico dos engenheiros, os doutores, não poderia manter de pé a ponte. Era necessário pedir permissão aos caruanas, os encantados, que têm por morada não o céu da religião cristã, mas o fundo do rio. O “maioral lá da Pedreira”, o entendido de “sessão e vidência”, ele é que faz a ponte entre o espaço físico concebido pela engenharia e o sobrenatural espaço dos caruanas ou encantados. Torna-se, portanto, um pontifex, ou seja, um fazedor de pontes, claro, naquele sentido metafórico a que faz referência Ivani Fazenda:
[p. 45] A origem etimológica do termo pontífice reafirma essa relação. O construtor de pontes era o pontifex, mas o título foi incorporado pelos sacerdotes, sendo mais tarde designação do papa, pontífice. [...] o sumo sacerdote de Roma, [sic!] tomou o nome de pontifex, por ter construído sobre o Tibre a ponte chamada Sublicia [...]. O sumo sacerdote aparece como intermediário, mediador entre os fiéis e os deuses, entre o céu e a terra. [...]. O pontífice é o construtor e a própria ponte (FAZENDA, 2002, p. 75, destaques da autora).
A maneira de o romancista marajoara ver o mundo traduz-se em sua prática de inserção de personagens populares como centrais. Não é quem tem estudos que resolve a problemática da ponte que sempre caía, é alguém do seio do povo, o que pode ser percebido pela variante de língua popular por ele empregada, como por exemplo: “incanti”, “caboco”, “eras!, “assossegada” (p. 148). A religião oficial, o catolicismo, também não resolve o problema: é a umbanda quem o resolve, essa religião que tanto sofre com o preconceito oriundo de uma concepção do senso comum.
Esse homem da prática da pajelança, o que “invoca o índio da pena real”, ainda argumenta que sem “o consentimento do fundo” o Forte do Castelo não poderia ter sido erguido. Por falta de um pedido de consentimento aos do fundo, o cais do porto sempre estava a sofrer com a erosão: “O cais sempre caindo um pedaço, aqui e ali, o cais arriando, é ou não é?” (p.148) Tal fato ocorre contrariamente em relação à Catedral da Sé, já que “[...] foi só pedir licença pro fundo, a velha Norato (8) consentiu, e lá está a Sé em pé, até hoje, bem em cima da cabeça da cobra, fixe, assossegada. Abaixo de Deus, se deve à cobra aquela sustentação da igreja [...]” (p. 148).
Por tudo isso, pode-se afirmar que a visão social de Dalcídio toma partido pelos menos favorecidos, ainda que por meios sutis: na passagem analisada, as “autoridades” e engenheiros representam o estrato social elevado, economicamente mais privilegiado e com acesso à alta escolaridade e com domínio de um português erudito. Com certeza, esse estrato também habita bairros centrais da cidade e professa como religião o catolicismo, na grande maioria dos casos. No entanto, inscreve-se no espaço uma modelização que subverte os rótulos dessas representações, podendo-se redesenhar as antíteses espaciais como oxímoros, como se o que está embaixo na verdade passasse a ocupar a posição de cima. Então, o engenheiro não tem maior relevância que o pai-de-santo, os dois personagens representando, cada um, um dos elementos dos pares dicotômicos:
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[ 8] Lenda muito conhecida na Amazônia, trata-se de “[...] uma cobra de enormes proporções, cujos olhos são como dois faróis e que afundam (sic!) grandes embarcações com facilidade. Pode ainda transmudar-se num navio encantado. Muitos rios amazônicos e até mesmo igarapés têm a ‘sua” cobra grande, considerada ‘mãe’ desses lugares”. Extraído de MONTEIRO, Walcyr. Cf. nas referências.
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[p. 46] rico/pobre, em cima/embaixo, escolarizado/iletrado, erudito/popular, centro/periferia, catolicismo/umbanda, Deus/os encantados ou Deus/cobra Norato. Nesse caso, a inversão de valores alerta que o sinal de positivo (+) deve marcar não os elementos primeiros desses pares, mas os segundos, reservando aos primeiros o sinal de negatividade (–).
