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terça-feira, 29 de março de 2011

Big Brother é o circo televisivo

Pão e circo 2

Por Alcir Rodrigues

(Em 2006, ao me submeter a um determinado concurso, elaborei a “redação” abaixo, uma das exigências da prova. Na verdade, deveria atualizar o texto; contudo, em linhas gerais, pouco ou quase nada mudou em relação às afirmações feitas. Posto isso, segue o texto, sem nenhuma alteração. Aproveitando o ensejo em que mais um Big Bosta acabou –infelizmente, só para outro iniciar—, republicamos esta matéria, para a reflexão do leitor.)

Já dizia o imperador romano Comodus que o povo precisava "de pão e de circo" ― em latim, PANIS ET CIRCENSIS ―, ou seja, comida e diversão. A população romana foi iludida por ele, alienada dos graves problemas por que passava o Império.

Hoje, já não é o circo o grande atrativo da massa, mas a televisão, que não cumpre seu papel social. Deveria oferecer uma programação variada, havendo espaço para temas diversos: arte, cultura em geral, esporte, política e economia, saúde, saneamento, diversão, etc. Porém, a concorrência mercadológica pela maior audiência, referida pelo estudioso Erasmo Borges, criou um ambiente de selvageria: um programa imita o outro, baixa o nível, tudo se faz pela maior audiência, porque aí se terá um patrocínio mais encorpado, geralmente no horário nobre.

Se a televisão é o circo moderno, é apenas indústria do entretenimento. E se "vinga" o programa, vem uma enxurrada de outros parecidos: Casa dos Artistas, Fama, Big Brother, etc. Todos são a mesma "cara", encarnados e esculpidos, trazendo à tela só o entretenimento fácil, ilusório, alienante, porque não debatem as mazelas sociais nem propõem mudanças. Mas, se assim o fizessem, decretariam sua própria extinção.

Não importa qualquer aparente virtude ou quaisquer caracteres qualitativos dos participantes do BBB: carisma, simpatia, sinceridade, lealdade, pois tudo isso é escamoteado, já que o que estava em jogo era R$ 1.000.000,00. Tantos zeros "transformam" os ideais humanos e disfarçam a verdadeira essência do ser. E os índices de audiência podem sugerir que a televisão dá ao povo o que este precisa. Só que esse povo jamais foi consultado sobre isso. Oxalá pelo menos o "pão" de Comodus fosse hoje transformado em alimento cultural. Mas estamos longe disso. Muito longe.

Pão e circo

Fonte: http://www.webartigos.com/articles/9867/1/Big-Brother-e-O-Circo-Televisivo/pagina1.html#ixzz1I1KgchVn

sexta-feira, 4 de março de 2011

Tá Feio: Ironia e irreverência na avenida

(Este texto foi elaborado no calor dos eventos do Carnaval 2008 e está incompleto, porque sem dados atuais. Precisa de correções, ajustes vários, em diversos sentidos. Todo tipo de contribuição é bem-vinda).

Peço que se dê atenção à “Advertência”

 

Tá Feio: ironia e irreverência na avenida
(pequeno contributo à memória)

 

 

Tá Feio! Tá Feio!
O homem sem cueca,
E a mulher
Sem porta-seio...

 

 

 

por
Alcir Rodrigues

 

Pará
2008

 

 


Advertência

      É necessário alertar que o texto a seguir foi produzido a partir de pesquisas não-formais, mas não por isso anticientíficas, valendo-se da observação empírica e reflexão demo-rada, mas sobretudo das idiossincrasias do autor, de suas memórias, de diálogo com compa-nheiros (de labuta e, principalmente, de copo), de suas convicções, de seus erros, de seus acer-tos também... Não é (nem poderia sê-lo) um texto definitivo. Trata-se de um esboço, um in-centivo ao desafio de que outros, certamente bem melhormente que eu, tratem do tema apai-xonante, que é tentar recuperar resquícios de tempo perdido, nos nichos recônditos da fugaci-dade irreversível das nuvens passageiras no céu dos fatos cotidianos. Não se trata de mostrar o que foi que aconteceu, de fato, mas de levantar um véu turvo que permita vislumbrar ao me-nos uma silhueta do que é, do que foi e, acima de tudo, do que será o Bloco Carnavalesco Tá Feio a partir de hoje. Temos certeza de que a dúvida não é inimiga do saber, pelo contrário, é um desafio ao brio do pesquisador/intérprete dos fatos e das mentalidades. A tentativa é que esse texto tivesse um teor ensaístico e um viés interdisciplinar, no entanto limitado em muito pelos parcos conhecimentos no HD de quem o escrevinhou. Em suma, tudo aqui consiste em uma tentativa. Por isso, parafraseio aqui as palavras de Brecht, pela tradução de Fernando Pessoa: pensem em mim com indulgência!

 

 


Desfilando com o Bloco Carnavalesco Tá Feio: ironia e irreverência na avenida

image

Fig. 1: foto de Edmilson L. Braz
Carnaval 2006

* Achamos por bem identificar os/as brincantes para que, futuramente, os/as leitores deste documento não sofram do mesmo tipo de apagamento que motivou a elaboração deste escrito: (da esquerda para a direita, primeiro os adultos, depois as crianças) Aldo, Daniele, Santana, Lindo (Gonçalo), Vanessa e Moisés, Alcir (o então Presi-dente), Daniel, Sheyla, Rick, Adriana e Arnaldo, Helen, e Beca; Caio Vinícius, Caio Campinas, Vítor, Tavinho (André Gustavo), Ariane e Arícia (oculta atrás do Rick) e Amanda.

         Ter nascido e vivido minha vida inteirinha numa sociedade como a brasileira, diversa, heterogênea em sua complexíssima pluralidade de manifestações culturais, faz-me crer que fui abençoado pelas divindades que regem os destinos dos seres humanos. Meu país, no remoto período pré-cabralino, povoado por milhares de nações indígenas, vai ser conquistado e colonizado por uma nação europeia, que quis –e obteve imenso êxito nesse intento—vestir o índio, como o disse muito bem Oswald de Andrade, com seus trajes culturais europeus, escravizando-o não só física mas cultural e ideologicamente “falando‟. Fez o mesmo com os africanos que desterrou e escravizou. Não foi, de modo algum, uma postura que mereça elogios. Todavia, desses lamentáveis fatos resultou um espesso e rico caldo cultural, que nos caracte-riza e nos denomina hoje como povo brasileiro. Some-se a isso a também importantíssima contribuição dos imigrantes (italianos, germânicos, polacos, japonas, por exemplo). A riqueza cultural brasileira é motivo de agigantado orgulho. Sou, pois, vaidoso, nesse sentido.
          Entretanto, se eu, se nós nos envaidecemos, é por causa justamente de nossa diversidade. Somos uma nação socioantropologicamente heterogênea, com todas as implicações que tal fato possa acarretar. Sendo assim, é de se esperar que autoridades e órgãos públicos competentes implementem políticas, projetos, programas e criem eventos que primem por enfatizar e valorizar essa riqueza advinda de nossa maravilhosa diversidade. Há espaço -- quer dizer, deveria havê-lo -- para apoio institucional (ou não) às diferenças e às minorias. O grito de todos deveria ser ouvido, e todos têm direito de manifestar individual e coletivamente suas idéias e opiniões, já que vivemos em uma democracia.
             No entanto, em nossa “Ilhamaravilha”, como canta Chico César, em vez de se dar um banho de democracia e de livre-expressão, como é típico do período carnavalesco, sofremos uma tempestade de alta opressão, tendo em vista o “empate” (Obrigado, Márcio Souza, pelo livro Empate contra Chico Mendes, de onde tomo emprestada a palavra), sim, o “empate” das “autoridades‟ e instituições --entenda-se, Agência Distrital, principalmente –- neste ano de 2007 contra o Bloco Carnavalesco Tá Feio. A dita-DURA acabou, em tese; a Censura, parece que não. Pensou diferente, é empatado, obstruído, obstaculizado. Talvez porque, enquanto se observa, predominantemente, nas agremiações carnavalescas ilhoas, por meio das letras de ncia atualmente question das lembranças da “merencória infância”, como nos diria um Drummond de Andrade, em vez de tudo isso, o Tá Feio assume sua vocação para a denúncia, por meio de uma postura de irreverência, inclusive retratando realisticamente a inépcia dantesca das autoridades e instituições “competentes”.
             Por essa atitude louvável, o Bloco é, ao invés de premiado, punido. Emprestando as palavras do poeta Eduardo Alves da Costa, tentaram, num ato de voraz prepotência, “roubar nossa luz e arrancar nossa voz da garganta”, ao declararem os organizadores do evento carna-valesco da Segunda-Feira Gorda/2007 o término antecipado do desfile das agremiações, desa-tivando o sistema de som e dispensando o carro-som que acompanharia o Bloco (último a desfilar nessa noite). Todavia, numa atitude resoluta e corajosa, que faltou e falta aos organi-zadores do evento, vassalos de joelhos trêmulos de suseranos ignorantes e cerceadores de di-reitos básicos, do povo e do funcionalismo municipal, o Bloco sai à rua, seu palco máximo de sonho, e na garganta, no gogó, seus brincantes e vocalistas, com a preciosa colaboração da Bateria da Estação 1ª de Maracajá, divulgam sua Mensagem, vendem seu peixe, para o azar de quem queria vê-los emudecidos e o povo, ensurdecido. Mas, quem teve olhos para ver, viu; quem teve ouvidos para ouvir, ouviu. E suas mentes entenderam certamente a Mensagem. Foi uma vitória da tenacidade consciente contra a prepotência ignara.
           Historicamente, os que oprimem sempre quiseram obediência incondicional. Quem se rebelou e quis lutar por liberdade, sempre pagou um preço altíssimo, com possibilidade de perder, até, não raramente, a própria vida. Por causa disso, de Sócrates até Chico Mendes, passando por Spartacus, por Zumbi dos Palmares, pelos Cabanos, Ghandi, Nelson Mandela, Tchê Guevara, Luther King, a Guerrilha do Araguaia e mesmo John Lennon, todos estes re-beldes contestadores foram considerados espécies de vírus, sobre os quais caíram impiedosa-mente os reacionários antivírus defensores do status quo vigente, que alimenta o fausto do G 7, no nível macroeconômico, e, no micro, a alta burguesia brasileira, inclusive aquela mais parasitária (banqueiros, políticos, por exemplo), que se nutre da corrupção que a robustece e é causa do miserê da ampla maioria do povo brasileiro, apelidada desgraçadamente por a-q-u-e-l-e ex-presidente de “descamisada”.
               E, por citar o plano do micro, o Bloco Tá Feio toma para si essa atitude engajada de ser na Ilha esse vírus da contestação. E, para quem não sabe, é uma agremiação que, na espi-nhenta e pedregosa senda que trilhou, e vem ainda trilhando, passou pela Glória (o triunfo) e pelo ostracismo e quase ruína. Mas, como uma Fênix, como comparação feita em um recente Manifesto de protesto de sua “Diretoria”, sempre se reergueu de suas próprias cinzas, e voltou a brilhar, como uma vermelhante estrela em sua grandeza singela. Nasceu, o Bloco, da extin-ção da agremiação chamada A Grande Família, lá pelos anos finais da década de 70, e veio a se consolidar a partir dos anos iniciais da década de 80 do séc. passado. Calcula-se em torno de 30 anos de existência. Mais que Bodas de Prata de irreverência que merece o respeito de todos.