O universo ficcional em Ponte do Galo permite esse repensar e esse redefinir de tais valores, que passam a receber redimensionamentos semânticos, principalmente no que diz respeito a questões de natureza social e existencial. De passagem, diga-se que o procedimento de análise ora posto em execução – no campo dos Estudos Literários – jamais poderia menosprezar as perspicazes palavras de Antonio Candido, a nos ensinar que “[...] o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno” (CANDIDO,1964, p. 4, destaques do autor). Por conseguinte, aqui não se faz sociologia da literatura, apesar de se estudar uma obra por um prisma que, sem dúvida nenhuma, evidencia aspectos sociais de sua estrutura.
Ainda fazendo referência à passagem estudada de Ponte do Galo, não se pode deixar de chamar atenção para o elemento água, constantemente tematizado em todo o Ciclo do Extremo-Norte – estudado pelo professor Paulo Nunes, em sua pesquisa Aquonarrativa: uma leitura de Chove nos campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir (1999) (9) . Tratada como elemento primordial em diversas culturas, apresenta um conjunto abundante de simbologias, de cujo âmbito destaque se dê a sua ambivalência como elemento de criação e, paradoxalmente, de destruição da mesma vida: “A água é fonte de vida e fonte de morte, criadora e destruidora” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1997, p. 16). Daí por que na passagem estudada o trecho “O cais sempre caindo um pedaço, aqui e ali, o cais arriando, é ou não é?” (p. 148) pode ser posto em contraste com este outro: “Passouse um silêncio, deu a modo um banzeiro bem debaixo e foi esmorecendo num suspiro, ficou aquele mal-a-mal espuma” (p. 148-149). Força destruidora, no cais, e construtora (ou criadora) na ponte, mas claro, só após o pedido do pajé e o consentimento dado, manifestado no sacolejar da água, moradia dos encantados, espaço do sobrenatural, que abriga um ser de extremo poder, a Cobra Norato (“Abaixo de Deus, se deve à cobra aquela sustentação da igreja [...]” (p. 148)).
Partindo do eixo vertical para o horizontal, a ponte sobre o Igarapé das Almas proporciona a passagem de muita gente, conhecida (Alfredo, Mãe Ciana, a parteira e as netas, por exemplo) e desconhecida do narrador e do leitor, ligando a parte mais central de
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[9] NUNES, Paulo. Aquonarrativa: uma leitura do tecido narrativo de Chove nos campos de Cachoeira. Cf. nas referências.
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[p. 47] Belém à periferia, ao mesmo tempo em que o rio se adentra na cidade, despejando nas águas da Baía de Guajará águas escurecidas dos esgotos, águas poluídas, degradadas. As coordenadas espaciais aqui evidenciadas são a prospectividade (perto/longe) e a centralidade (centro/periferia): “O igarapé se mete barriga adentro da cidade, voltando escuro-escuro, podre. Da ponte se vê a torre da Basílica, o casario se aconchegando no arvoredo e ali perto, como meninos abelhudando os telhados, os açaizeiros de quintal” (p. 149).
As coordenadas espaciais se desenvolvem a partir da ideia de se valorizar o espaço em comparação à situacionalidade em relação ao corpo humano. Atentemos, por isso, à metáfora espacial “barriga adentro da cidade”. É bem evidente aí esse fato. Borges Filho, a respeito disso, pronuncia-se:
Segundo vários psicólogos e biólogos, a noção do espaço do ser humano nasce da comparação que a mente humana faz a partir de seu próprio corpo. Ou seja, o ser humano estabelece a partir de seu corpo as linhas vertical e horizontal. Quer em pé ou deitado, o homem possui um lado que fica à frente, um atrás, um à direita e outro à esquerda. Os valores positivos dessas latitudes, também encontrariam uma explicação biológica. Como os sentidos de percepção se encontram na frente e o ser humano se move e se relaciona normalmente de frente é essa espacialidade que recebe uma valoração positiva. Assim, o que está atrás e abaixo da terra, isto é, fora da percepção humana é sempre valorizado negativamente (BORGES FILHO, 2007, p. 116).