             Em vez de mil e uma, um milhão e mil e uma histórias têm os brincantes desse Bloco para decantar em prosa & verso. Em tempo, quando se dissolveu A Grande Família, e a fa-mília que a organizava cedeu os tambores para um de seus filhos e seus amigos formarem um Bloco de Sujos, como se dizia à época, surgiu o questionamento: Qual o nome a ser dado? Entre outros, surgiu o irretocável Tá Feio, por influência (Excepcional, diga-se!) da Escola de Samba Quem São Eles, que teve esse nome como seu primeiro. Tá Feio porque a situa-ção socioeconômica da época “tava ruça”, como se costumava dizer. Tempo de “inflação galo-pante”, “fantástica”, como o então ministro Delfim Neto a qualificava. Governo Figueiredo, quase fim da dita-DURA. É desse período o “refinado‟ refrão, que igualmente o era seu “samba-tema”:


Tá Feio! Tá Feio!
O homem sem cueca,
E a mulher
Sem porta-seio...


             Pode-se observar, da problemática óbvia, em questão, do baixo ou nenhum salário, do poder aquisitivo baixíssimo, ou na verdade zerado, que não daria sequer para comprar um sutiã ou uma cueca; além de tudo isso, veja-se o bom-humor, a sátira da letra, coisa já mais madura que nos primórdios do nascimento do Bloco, em que só se dava um grito de guerra, o tempo todo, repetidamente:


Ê eeeoôôôô, eeeôôôô
Tá Feiôô!

 

            É dessa fase que vem a mística de que Tá Feio é o Bloco mais “enjoado” do Mosquei-ro, no sentido de ser o mais persistente, o que mais vezes “passava” na frente do palanque oficial. Segundo alguns, há um número hiperbólico de 33 vezes e meia. Inclusive, certamente nesse carnaval aí das 33 vezes e meia, disseram, os organizadores do evento, que “aquela” seria “a última passagem do Bloco”, que após sair dali, não poderiam os brincantes voltar. Então, o que se fez? Ora, deram meia volta, uma ré, e o Bloco atravessou a Avenida no senti-do inverso. Foi hilário, porque passou pelo meio rasgando os outros blocos e atrapalhando suas baterias, já que na do Tá Feio, ninguém sabia batucar.
            Ainda na década de 80, um brincante, Edivaldo Teles de Sousa, o Dico Medalha, uma vez perguntado sugestivamente qual seria o tema do Bloco para o Carnaval daquele ano, saiu com esta deliciosa pérola: “As horríveis noites de Carnaval”, o que combinaria com o nome da agremiação: Tá Feio. Aí, um outro brincante, o Vitor Barata, compôs um samba bem bacaninha, que segue abaixo:


As horríveis noites de Carnaval


Hoje a Vila está em festa
Tá Feio o seu povo vem saudar
Com horríveis noites de Carnaval
Este é o seu tema popular

Tem rasteira, tem empurrão
Tem madame fugindo com o Ricardão

Vem morena,
Que hoje ninguém é de ninguém
Tira a mão do meu, morena
Se não, amanhã vai ter neném

Vai ter neném
Sim, senhor
Este é o Tá Feio
Que o povo aclamou.

          É possível que certas opiniões, e até com certo crédito, atribuam à letra um quê de ingenuidade, o que não deixa de ser parcial verdade. Mas é crucial que observem a crítica acerca da promiscuidade, com visão „machista‟, ou, no mínimo, patriarcalista, mas certamente crítica, com relação à deterioração das relações conjugais, bem típicas do período momesco. Importante também é a referência ao comportamento agressivo de algumas parcelas de brin-cantes que atrapalham ou mesmo estragam esse período, que deveria, como condiz com sua origem, ser de festa e de inversão de valores. É nessa época, e só nela, que o pobre tem vez e voz: o morro, a baixada, a invasão; o operário, a doméstica, o desempregado têm seus poucos minutos de fama e de poder dizer, como no famoso samba de enredo, “Sou na vida um mendigo, / Na folia eu sou rei”. Além desse fato, naqueles anos perto do fim da década de 80, a AIDS já vitimava muita gente. A gravidez não programada e precoce era uma constante. Es-ses fatos não mudaram muito. Mas no sambinha há um alerta contra o não-planejamento fa-miliar. Não é tão ingênua assim a letra, portanto, como pudemos ver. Sem falar que a maioria das pessoas tem uma visão bem ortodoxa acerca do que é a beleza na passarela. Joãosinho Trinta rompeu com isso, na linha de Pablo Picasso, que disse que “O feio é belo”, quando desenvolveu na Av. Marquês de Sapucaí o tema, pela Beija-Flor, “Sapos, cobras, urubus, larguem minha fantasia”, em 1989. Ora, o Tá Feio tinha por tema, em 1986, “As horríveis noites de carnaval”. Que tal?
          Apesar de toda essa digressão, resultado óbvio de uma inevitável empolgação, visto o autor destes parágrafos ser brincante inconteste do querido Bloco, e já ter também exercido o ilustre cargo de presidente no biênio 2005/2006 (o que muito lhe dá orgulho), apesar desse labiríntico volteio, retorno ao assunto: o „empate‟ contra nosso Bloco. Muito nos envaidece o fato de que nada adiantou o autoritarismo, a prepotência, o engodo, a atitude vil, de má-fé, pois o Tá Feio não fez feio, pelo contrário, voltou à passarela no dia seguinte, Terça-Feira Gorda, e, para a alegria geral da multidão, e ira desmesurada das „autoridades autoritárias‟, deslanchou, com o sambinha que segue abaixo:


Se bobeias, danças (2007)


Não pode bobear,
Não pode bobear, (refrão)
Pois se marcar bobeira,
O guarda vai pegar (O guarda vai levar). 

Embarquei na História,
E quem contou confirmou,
Carnaval é com o Tá Feio,
Se bobeou, dançou. 

Na nossa Ilha ta tudo diferente.
Nos blocos, política muda horário,
Apreende aguardente, não respeita a tradição.
Qual é a tua, meu patrão?
Vai prender bandido,
E larga o folião.


O que nos respalda é o apelo do povão.
O bom transporte é só pra barão,
Que vem de Siena,
De estranha transação.

Fig. 2: foto de Zuleide Oliveira

 Carnaval 2005clip_image002


        Ser popular, não ser populista: assim é o Tá Feio. Até no nome, tendo em vista usar “tá”, em lugar de estar; feio, em lugar de crítico, ou precário. O coloquial, ou até o popular (ou mesmo a gíria), são modalidades de língua freqüentemente usadas nas letras de sambas da agremiação (“Se bobeias, danças”, por exemplo). Em decorrência disso, os componentes da “ala de compositores” consideram que estaríamos contribuindo com a conscientização para o fato de qualquer ação coletiva ser, incontestavelmente, política, na mesma linha de um Berthold Brecht, em seu “Analfabeto político”. Se nada fosse mencionado pelo Bloco acerca das atitudes arbitrárias das “autoridades”, estaríamos contribuindo às avessas para uma formação ideológica de caráter reflexivo, inovador e interventivo. Pelo contrário, por meio de uma letra engajada, o Tá Feio deslinda a “máquina do mundo” controladora e, por isso, cerceadora de direitos, e alerta para o fato do desrespeito à tradição. Que tradição? Ora, os blocos, o carna-val e os simpatizantes da festa popular, todos estes independem, de fato e de direito, de normas institucionais falso-moralistas. Cabe às instituições e às autoridades tão-somente organi-zar e contribuir com o brilhantismo da festa, que, entre outras conseqüências benéficas que traz em seu bojo, aquece o turismo e, é claro, a economia local, gerando emprego e renda temporários. Todavia, a igreja, a seccional e a agência distrital fizeram o desfavor de tentar pôr a pique, naufragar mesmo, o carrus navalis, a Festa do Povão.
          O que, na verdade, deveriam ter feito era: a igreja, nada, pois a festa do período mo-mesco é tradição inclusive anterior ao cristianismo, é Festa profana (é pagã), como nos lem-bra aquele samba maravilhoso da Escola de Samba União da Ilha, lá do Rio. A festa religiosa vem depois e é da alçada da igreja, realmente (a Quaresma e a Semana Santa, por exemplo). E à seccional, o que caberia? Ora, bem simples, permitir que o período festivo transcorra “ordeiro” (Se é que se pode usar este termo!) e pacífico. Dar segurança, fazer seu feijão-com-arroz, do tipo prender bandidos, basicamente. Reprimir não ficar bancando, na pessoa de seu comandante-em-chefe, o legislador de meia pataca, o que deve decidir por horários e trajetos de desfiles. Se assim o fizessem, a igreja e a (falta de) segurança pública, se pelo menos deixassem o carnaval em paz, o nada que perpetrassem ou sabotassem para obstruir seu transcorrer, já seria um algo muito por agradecermos. À (des)agência distrital caberia a logística: pôr realmente a Funbel e CTBel a serviço da criação de um ambiente favorável ao bom desenrolar desta tradicional festa legitimamente mosquei-rense. Não, em vez disso, implementou uma política de desvalorização do carnaval de Blocos e de hipervalorização da subcultura massificada e alienante (sabe-se lá o porquê da escolha e do pagamento escusos), do ritmo simbolizado pela “banda” calypso (em verdade, leia-se colapso) -a-dor muni-cipal Falsiomar (o Dê-Costas-para-o-povo) e reproduzido “in-gloriosa-mente” pela agente (ou Paciente) distrital, que, se ajudou em alguma coisa, certamente foi para a mediocrização de atitudes de presidentes e diretores de agremiações de carnaval, que se fizeram de vassalos e até mesmo servos ou escravos do pensamento medíocre, seja ele advindo da religião, do falso-moralismo, portanto; seja advindo da segurança pública ou da agência distrital, da incompe-tência generalizada, portanto. Três instituições incredenciadas para gerir o Carnaval, já que o Carnaval é, também, como dado cultural de nosso povo, uma res publicae (coisa pública): pertence ao povo, ao público, não se presta a decisões que, além de impopulares, são particu-lares.
           Mas não é de hoje que o Tá Feio mantém-se como agremiação que se propõe a, utopicamente que seja, despertar o sentido do viver coletivamente, do questionamento ideológico acerca de decisões arbitrárias de nossos (?) líderes gestores municipais, estaduais e/ou federais, da participação social, política, cultural que nos permitirá, um dia, intervir positivamente na realidade circundante, promovendo a melhoria das condições de vida da população, nem que seja, de momento, apenas em nossa comunidade; contudo, já seria um começo. Em 1999, por exemplo, o Bloco desfilou com o samba O Real virou cocô. Em 2000, com o Brincadeira de peteca. Já em 2006, com o irreprimível Tem culpa todo mundo, só não tem culpa eu. A partir daqui, passamos a comentar esses três sambas, cujas letras seguem abaixo: 

 
O Real virou cocô (1999)


Tá feio, tá feio,
O Real mente, sim senhor.
Tá feio, tá feio,
O Real perdeu valor.
Tá feio, tá feio...
O Real virou cocô!

Não tem salário, não tem emprego,
O homem sem cueca,
E a mulher sem porta-seios.
A brincadeira retornou
E eu to no meio,
Como dizia minha avó:
“Menino, isso não tem mais jeito!”

Tá feio, tá feio...

FHC foi pras Caymans
Com as estatais.
Essa alquimia é arapuca.
Ei, Malan,
Subiu o Dólar.
Me deu pavor tal Carnaval,
Foi o povo que dançou.

Tá feio, tá feio...


          Em 1999, crise na Rússia: após escapulir, alguns anos antes, da crise mexicana e da crise dos tigres asiáticos, o Brasil e o Real pareciam, assim como o próprio povo brasileiro, esperar pela queda de uma “Espada de Dâmocles”, perigo iminente, sempre a pairar sobre nossas cabeças. Na verdade, se uma superdesvaloziração ocorreu, deveríamos já estar por esperá-la, como gato escaldado que tem medo de água fria. Sempre o Real estivera sobrevalorizado artificialmente, estratégia político-eleitoreira de Fernando Henrique Cardoso, presidente ree-leito que, mais do que qualquer outro que já tivemos, demonstrou ser um verdadeiro doutor em Demagogia, altamente diplomado pela Universidade do Tomalá-dá-cá. Deveríamos estar já de sobreaviso, mas esquecemos a lição da História. Daí que é sempre salutar rememorar os fatos. Por exemplo: O que FHC e Malan Real-Mente REALizaram para manter a inflação sob controle e com que objetivos? Entre outras ações, as que a princípio mais deram na vista foi criar uma quase-paridade do Real frente ao Dólar, privilegiando, assim, as importações, man-tendo estáveis os preços dos produtos dessa forma (lembremos da entrada no mercado dos R$1,99 sino-paraguaios). 
          Outra REALização dessa natureza foi a desindexação : a negociação salarial via sindi-catos e patrões passou a ser a bola da vez. Tudo era negociação, tudo era desindexação. Caso contrário, seríamos assombrados de novo pelo aterrador fantasma da inflação. Sabe-se hoje, “aqui pra nós‟, que desindexação tornou-se sinônimo de achatamento salarial, principalmente dos funcionários públicos, em qualquer esfera (união, estados, municípios) administrada pelo PSDB. Reajuste, mesmo, só o do salário mínimo, e era um reajuste, digamos... mi-ni-mo, ora. Aqui no Pará, por ede sempre fugir de discussões com o funcionalismo acerca de reajustes salariais, com o muito preciso epíteto de fujão, o Rasalário do funcionalismo em míseros 7%, depois de 8 anos de mandato com reajuste zero. FHC e Malan também escancararam as portas alfandegárias nacionais para tudo quanto é produto estrangeiro (para controlar a inflação, se-gundo esses veneráveis gurus), quebrando assim as pequenas e microempresas já existentes ou que tiveram a ousadia de entrar no mercado nessa época. Os dois deuses da economia pós-moderna, de quem estamos tratando agora, tiveram também a extraordinária idéia de que se alguém tivesse o sonho de comprar algo, ou tinha de ser à vista ou no cartão, com uma parcela apenas, e só. Contudo, com a criatividade típica de uma terra brasilis, inventamos o cheque pré-datado, tentando fugir ao pacote de maldade dos dois “demônios das micro e macroeconomias” globalizadas.
          Contudo, para pôr em real funcionamento o maquiavélico projeto de duas décadas no poder, FHC e Cia precisavam de dinheiro em caixa, e precisavam REALmente praticar a teo-ria neoliberal do estado pequeno, que se responsabilizaria apenas pelos setores da saúde, edu-cação, habitação, etc. Daí venderem a preço de banana as estatais, entre elas a Vale do Rio Doce, todo o sistema de telefonia e sistema elétrico, e até rodovias passaram para as mãos generosas da iniciativa privada, com gordos reajustes de tarifas todo ano, sempre acima da inflação. Só não privatizaram a Petrobras porque seria projeto a posteriori, na era Serra, que não veio a se se não os complexos petrolíferos Tupi e Júpi-ter, recém descobertos, já teria um dono, e este não seria o povo brasileiro, seria um grupo empresarial. Vemos, até aqui, o desdém do governo peessedebista por questões sociais: o em-prego, o salário justo, o poder aquisitivo, a saúde, a educação de qualidade. Tudo se resumia a Plano Real e combate à inflação, mas não à corrupção, não ao contrabando, não ao desvio de divisas, como por exemplo, para o paraíso fiscal das Ilhas Caymans, tudo isso tão enfatica-mente denunciado na letra do samba O Real virou cocô.
            Depois de tudo isso, FHC, haja vista a derrota fragorosa de seu fantoche (Serra) para Lula, sem ter mais com que apelar, saiu-se com essa: Ter medo do que Lula iria fazer (pagaria o FMI, por exemplo?) com o plano econômico (só econômico, pois de social quase nada ou nada se viu) forjado pelo PSDB, com o projeto de encastelar no poder por duas décadas os capa-pretas do partidão. FHC fez terrorismo verbal. Mas nada adiantou. Perdeu! Dessa época, o Tá Feio, então, deixou-nos este retrato tão crítico quanto os outros sambas já produzidos pelo bloco, tão crítico como escarnecedor, uma tal marca da irreverência e ironia bem peculia-res à produção da Ala dos Compositores Feios, já tão tradicional da Agremiação.