O estudioso afirma, ainda, que “[...] na maioria dos povos, há uma predominância da lateralidade direita sobre a esquerda, principalmente da mão direita sobre a esquerda na prática de atividades que exigem destreza” (BORGES FILHO, 2007, p. 59). Daí a valorização do flanco direito em detrimento do esquerdo. A passagem subsidia a compreensão do simbolismo do corpo, sempre a possibilitar metáforas como “cabeça da maré enchente”, “seio da terra”, “braço de rio”, “pé da montanha”, por exemplo. A parte mais de dentro, portanto, parte central da cidade, é ela que degrada as águas, com toda a carga semântica atribuída à cor negra (“escuro-escuro”) pelo senso-comum, água “podre”. Novamente, o texto permite uma inversão de valores.
Neste momento, é relevante enfatizar o quanto a correlação personagens-espaço (10) pode ser reveladora de sentidos não tão recônditos assim. Por exemplo, a constante presença de Alfredo na varanda do prelo, onde ficavam a tipografia e os catálogos e livros
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[10] Cf. nas referências o artigo de Antonio Candido: Degradação do espaço: estudo sobre a correlação funcional dos ambientes, das coisas e do comportamento em L’assomoir.
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[p. 48] do Major Alberto, aproxima o personagem das letras, da escolarização (caracterizando-o como letrado), afastando-o do mundo interiorano de Cachoeira, como se a saleta fosse a intersecção do locus urbano dentro do locus interiorano: a cidade como conhecimento, ali para ser lido e decifrado. Nesse caso, o espaço se apresenta como caracterizador homólogo do personagem. E aí temos, por outro prisma, a motivação caracterizadora de Tomachévski, por causa da consonância entre a espacialização e ‘estado de alma’ do personagem.
Além disso, o recinto está relacionado ao domínio do patriarcalismo, pois é o espaço dos homens, hierarquizado, portanto (diz respeito ao Major, a Eutanázio, a Rodolfo e, no momento, a Alfredo), já que o lugar de D. Amélia é a cozinha, e na cozinha, em especial, a despensa, onde esta afoga na bebida, no alcoolismo, suas dores, principalmente aquelas evocadas pela perda do primeiro filho, morto afogado. Será que ela já bebia antes da morte dele, ou passou a beber motivada por um escapismo à dor por aquele filho perdido?
Meio perdido nas ruas da cidade e dentro de si, de seus labirintos, sem mais a fantasia de encontrar a saída no carocinho de tucumã, Alfredo vaga pela cidade. Caminha possivelmente por ter perdido o caminho, a trilha, e não há retorno: a casa na cidade não é dele, sente-se um usurpador, sem ter lugar para onde ir, onde se sinta em casa. Acerca dessas considerações, encontramos apoio em Michel de Certeau:
Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinível de estar ausente e à procura de um próprio. A errância, multiplicada e reunida pela cidade, faz dela uma imensa experiência social da privação de lugar – uma experiência, é verdade, esfarelada em deportações inumeráveis e ínfimas (deslocamentos e caminhadas), compensadas pelas relações e cruzamentos desses êxodos que se entrelaçam, criando um tecido urbano, e posta sob o signo do que deveria ser, enfim, o lugar, mas é apenas um nome, a Cidade (CERTEAU,1994, p. 183).
Salientando que o espaço percorrido/vivenciado pelo personagem Alfredo (e outros que se ligam a ele) em Ponte do Galo, de modo algum poderia ser considerado somente um adorno, pleno que é de funcionalidade e organicidade. Por exemplo, tem-se a certeza de que o espaço situa muito bem os personagens no contexto socioeconômico e mesmo psicológico em que eles vivem na história narrada, além de caracterizá-los, como no caso de Sabá Manjerona e seu casebre, ou o pardieiro onde moram Dadá e seus irmãos. Também é um espaço que propicia ao ginasiano a errância sem sentido pelos cenários cachoeirenses e belenenses, rios, ruas e casas.