Brincadeira de peteca (2000)

500 anos: Tá feio!
Sem Independência, sem Abolição,
Sem consciência,
Meio de milênio de exploração. 

Sassarica pra lá
Siririca pra cá,
Até quando o Tio Sam vai enfiar?
Sassarica pra lá,
Siririca pra cá,
Até quando nós vamos agüentar?

A Independência nada de chegar...
Com os Estates na peteca
De palmo em cima
O Brasil a errar.
Com essa tal fartura,
Chega de ilusão, chega de extermínio.
E Colonização.

Sassarica pra lá
Siririca pra cá,
Até quando o Tio Sam vai enfiar?
Sassarica pra lá,
Siririca pra cá,
Até quando nós vamos aguentar?


          Ano dois mil: 500 anos de descobrimento, ou de conquista, opressão, colonização? Quem tem o que festejar nesta nossa Terra Pindorama? Os índios, os afro-descendentes, os pobres? As prostitutas, os menores abandonados, os aposentados ou pensionistas com seu salário ou renda mínima, para também manter uma vida mínima? A letra deste samba trata de produzir um profundo questionamento que já ecoa em diversos setores da intelligentsia brasi-leira, por ser de caráter socioeconômico-histórico-cultural. Põe também uma carrada de areia sobre a idéia ufana de que se vive num país em que o que se planta cresce, floresce, frutifica... e todos colhem desses frutos de uma mais que utópica e mítica cornucópia. País perfeito, in-dependente, sem preconceitos de qualquer natureza, país onde não há explorados, país desen-volvido e rico, que não sofre pressões externas... Tudo falácia!
           Sabemos do banquete festivo organizado pelas e para as elites para esse festejo, mas, como sempre, não houve um banquete dos excluídos. Analisemos os contrastes das comemo-rações: Sarney Filho, então ministro do turismo, deixou naufragarem R$500.000,00 com a construção da Nau Capitânia, que nem chegou a navegar. Disse El-Bigodón Sarney Jr. que não dominávamos a tecnologia para construir aquela nau. O risível é que há mais de 500 anos os portugueses construíam tais embarcações, que inclusive navegavam, e bem, caso contrário, não teriam chegado a estas terras, para as colonizarem. Nesse dia 21 de abril de 2000, os ex-cluídos índios pataxós (que escaparam de seu extermínio sabem lá os deuses como) quiseram participar dos festejos, sendo eles representantes legítimos dos povos autóctones, ou seja, os primeiros habitantes, no que foram reprimidos violentamente pela polícia, que baixou o pau nos indígenas. Tal ato uma, a do so-ciólogo e, portanto, de quem teria de buscar por todos os meios implementar políticas sociais que promovam a igualdade social; outra, a do frio e frívolo economista subalterno que rende reverências aos economistas do FMI e do Banco Mundial (leia-se, obediência ao G-7).
          O verso “Sem Independência, sem Abolição” é representativo dessa denúncia da su-balternidade cardosiana e malaniana. Que país é independente com uma dívida tão grande, e sempre obedecendo a metas propostas de superávit primário ditadas pelo FMI? Os EUA, usando de todos os recursos escusos, como bem o sabemos, controlam-nos política, econômica e belicamente, com reflexos gritantes em nossa cultura de colonizados que, em muitos casos, nos deixamos ainda e passivamente ser. E a abolição? Já dizia Lobão, “A favela é a nova senzala”. Os presídios estão superlotados, e a grande maioria da população carcerária é com-posta de afro-descendentes. O problema maior, duro de encarar inclusive, é que a grande mai-oria dos brasileiros tem pouquíssima noção desses fatos, como ilustra o verso “Sem consciência”. É um problema de leitura (do mundo e da palavra) e, por isso, de falta de investimento financeiro e humano no setor educacional. Porém, combatendo tal déficit, o Bloco se exprime por meio de um basta de tudo isso (“Chega de ilusão, chega de extermínio. /E Colonização”), até de maneira erótico-satírica, metaforizando a condição menor do Brasil, de quem serve, de quem sempre perde nessas relações de poder, quando diz “Com os Estates na peteca/ De pal-mo em cima/ O Brasil a errar”.
          Em 2005, após alguns anos sem sair na Avenida, já que funcionava, por problemas pecuniários, como Bloco fixo, o Tá Feio retorna e retoma sua missão. Como a Diretoria, re-cém empossada, não tivera tempo para quase nada, o samba Brincadeira de peteca é o que sai a defender o posicionamento da Agremiação na Segunda-Feira Gorda desse Carnaval. É o único caso de repetição de enredo no Bloco. Mas isso não é um privilégio somente do Tá Feio, pois também no Rio de Janeiro tornou-se comum tal prática; contudo, lá o “vale a pena ver de novo‟ não tem nada a ver com falta de finanças, mas sim com colapso de criatividade. Já o Tá Feio, considerando o que nos ensina filosoficamente Zé Simão (o Macaco Simão, quase correligionário nosso por questão de sintonia mesmo), aproveita muito bem termos nas-cido no “País da Piada Pronta‟ para tematizar nosso cotidiano durante a „quadra momesca‟. E fazer humor, nesse caso, até como fator de denúncia, é como o Casseta & Planeta diz: “Fazer humor é uma coisa séria1” É o Que o Bloco é.

Tem culpa todo mundo, só não tem culpa eu (2006)

Tem culpa eu? Tem culpa eu?
Tem culpa todo mundo, 
Só não tem culpa eu!

De quem é a culpa,
Todo mundo quer saber.
Mosqueiro amarelou,
No Dê-Costa votou
Pra mudança acontecer.
Do SAAEB a água não rolou,
Só a conta é que chegou.
(refrão)


Nesta Ilha do Já-teve,
Já teve rasteira e empurrão,
Já teve mulher casada
Saindo com o Ricardão.
Essa política é besteira.
No transporte tem soco e trampescão.
Todo dia é confusão!
Na antes Gorda terça-feira,
Não há mais subvenção
(refrão)

A Glória do povo é ver para crer,
Ver navio aportando,
Ver a Ilha crescer,
Prometeu e não cumpriu.
E o povo continua a ver navio.
(refrão)