[p. 49] O flanar de Alfredo pela Belém ficcional pós-lemismo (11) e pós-ciclo da borracha (12) supostamente poderia ser compreendido pelo leitor como uma busca, um empreendimento de futuro encontro. Ao encontrar Luciana, encontrar-se-ia consigo mesmo? E que rumos tomariam os outros romances do Ciclo, sem algumas oportunidades de descobertas do adolescente que já se achou? Então, aqui se passa a analisar a passagem em que Alfredo entrega a chave da casa para uma moça, supostamente Luciana: “ ‘Tome que é a de sua casa, vá que é sua’, gaguejou, atirando-lhe a chave, fugiu” (JURANDIR, 1971, p. 160). Mais tarde, esperava na casa “pela visita”:
Alfredo percebeu um ruído de porta abrindo, a casa estremece, sim, alguém dá a volta à chave, o andar de pé nu, sim, entra, chega na sala, como se a visitante entrasse montada macio no seu alazão [...]. Ou ladrão? Ou pode ser que a D. Dudu se levante? [...] Num instante tornou-se o silêncio, a casa esvaziou-se. [...] deu a volta à chave mais em si mesma que na porta, e aqui no quarto revolvendo-me o peito, fechando-me algo para sempre. [...] A visitante recuperou a casa, levou-a, não só o lustre, o seu aniversário na sala, a campainha na porta mais o Ginásio que pediu, a cidade que lhe foi negada [...]. Restava agora este vazio [...]. Pela manhã, com cautela e escrúpulo, de que se envergonhava, andou pela varanda alcova e sala, a saber se tinha sumido alguma coisa. [...] Ou tudo rejeitado, repelido, deixado como um vômito [...] (JURANDIR, 1971, p. 160- 161).
É justamente porque o personagem não se encontrou com a desabençoada que um episódio mais tarde vai ser possível de eclodir: sua mudança para o cortiço dos Lobos, decisão que toma, já no romance Os habitantes, quando sabe da morte de Luciana. Decisão difícil, radical, mas necessária à maturidade do rapaz e à continuidade diegética da série de romances de Dalcídio Jurandir.
Durante toda a narrativa, Alfredo esteve à procura de Luciana. Encontrá-la pelo final da história seria tido como certo pelo leitor. Contrariar essa expectativa é da natureza da motivação falsa, tornando o texto mais dinâmico e imprevisível, possibilitando novos horizontes de leitura, escapando ao clichê. A chave representa um item com uma intensa carga simbólica: abre novas possibilidades, abre portas, portões, uma nova vida. Mas fecha também. Permite uma entrada, não exatamente uma saída. Alfredo, assim como o leitor de Ponte do Galo, não podem saber, com certeza, se a visitante de fato era Luciana.
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[11] Antônio José de Lemos (1843-1913): intendente (o prefeito da época) que governou Belém de 1897 a 1911, responsável por transformar a cidade, com a riqueza do Ciclo da Borracha, em uma das mais modernas do Brasil.
[12] Ciclo da Borracha: ciclo econômico localizado na Amazônia, tendo seu auge de 1879 a 1912, trazendo grande prosperidade à região.
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[p. 50] Se o encontro se realizasse, a busca acabaria. Seria uma considerável mudança nos rumos da série Extremo-Norte. Mas não aconteceu. Então, a motivação, além de falsa, ganha estatuto de motivação composicional, por sua comprovada funcionalidade na fábula. O leitor acaba por ser guiado a uma direção tensa (o suposto encontro entre Alfredo e Luciana, que não chegou a acontecer), contudo o caminho foi por um rumo que o levou a uma distensão. Ao quadro todo da sequência é conferida uma atmosfera de quase epifania, pela revelação das emoções em jogo: da visitante, de Alfredo e do leitor. A vaguitude, o sentido da dúvida extremada, é um aspecto a ser destacado.