          O comum das pessoas irá dar relevo imediato à questão do duplo sentido ensejado pelo refrão (“Tem culpa todo mundo, / Só não tem culpa eu!”), tendo em vista seu caráter irônico –- talvez em tese mais adequado seria dizer “maldizente‟ –-, por causa de certa sugerência intra-estrutural motivada por um cacófato, que por ser tão evidente não necessita de maiores co-mentários. Mas, de modo algum, tal cacófato é gratuito, visto ser apenas um mote para se co-mentar a “culpa” pela eleição de um inepto para o governo municipal de Belém. Como o Blo-co é composto por cidadãos politizados, com formação por muitos rotulada de, por exemplo, anarco-socialista-sindicalista-petista-de-boteco, por aí assim… -- conforme disse certo ex-progressista-agora-ultradireitista-conservador-peessedebista-enquanto-no-poder --, mas que naturalmente prefeririam ser vistos como progressistas, a letra desse samba de 2006 não poderia nunca deixar de condenar as atitudes arbitrárias do ex-quase-nunca-talvez-futuro-médico Falsiomar Costa e suas mentiras em relação às “melhorias” que “iria” implementar na Ilha de Mosqueiro. Tudo balaela! A incompetência grassou e grassa ainda, como no exemplo do SAAEB, citado na letra. Quiseram, por meio de falácias, atribuir a incompetência própria à incompetência alheia, dizendo que a “culpa” era da gestão anterior, pelo péssimo serviço de não-fornecimento de água, diga-se de passagem, água mineral, vermelha de ferro, e negra de carvão mineral, certamente! Outro fato gritante é o caso do aumento do preço da passagem de ônibus urbano para ir para e vir de Belém: para resolver a questão da escassez de coletivos, toma aumento de tarifa! Quem ganhou? Como sempre... o empresariado. O povo, ficou chu-pando o dedo. Ficou a ver navios. Os ônibus, em número insuficiente, são disputados, ou e-ram, antes da nova tarifa de R$ 2, 20, a base da porrada, popularmente falando (“...tem soco e trampescão”). O Dudurão também não é dos que têm a mente e a mão abertas para a cultura, ainda mais se se tratar de verba para incentivar o Carnaval, o que faz qualquer cidadão sensa-to, sem precisar ser gênio, ou superdotado, inferir acerca da visão de mundo totalmente obtusa da parte desse gestor municipal, visão obtusa e turva que o impede de enxergar as amplas possibilidades turísticas e econômicas, além das culturais, claro. 
          Curiosíssimo, neste samba –- fato este quase imperceptível, até que se prove o contrá-rio, pelo menos -– é o dialogismo, a tal intertextualidade mantida entre esta letra e a letra do samba de Vitor Barata (registrado páginas atrás): é o Bloco homenageando a si mesmo, coisa ainda não testemunhada por mim, senão no caso da Portela há mais ou menos uma década, não estou bem certo. Outro intertexto importante é ter o samba devolvido, talvez vingado mesmo, os imprompérios de um “samba” de encomenda mercenário, pago “pra falar mal” da gestão municipal anterior à amarelidão covarde posta no poder, que deveria corar, ficar rubra de vergonha pelo fato de vomitar estes grunidos “A estrela vermelha não brilhou, se apagou”... Que tal lhe parece isso? É um absurdo conceptual, dialético-fenomenológico tal, que nenhum filósofo de vadiagem de beira-de-praia iria conceber sem se abasbacar de tal estapa-fúrdia idéia. Ora, se não brilhou, como poderia ter se apagado? Ou por outro lado: como poderia apagar-se, sem ter brilhado antes? Ou seja, brilhou, depois se apagou. A causa gera o efeito. Lógica matemática simples: combustível gera combustão, fogo, queima, e exaustão (o combustível acaba), aí, o fogo acaba... ops! A-p-a-g-a. Isso! Problema resolvido, basta pensar um pouquinho, basta p-e-n-s-a-r.


Agente vai, a gente fica (2008)

Agente vai, a gente fica!
Tchau Mal Vadeza, até nunca mais.
Tchau Mal Vadeza, que ninguém te atura mais.

Agente vai, a gente fica!
Gritou a dor da Ilha.
Estão querendo nos calar,
Mas o Tá Feio não vai se aquietar.
Como bem mostra a tradição:
A gente vai empentelhar.
Mal Vadeza e Bi Godão,

Não adianta intimidar.
Se for por falta de um adeus: Adeus, adeus, Mal Vadeza!
Mosqueiro assim te batizou,
Por conta dos desmandos teus.
Esqueces de te lembrar
Que a voz do povo é a voz de Deus.

Cansados de tanta repressão,
Saudades não vais deixar.
Vou ficar como estás:
D. COSTA, pra não te ver passar.
Vê se faz um favor:
Leva contigo

A sujeira que ficou por aí.
Nossa tarefa agora
É tentar reconstruir.

Agente vai, a gente fica!
Tchau Mal Vadeza, até nunca mais.
Tchau Mal Vadeza, que ninguém te atura mais.


          Em 2005, como já foi esclarecido, o Tá Feio, por motivos econômicos e falta de tem-po, e não por causa de lapsos de criatividade, desfilou cantando um enredo passado. Era o primeiro ano do administra-a-dor Falsiomar, na verdade, alguns meses apenas, cedo ainda para uma avaliação acurada sobre as velhacarias que já emergiam da lagoa da gaiatice -- naquele momento, represada-- da qual mais tarde ondas e ondas, já não mais represadas pela hipocrisia, começam a banhar as praias das notícias podres que inundariam as colunas de jornais sobre o governo municipal. É daí que surgem os sambas Tem culpa todo mundo, só não tem culpa eu (2006) e Se bobeias, danças (2007), seguidos do deste ano Agente vai, a gente fica, mote garimpado de um artigo de jornal do conhecido Prof. Claudionor Wanzeller (autor do livro Mosqueiro: lendas e mistérios).
           Como nos anos anteriores, o que mais fortemente emerge como caracterização desse samba, como elemento de escrita, de letra, é seu engajamento, seu tom não de denuncismo barato, mas de efetivo verismo de conteúdo. Tanto que, sabendo que iria receber novamente um “puxão de orelha” do Tá Feio, a agente distrital, enviou convite para diretores da Agremiação, alegando repasse de verba subvencional para o Carnaval. Maquiavelismo Puro! Usando desse sofisma, na verdade sua ação foi de quem, passando por cima da lei da liberdade de expressão -–que preside qualquer sistema democrático, onde quer que esteja no mundo todo --e tentou intimidar os representantes do Bloco com processos no Fórum, no Ministério Público, etc., e ainda deixou no ar a idéia de o Bloco ser impedido de desfilar na avenida, caso ela sofresse críticas pessoais. Acima de tudo, não queria seu nome mencionado na letra do samba. Até intimação judicial o presidente (Carlos Augusto Fonseca Mathias) rece-beu para se apresentar no Fórum, na quinta-feira (31/01/2008), pouco antes dos dias de Car-naval.
          É aí que ocorre o acontecimento mais excepcional em toda a história do Tá Feio: a exposição do fato na mídia. Avultam notícias nos jornais locais, seja em curtinhas, seja em colunas de dimensões maiores. Os documentos a seguir comprovam essa luta, em que as palavras vencem o terror (“a pena vence a espada”), a pressão, o abuso de autoridade. Jamais antes se produziu tanto documento escrito sobre o Tá Feio. E nada mais sólido do que a cobertura jornalística para comprovar a veracidade de tudo o que já vinha sendo posto às claras pelos componentes da nossa Agremiação Carnavalesca: o governo municipal atual, para qual o Tá Feio sugere que peça para defecar e saia de mansinho, enquanto pode, que dê um “a-deus”, respondendo com o rabinho entre as pernas ao adeus já dado à agente pelo Bloco, esse tal governo que não gosta da verdade (visto seu comandante-em-chefe ser quem é, o Falsiomar), não gosta do bom-senso, gosta de bolsos cheios –os deles,claro que não os nossos! – e de ser bajulado por seus asseclas e ser bajulador de seus alcaides. E, não querendo ser (mas sendo assim mesmo!) panfletário, assim como o “adeus” dado à Glorinha Mal Vadeza antecipou seu „adeus‟ real, o povo de Belém (e de todos os distritos, incluindo Mosqueiro) dará esse “adeus” ao Falsiomar e seus Testas-de-Ferro/agentes distritais nas urnas, em outubro. É, o Bloco profetizou, aconteceu. É o novo Nostradamus, o Tafeiamus. Na verdade, era adeus por ser o último ano dos quatro da administração, que não se reelegerá, mas que bom que a saída foi antecipada. Falsiomar pensou: “Demito essa doida –ponho num cargo melhor em Belém -- e o povo mosqueirense come na minha mão de novo. Ela é só um testa-de-ferro mes-mo!...” Mas dessa vez não, Dudurão! Não vem que não tem: essa é nossa resposta. Contudo, o Tá Feio ainda sofre com o abuso de “otoridade”, pois o “dotô delega”, Armando Mourão, no momento move processo contra o presidente do Bloco. É, a luta continua, Companheiros!


Fig. 3: colunas dos jornais O Liberal e Diário do Pará, cobrindo o abuso de poder perpetrado con-tra o Tá Feio.

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Fig. 4: outras colunas de jornal. Uma delas bem elogiosa em relação ao Bloco.

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          Vale ressaltar que a mídia veiculou essas “colunas‟ entre os dias 24/01/2008 e 11/02/2008. Portanto, pouco antes e pouco depois do Carnaval, que para o Bloco foi um sucesso, talvez até mesmo devido à pressão sofrida, servindo como motivação. Vencer a dura batalha de um Davi contra um Golias, luta injusta mesmo, só veio a despertar, pelo desafio vencido, o sentimento de vitória do grupo como um todo. Mas, conforme disse o jornal, o Tá Feio já vinha dando “o tom do Carnaval” desde o dia 02/02/2008, quando sua Musa (a bela Lorena) foi premiada com o 2º lugar no concurso Musa do Carnaval de Mosqueiro 2008.


Fig. 5: foto de Alcir Rodrigues: bateria da Estação 1ª. de Maracajá (em grande parte composta por crianças), “puxando” o desfile do Tá Feio.

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Carnaval 2005


          A atual Diretoria do Tá Feio empreende no momento uma busca por documentos que evidenciem a origem mais exata possível do Bloco, no espaço e no tempo, e também no ideá-rio de seus organizadores. De modo quase um tanto simplista, seria trilhar um caminho de volta aos primórdios da Agremiação, revelando-nos as respostas para questões básicas, mas essenciais: quando, o que, quem, onde, como, por que e para quê. Ou seja: 1. Data de funda-ção do bloco; 2. O que motivou seu nascimento; 3. Quem podem ser considerados seus fun-dadores; 4. Em que local tudo se iniciou; 5. Como se deu tal natividade; 6. Que fato(s) ou e-vento(s) é(são) causa(s) dessa emergência da Agremiação; 7. Finalmente, quem o fundou, para que finalidade o fez? É uma tarefa laboriosa. Claro, para tal empresa, faz-se necessário ter os mecanismos, as ferramentas para tal „pesquisa‟. Alguns documentos já foram resgata-dos, muito bem conservados por Aldo Rodrigues, fiel depositário, e, na verdade, proprietário desse rico tesouro histórico.
          A metodologia a servir como “ferramenta‟ de pesquisa busca apoio, inclusive, na História Social inglesa, a History from bellow, a História vista de baixo, a partir da perspectiva da História Oral, com base nos estudos de Paul Thompson, exposta muito claramente em seu livro A voz do passado: história oral. Então, necessariamente, entrevistas serão feitas com pessoas diretamente envolvidas com o Bloco, principalmente em sua fase embrionária (idos de 1979), para maiores esclarecimentos sobre a origem da Agremiação, quais propósitos, efe-tivamente, levaram pessoas a dar à luz o Bloco Carnavalesco Tá Feio.

Fig. 6: letra do primeiro samba do Tá Feio (arquivo de Aldo Rodrigues)

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(Trata-se de um texto, ainda datilografado, como se pode observar, com algumas cor-reções e acréscimos, feitos a caneta esferográfica, possivelmente, pelo próprio autor, Vítor Barata. (Uma verdadeira preciosidade, muito cobiçada inclusive pelas tradicionais casas de leilão de Londres.) Na verdade, até hoje não se conhece bem ao certo a melodia deste samba, que era cantado conforme a criatividade e improviso do vocalista, além do compasso da bate-ria.) 

 
Fig. 7: letra de samba de 1989 e artigo publicado pelo jornal O Liberal, escrito pelo brincan-te/Historiador (que, na atualidade, coordena o Núcleo de Educação Indígena da SEDUC) André Alvarez, em 1989, em homenagem aos 10 anos do Bloco (também arquivo de Aldo Rodrigues).

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*(A letra do samba, no documento acima, discrepa, totalmente, das outras letras escritas pelos compositores auto-intitulados Os Feios, por ser uma letra que não enviesa pelo trata-mento dado ao tema, normalmente satirizando o modus vivendi e a ideologia capitalista e pseudo-liberal da sociedade brasileira, ou escarnecendo e ridicularizando a inépcia e a hipo-crisia dos políticos e governantes brasileiros, em se tratando de âmbito local ou nacional. Des-tinou-se a um desfile convencional, primeiro, único e último dessa natureza, pois há um con-senso entre tafeienses de que esse tipo de desfile não se coaduna com a maneira de encarar o mundo da grande maioria brincante do Bloco. Foi uma exceção, todavia apenas para ser lem-brado, ficou para a História, como comumente se diz 2. Já o artigo de André Alvarez, trata-se de um texto de tom passional de um historiador recém-formado pela UFPA, brincante-fundador, folião de carteirinha do Bloco. Não obstante esse fato, faz séria uma análise do con-texto histórico, político e cultural, local e nacional, daquele último decênio (1979-1989: fins da Ditadura e início da retomada dos governos democráticos), com o Tá Feio ali inserido. Dá uma breve pincelada no momento original da Agremiação, buscando dar luz sobre o porquê
2 Na época o presidente era Sérgio Rabelo Furtado, proprietário do Bar e Mercearia O Empório‟s. Certa ocasião, Sérgio explicou que programou uma reunião urgente para decidir sobre esse desfile, para o qual já havia recebi-do a subvenção da Prefeitura de Belém. Como quase não houve quorum, quase que teve de decidir sozinho sobre esse tal desfile num carnaval do tipo „convencional‟. 
do nascimento do Bloco, fazendo inclusive intertexto com o livro Nós que amávamos tanto a revolução, parafraseado no título do artigo: “Nós que amamos tanto o Tá Feio”.)

**Na época o presidente era Sérgio Rabelo Furtado, proprietário do Bar e Mercearia O Empório‟s. Certa ocasião, Sérgio explicou que programou uma reunião urgente para decidir sobre esse desfile, para o qual já havia recebi-do a subvenção da Prefeitura de Belém. Como quase não houve quorum, quase que teve de decidir sozinho sobre esse tal desfile num carnaval do tipo „convencional‟.


Fig. 8: Letra de samba de 1999: uma letra coletiva, que gerou bastante confusão para se chegar a um consenso sobre conteúdo/forma.

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(Uma letra engajada na denúncia e luta contra a hipocrisia, a inépcia, o descaso e a corrupção que marcaram os dois mandatos consecutivos neoliberais do tucanato, com os re-gentes maiores dessa orquestra se denominando Fernando Henrique Cardoso e Pedro Malan, e bem para a burguesia, vilipendiaram as estatais e venderam-nas a preço de sucata para a iniciativa privada, que lucra quantias faraônicas com elas, como a Vale do Rio Doce, por exemplo.)


Fig. 9: Letra de samba de 2006. Letra também coletiva, com um processo de composição seme-lhante ao anterior.

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(Em 2005, Duciomar, o Falsiomar, assume a administração municipal, como prefeito de Belém. Como a parcela consciente dos cidadãos já sabia, tal administra-a-dor fechou as torneiras das verbas destinadas à saúde e saneamento, educação, cultura, lazer, e especificamente no Mosqueiro, turismo e transporte público, apesar de ter jurado “pela fé da mucura” (como diz Gueiros parafraseando Raymundo Mário Sobral) que transformaria a Ilha num pólo 
turístico tal qual as ilhas gregas: tropeçaríamos em turistas, em vez de eles tropeçarem em jacarés, como cantou o saudosíssimo Mosaico de Ravena.)

Fig. 10: foto de Edmilson L. Braz
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Carnaval 2007
*Da esquerda: Armando (no cavaquinho), Arnaldo (vocal, na espera), Bruno Andrade (vocal), Leirson (apoio moral e etílico), Daniel (vocal), Leocádio (Raimundo, apoio moral e etílico) e, infelizmente, como intruso (alien), Pote, que não participa do Bloco.

 

Fig. 11: Lorena, 2ª colocada no Musa do Carnaval do Mosqueiro 2008, pelo Tá Feio

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Fig. 12: destaque para a imensa quantidade de brincantes do Tá Feio, um dos blocos que mais a-traiu público no Carnaval 2008.

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***


          Como é de praxe no cinema, na tevê, o Tá Feio também tem suas curiosidades, extras, seu making off (até mesmo aquilo que ficou rotulado, infelizmente pela globo -–com minúscula mesmo!-- como “Falha nossa!”), ilustrando uma história merecedora de ser evidenciada e divulgada para a posteridade. Para tal, seguem aqui documentos que ilustram, comprovam e podem servir como estímulo a que outras agremiações carnavalescas de Mosqueiro busquem suas raízes como blocos ou escolas de samba, instituições culturais, portanto, em eterno processo de construção histórica, inclusive de identidade, de pertencimento (como povo) a um locus amazônida, regional, mas nunca por isso disserido de um contexto mais global, de Pará, de Brasil, de América Latina. O local dentro do global. 

Fig. 13: Manifesto, em tom profético, referindo-se ao Tá Feio como uma Fênix, criticando o boicote contra o desfile do Bloco na Segunda-Feira Gorda de 2007. Na Terça, sairia com força total.

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Documento enviado à Fumbel, como reação à ameaça da agente distrital, solicitando espaço no desfile oficial do Carnaval da Ilha 2008.