O narrador ambientou tudo de modo a “deixar no ar” o que de fato se sucedeu. Teria sido Luciana a visitante noturna? Houve de fato essa visita, ou Alfredo esteve sonhando? O certo é que ele, entregando a chave à moça, a ela conferiu certo poder sobre a casa. Deu a ela a escolha de ir ou não ir. Opção que Alfredo não teria, já que não conseguia escapar dessa obsessão sem fim, como se pode constatar nesta passagem: “Tudo teve fim. Menos Luciana, nunca aparece, sempre presente na José Pio. A ausência dela é cada vez mais dona desta casa, em volta do inquilino que só entra pela porta dos fundos” (JURANDIR, 1971, p. 151).
Um excepcional oxímoro: a ausência sempre lembrada de Luciana atravessa toda a narrativa, por isso é que se pode dizer que ela é uma ausente sempre presente, ou seja, sua ausência ocupa um lugar privilegiado no espaço da memória de Alfredo. Então, é ele quem a presentifica, sem no entanto jamais tê-la visto, sem nunca ter ouvido sua voz. Porém, na mente do personagem manifesta-se a voz dela, obsessivamente pedindo pelo Ginásio que lhe fora negado, voz que ecoa por todo lugar aonde Alfredo vai (13). É a perene presença de uma ausência sem fim. Aqui esse oxímoro espacial revela que os aparentes despropósitos paradoxais não são assim tão absurdamente incompreensíveis.
Outro caso em que um oxímoro espacial pode trazer à luz revelações insuspeitas a partir de uma situação emblemática: Alfredo vê uma por uma as fotos de nus parisienses que ele encontrou entre outros apetrechos do seu pai. Após isso, “Escondeu o álbum atrás da Vida de Santa Rita de Cássia [um livro]” (JURANDIR, 1971, p. 53, destaque nosso)14 . Eis uma possível leitura nas entrelinhas do tecido textual: por trás do sagrado, esconde-se o profano. E quantas vezes a presumida santidade de um ser humano ou de uma situação
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[13] Cf. no romance a fala imaginária de Luciana com o personagem, de cuja passagem selecionamos este trecho: “Pedi o Ginásio, me deram uma porta da vida na Padre Prudêncio” (JURANDIR, 1971, p. 28).
[14] Nas nossas reflexões pretendemos não ter caráter moralista. De fato, a própria leitura eclética do Major Alberto sugere certa iconoclastia, já que na estante, entre os livros ‘remexidos’ por Alfredo, no episódio estudado, está um denominado Cristo nunca existiu, atribuído a La Sagesse. (Salvo engano, o livro é De la Sagesse, de Pierre Charron (1541-1603).)
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[p. 51] não escamoteia seu lado mundano? Nesse caso, Alfredo sentiu-se até reconcilado com o Major, por causa daquela “secreta intimidade”, dada involuntariamente, é certo, mas que resultou num “confuso respeito pelo pai” (JURANDIR, 1971, p. 53).
As fotos mostram belas mulheres no passado, na juventude, conservando-as assim no papel (exceto pela poeira, pelas roídas de rato); todavia, no presente da narrativa, elas já devem estar velhas, mas quase intactas em sua beleza, ali anonimamente naquela “vila remota”. Espantoso é lembrar que na frente do álbum de nus está a biografia de uma santa que, entre outros milagres a ela relacionados, mantém o corpo intacto, desde seu falecimento, em 1457 (segundo informações oficiais do Vaticano). Portanto, verifica-se aqui a possibilidade de que o novo possa estar presente no velho, porém fato este quase imperceptível em uma leitura mais apressada.
Essa presença do que é contemporâneo se acomodando sobre aquilo que se passou pode ser observado no trecho: “Tocava o sino do São Raimundo, apitou a Cremação, o Utinga apitou, e aqui embaixo do alicerce os soterrados bailes da gente Juruema” (JURANDIR, 1971, p. 160). Até mesmo o que é novo está erguido sobre os escombros do que já foi. A família Juruema, afeita a festas, teve sua casa literalmente desmoronando sobre o baile que se realizava. Veio abaixo, por completo, a casa. Sobre ela, ergueu-se o palacete do Cel. Delabençoe, que o construiu para Luciana, como já o dissemos antes.