GRCBC TÁ FEIO

O GRCBC TÁ FEIO foi fundado em 1979, após a inativação prematura da agremiação A Grande Família (aqui do Mosqueiro), da qual o Tá Feio acabou por herdar alguns brincan-tes/fundadores e instrumentos da bateria. O nome remonta aos primórdios da Escola de Samba Quem são Eles, que nasceu com o nome de Tá Feio. O propósito com que os fundadores criaram esta agre-miação foi pautado pelo inconformismo com o tipo de „carnaval para turista ver‟, o carnaval formal e tradicional, fantasiado e bem bonito, o que não corroborava com o contexto social, histórico, cultural, político e, principalmente, econômico, pelo qual nosso país passava então. Tudo passa a lembrar precariedade (Como se pode ler em “Tá Feio! Tá Feio! / O homem sem cueca/ E a mulher sem porta-seio”, cantado pelos brincantes de então), principalmente a partir dos anos oitenta: tudo ruço, tudo „tá feio‟, nesse período de ínfimos salários e inflação galopante de Figueiredo e Delfim Neto, e segue adiante com Sarney e seu Plano Cruzado. (E depois, para piorar, viria Collor.) Nessa época (1986), o Tá Feio assume sua vocação para a denúncia, fazendo crítica construtiva por meio de uma postura de irreverência, inclusive retratando realisticamente a inépcia dantesca das autoridades e instituições “competentes”. Seu enredo, nesse ano, teve como tema “As horríveis noites de Carnaval”, que seria repetido, nos anos a seguir, como “As horríveis noites de Carnaval II”, e assim por diante. Em 1989, no decenário do Bloco, o historiador André Alvarez publica um artigo no jornal O Liberal, com o títu-lo “Nós que amamos tanto o Tá Feio”, e o Tá Feio, pela única (e última!) vez desfila como agremia-ção carnavalesca formal, com fantasias, adereços etc., com o tema “Ao despertar da folia”, ato de de-cisão isolada da Diretoria, o que muito desagradou os brincantes em geral, já que o período carnava-lesco para eles deveria, como condiz com sua remota origem, ser não só de festa, mas também de in-versão de valores. É nessa época, e só nela, que o pobre tem vez e voz: o morro, a baixada, a invasão; o operário, a doméstica, o desempregado têm seus poucos minutos de fama e de poder dizer, como no famoso samba de enredo, “Sou na vida um mendigo, / Na folia eu sou rei” (Beija-Flor). E por sua pos-tura afirmativa, até escarnecedora em alguns casos, e por não baixar a cerviz jamais aos poderosos e seus desmandos, o Tá Feio, não é de hoje, foi constantemente boicotado, ou posto para desfilar em último lugar. Mas, como se diz, sempre deu seu jeito. O boicote, também econômico, custou ao Bloco ter se tornado Bloco Fixo, isto é, não desfilava, em anos intermitentes durante a década de 1990. Con-tudo, como uma Fênix, o Bloco ressurge pujante ainda em 1999, com o tema “O Real virou cocô”. Em 2000, com o “Brincadeira de peteca”. Seguem outros anos de Bloco Fixo. Em 2005, com dificuldades, sai na avenida repetindo o tema de 2000. Já em 2006, vem com o irreprimível “Tem culpa todo mun-do, só não tem culpa eu”. Em 2007, o Tá Feio emplaca com “Se bobeias, danças”. Agora, em 2008, já está sendo gravado o samba “Agente vai, a gente fica”, na linha dos anteriores, com forte teor de iro-nia, de irreverência e criticidade construtiva que sempre marcaram o Carnaval do Tá Feio, desde sua fundação até hoje. Ano que vem, festejaremos, com imensa alegria e inexprimível orgulho, as três décadas de aniversário de nossa Agremiação. Por causa de toda essa História de luta e de Carnaval, verdadeiramente, o GRCBC TÁ FEIO vem solicitar de V. Exª, respeitosamente, um espaço para brincar e abrilhantar o Carnaval no Desfile Oficial da Prefeitura Municipal de Belém, na Ilha de Mos-queiro. Certos de poder contar com sua ajuda, afirmamos as expressões de nosso apreço e considera-ção:


__________________________________________________
-Presidente
CPF nº 282. 740. 592-04
Mosqueiro,..... de janeiro de 2008.


Fig. 14: enredo provisório/2008, que acabaria por ser adaptado, sobrevindo o que foi desenvolvido na avenida --“Agente vai, a gente fica”. 
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Fig. 15: Letra provisória do samba de enredo Tá Feio 2008, elaborada por um dos brincantes da Ala dos Compositores Feios, Leocádio, o Frei Serapião, rarefeitamente conhecido por Raimundo Nonato. 
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Fig. 16: letra provisória 2008, com algumas alterações, com a base principal calcada na letra do Leocádio. 
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Fig. 17: outra versão, que sofrerá alterações ainda, até chegar-se à última e definitiva, já transcrita nas págs. 13 e 14. 
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Fig. 18: a versão inicial da letra, advinda de um insight (na Quarta-Feira de Cinzas/2007) tido por nosso amigo, o Pe-Tê, brincante e compositor, também, da Ala dos Compositores Feios, mas que aca-bou por ser substituída pela das págs. 13 e 14.

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Fim de uma história começo de outra


          Agora que, finalmente -- desculpe-nos pelo trocadalho do carilho--- chegamos aos finalmentes deste texto, como diria deliciosamente um Odorico Paraguaçu, é cabível falar do Amanhã: para o Tá Feio, o amanhã, o que será?* Os projetos são, principalmente: 1. Regularização do Bloco, com um estatuto já elaborado pelo Presidente, o Sr. Carlos Augusto Fonse-ca Mathias**, esperando apenas avaliação e votação em reunião ordinária. Com isso, o Bloco torna-se ONG cultural e passa a ter CNPJ e conta em banco; 2. Produção de um CD com os sambas de enredo do Bloco, gravados e remasterizados, para divulgação pública; 3. Escrever (e por que não reescrever?) a memória da Agremiação***; 4. Planejamento do tema, enredo e samba 2009, como homenagem ao Trigésimo (30º) Aniversário do Tá Feio, ao mesmo tempo em que homenageia o Santo Protetor do Bloco, o São Caralho. Projetos, projetos... Alguém pode duvidar da capacidade de o Tá Feio “realizar sonhos possíveis”?****

 

* Em letra de samba dos Piratas da Ilha, Bíndalo, o Sacola, pergunta: “E o amanhã, o que será?/ Quero o fim da bomba nuclear”. 
** Por curiosidade apenas, os presidentes anteriores foram, Antônio Rodrigues, Sérgio Rabelo Furtado, Antônio Rodrigues, Arnaldo Farias Rodrigues, Alcir Rodrigues e, atualmente, Carlos Fonseca Mathias, já citado, respec-tivamente.
***Viva Sócrates! : “Conhece-te a ti mesmo.”
****Palavras de Paulo Freire. 

 

 
Ê eeeoôôôô, eeeôôôô
Tá Feiôô!

terça-feira, 1 de março de 2011

O poema "O bicho"

O poema “O bicho”, de Manuel Bandeira, integra o livro de poesia Belo belo, publicado em 1948. É tipicamente modernista: é o que se pode observar e afirmar, de chofre, em todos os aspectos: sonoro, lexical, sintático e semântico.
O texto se apresenta sob uma forma não-fixa e não-tradicional (não é soneto, ode, écloga ou haicai, por exemplo), dividido em três tercetos e um monóstico, com versos livres (isto é, polimétricos) com apenas rimas ocasionais. Observe:


Vi/on/tem/um/bi/ cho (5 sílabas poéticas)

Na _i/mun/dí/cie/do//tio (4)

Ca/tan/do/co/mi/d/a_en/tre_os/ de/ tri/ tos (9)




O 1º verso é um pentassílabo (redondilha menor); já o 2º, um hexassílabo; e o 3º, um eneassílabo, o que comprova a polimetria ou versilibrismo.
Abaixo, perceba as rimas ocasionais:

“Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão.
Não era um gato.
Não era um rato.”