O elemento novo, amalgamado, ao lado, ou mesmo sobreposto à situação passada, relaciona-se a uma citação que Bachelard faz de Jung (BACHELARD,1993, p. 20) (15), a respeito da casa como analogia da intimidade psicológica do ser humano, que seria mais bem compreendida a partir do ponto de vista uma análise vertical, do andar superior em direção ao térreo, ao porão e a camadas inferiores.
Esses ‘alicerces’ tornam-se marcas indeléveis no ser humano. Faz relembrar o trecho em que o rapaz, sobre o assoalho da saleta, pelo buraquinho contempla, lá embaixo, o menino Alfredo (JURANDIR, 1971, p. 92). Quanto de um está no outro? E não está, ao mesmo tempo. Seria, na terminologia de Michel Foucault, uma espécie de heterotopia, dado representar um lugar que espelha ou representa outro. Para esse filósofo, heterotopias são
[...] espaços que existem e são formados na própria fundação da sociedade – que são algo como contra-sítios, espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros sítios reais dessa dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente, representados, contestados e invertidos.
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[15] Por curiosidade, a passagem é esta: “Temos de descobrir um edifício e explicá-lo: seu andar superior foi construído no século XIX, o térreo data do século XVI e o exame mais minucioso da construção mostra que ela foi feita sobre uma torre do século II. No porão, descobrimos fundações romanas; e debaixo do porão há uma caverna em cujo solo encontramos, na camada superior, ferramentas de sílex e, nas camadas mais profundas, restos de fauna glacial. Tal seria, aproximadamente, a estrutura da nossa alma.”
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[p. 52] Este tipo de lugares está fora de todos os lugares, apesar de se poder obviamente apontar sua posição geográfica na realidade. (FOULCAULT, De outros espaços. Disponível em
Para finalizar a análise que vimos empreendendo em torno de antíteses e oxímoros, reiteramos a intensa carga semântica deste oxímoro espacial situacional: a história do romance Ponte do Galo inicia com Alfredo entrando no lar da família – casa própria –, em Cachoeira, pela porta da frente, e finda com esse mesmo personagem, acompanhado de Esmeia, pulando a janela da frente da casa da José Pio, em Belém – casa alheia –, em direção à rua, isso depois de já ter entrado pela porta de trás. Trata-se de uma excepcional simbologia do paradoxo, lembrando aqui a ideia de que Hermes, a divindade que representa o deslocamento pelas ruas, passa a invadir o espaço de Héstia, a deusa do lar. E vice-versa. Há aqui uma intersecção do espaço dessas divindades, uma convivência. Em vez de se oporem, complementam-se, harmonizam-se.
A bitopia de Alfredo também propicia seu perambular sem propósito pelos lugares distantes do subúrbio de Belém. O próprio personagem sugere, em palavras dirigidas em pensamento à parteira, D. Santa, uma busca existencial por uma identidade perdida: “Não estou atrás só das netas e da senhora, mas da outra ou talvez de mim mesmo, velha avó” (JURANDIR, 1971, p. 135). Portanto, vive uma condição de não-ser e de não-estar: não compreende quem é nem a que lugar pertence. No seu percurso literário de menino pobre e sonhador, filho de pai branco e letrado, com mãe negra e iletrada, não se sente nem como ‘um’ nem como ‘outro’, sendo um mestiço, um mulato (talvez o vocábulo mais apropriado, porque assim é usado pelo povo, seja moreno), passa da infância à adolescência vivendo uma vida de errância, de nomadismo em casas alheias.
Concluímos que a obra estudada é realmente adequada à proposta de estudo da pesquisa, tendo em vista a emergência do componente espacial na criação do ambiente, cuja funcionalidade não se resume a apenas ser local de circulação dos personagens, mas também ganha em importância como categoria narrativa com status de correlato funcional, sendo indissociável do tempo e do personagem, não podendo este último ser percebido a não ser acoplado a um espaço só seu e único, como a saleta e Alfredo, por exemplo (20) .