A rima achava/examinava/cheirava não tem classificação na poética tradicional. Já a rima gato/rato poderia ser chamada de paralela ou emparelhada.
O ritmo poético, propriamente dito, surge apenas no 3º terceto. Nas demais estrofes, predomina o procedimento da prosa, como, aliás, é bastante comum a um texto narrativo, como é o caso do texto em questão.
No que diz respeito ao léxico, o poema apresenta apenas dois vocábulos da língua culta: detritos e voracidade. Nada que um dicionário não resolva. De resto, como é de praxe em um texto modernista, o nível de linguagem é o coloquial (o do cotidiano). Ou seja, uma linguagem próxima, bem próxima do povo.
Manuel Bandeira organiza “O bicho” como um filme hitchcockiano: vai em conta-gotas revelando-nos a trama, o enredo, para só no final, num clímax de emoção, de suspense, mostrar quem é o bicho -- um bicho-homem. Ou será um homem-bicho? Vejamos, por meio da estrutura da narrativa, a trilha especial por onde nos conduz Bandeira:
“Vi (ele, o eu-lírico, testemunhou o fato) ontem (quando? – no dia anterior ao qual foi escrito o poema) um bicho (quem? – o bicho-homem/homem-bicho) / Na imundície do pátio (onde? – o lugar, o ambiente onde se dá o fato) / Catando comida entre os detritos (o quê? -- a ação, o fato central). //Quando (quando? –- o tempo, o momento em que ocorre o fato) achava alguma coisa, / Não examinava nem cheirava: / Engolia com voracidade (como? – o modo como age o ser/personagem – o enredo). // O bicho não era um cão. / Não era um gato. / Não era um rato (quem? – aqui, para manter o suspense e elevar apenas no final a um máximo grau a emoção, o poeta diz quem não era o bicho). // O bicho, meu Deus, era um homem (eis aqui o ápice da emoção, do sentimento, da revelação).”
Só um elemento nos falta agora: o porquê: a semântica de tudo que está no texto, suas significações explícitas ou mesmo implícitas, conduzindo-nos a uma fulcral indagação a ser feita: por que “O bicho”, por que tal título? Seria ele condizente com o texto e com o contexto? Lógico que sim, já que o homem (o ser humano enfocado no poema, assim como milhões de outros como ele no mundo) , em face dos descasos dos governos, dos órgãos competentes, da própria sociedade e, muito provavelmente, por ser esquecido por sua família também, encontra-se abandonado à própria sorte, sem ter com que e com quem contar. Não era um tema fictício ou inatual naquela época a denúncia social, nem o seria agora, mais atual ainda do que nunca. É o ser marginalizado, animalizado pela degradação que o atinge física, psicológica e socialmente -- e não por sua escolha, lembremo-nos --, assumindo, aos olhos dos desinformados, ‘atitudes de bicho’.
Contudo, se o primeiro verso (“Vi ontem um bicho”) desperta o leitor para o sentimento da indignação pelo cruel e grotesco destino do “bicho”, e de milhões de desvalidos tais como ele mundo afora, já o último verso (“O bicho, meu Deus, era um homem”), permite o resgate da humana condição do ser, uma redenção, mesmo que apenas no plano do poético. Porém, um poético chocante, pois Bandeira expõe nua e cruamente a dura realidade que a hipocrisia da sociedade capitalista e de consumo tenta escamotear: a existência de centenas de milhões de deserdados das benesses sociais, pessoas que a miséria e o abandono, sem nenhuma dúvida, arrastam para uma condição de quase desumanizados.
Bandeira, por isso tudo, é testemunha de seu tempo e das mazelas sociais de então. Com aparente singeleza, constrói um poema que emociona e desperta para a reflexão, para perguntas imperiosas e que requereriam respostas mais que imediatas: Por que se abandonou o homem? Quem ganhou e ainda ganha com isso? Por que não revolucionamos essa sociedade falha? Podemos -- a curto, médio ou longo prazo (quem dera fosse a curto!) -- solucionar as questões sociais?... Ora, quem diria... É um pequeno-grande poema de um poeta gigante. Viva Bandeira!
E para quem o desconhece, aí vai “O bicho”:

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio,
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão.
Não era um gato.
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

"Autopsicografia" e Fernando Pessoa

Poder-se-ia dizer que Fernando Pessoa, como poeta, é um ser de extrema complexidade? Que sua poesia é, em conseqüência desse fato, altamente intrincada, ou mesmo hermética? Parecem ser indagações de grande pertinência, às quais tentaremos responder neste estudo do poema "Autopsicografia", ao qual atribuímos essencial valor dentro da obra desse ícone da literatura de língua portuguesa e (por que não?) da literatura moderna ocidental, isso por ser o texto não só um escrito de agradável leitura, mas também um poema-chave para a compreensão da obra do grande poeta português.

À primeira vista, o que percebemos logo é ser o poema agradável de ser lido, como já dissemos. Isto se dá, talvez, em decorrência do fato de ser uma escritura de apresentação formal simples ─ o que veremos mais adiante, pois o que aqui nos interessa, de momento, é uma visão mais geral conteudística.

Porém, há algo mais por trás dessa aparente simplicidade? Há, sim. Há muito mais. O que o texto nos diz numa leitura mais atenciosa? Diz-nos algo muito importante acerca do ato criador: que o poeta, ao contrário do que se pensava no Romantismo, não só transfigura a realidade, mas transfigura sua própria subjetividade ─ suas emoções individuais, dores, alegrias, anseios... ─ por meio do raciocínio, o que faz lembrar o trecho de um texto seu: "O que em mim sente 'stá pensando". Ora, este é o princípio do fingimento poético de Fernando Pessoa, que se contrapõe ao confessionalismo dos românticos e, em suma, é a essência da teoria intelectualista, que almeja explicar o ato criador.

Deparamo-nos, assim, com uma verdadeira arte-poética pessoana, segundo QUESADO (1976:18). Mas arte-poética de Pessoa, por quê? Ele inicia o poema com a definição: "O poeta é um fingidor". É bem genérico. É como se o enunciado fosse assim: todo poeta é um fingidor (inclusive ele); mas não é só por esse motivo, não. É que, tendo já conhecimento de sua obra, podemos, logo, fazer a seguinte relação: "Autopsicografia" é, em linguagem figurada, a porta de entrada (poema-chave, como nos referimos anteriormente) para o mundo poético pessoano: mundo desdobrado em que o homem Fernando Pessoa é, ao mesmo tempo, o poeta ortônimo e os poetas heterônimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis ─ os principais), cada um "com sua particular visão de mundo". E Ricardo Reis torna esse fato evidente nestes versos: "Tenho mais almas que uma. / Há mais eus do que eu mesmo."

O poema aqui estudado é de autoria do ortônimo, ou Fernando Pessoa "ele mesmo", que, segundo a Enciclopédia Mirador Internacional, l989, vol. 16, pág. 8847, "... é o de mais difícil apreensão: a todos preside, fala por todos, mas dá a impressão de ser ele mesmo um heterônimo."

E, agora, perguntamo-nos: por que o título "Autopsicografia"? Para esclarecer essa questão lembramos do lado ocultista de Fernando Pessoa (que chegou mesmo a confeccionar horóscopos para ganhar algum dinheiro), e, em seguida, recorremos a um dicionário específico. Em psicografia encontramos: "Faculdade de os médiuns, sob a atuação de Espíritos comunicantes, escrevem com a própria mão..." E em termos mais simples, achamos o seguinte num dicionário de língua portuguesa: "Ditado do espírito escrito pela mão do médium." Mas existe ainda o prefixo auto. O que podemos deduzir disso? Que o espírito que "encarnou" no poeta, para que este psicografasse seu ditado (do espírito), era o próprio ortônimo, o Fernando Pessoa "ele mesmo"? Podemos reportar aos versos de Ricardo Reis, que citamos. Mas preferimos a seguinte assertiva: "encarnou", por assim dizer, um "sujeito poético" no (médium) Fernando Pessoa, que em linguagem figurada psicografou o que lhe foi ditado. Então, "Autopsicografia" seria o ditado escrito (poema) do eu-ortônimo, "encarnado" em Fernando Pessoa, contendo uma definição de poeta, uma explicitação sobre o fazer poético ─ o processo de criação ─ e também sobre o processo de decodificação da mensagem poética pelo(s) leitor(es).

Estruturalmente, dividimos o poema em duas partes, em que a primeira sofre uma bipartição em estrofes. Explicaremos melhor: a parte primeira se divide em estrofe 1 e estrofe 2; e a parte segunda corresponde à última estrofe.

Na parte primeira o texto apresenta, essencialmente, os seguintes elementos discursivos, na primeira estrofe:

. o poeta como fingidor;

. a dor que ele finge;

. a dor que ele sente.

E na segunda estrofe:



. os que lêem;

. a dor lida;

. a dor que eles não têm.

A primeira estrofe trata do elemento poeta (emissor, elaborador do código) e a segunda, do elemento "os que lêem", ou leitores (receptores, decodificadores). Essa relação íntima emissor/receptores faz com que as duas estrofes constituam uma parte uma, como se o poeta engendrasse uma imagem para um referente, mas que só é captada pelos leitores como um reflexo no espelho. Ou de outro modo: o poeta sente a dor, mascara-a depois ao expressá-la; o leitor sente-a ao decodificá-la, porém não é ela sua dor, é a dor lida, que também já não corresponde às do poeta.

Quesado refere-se ainda a fingidor 1 (poeta) e fingidor 2 (leitor). Não nos deteremos muito neste aspecto. Apenas reforçamos a idéia de ser o poema uma porta de entrada para o mundo desdobrado de Pessoa em heterônimos e ortônimo, que se dá por meio do eixo sentimento/pensamento, que é linha-diretriz em "Autopsicografia".

Na parte segunda temos um reforço da primeira. O advérbio assim, no primeiro verso dessa estrofe, com sentido de desse modo, dessa maneira, faz uma espécie de (perdão pela redundância)"remissão para trás" ─ é, portanto, um anafórico ─ , o que caracteriza o aspecto de reforço ou redundância. Os principais elementos do discurso aqui são "razão" e "coração". Numa linguagem bem metafórica, em que estabelece a ligação entre o coração (sentimento) e um brinquedo ("comboio de corda"), o poeta diz que o sentir entrete (ilude, diverte) a razão, o pensar, como se o processo de criação também fosse um jogo.

A despeito de toda essa complexidade conteudística, é "Autopsicografia", como bem já o frisamos no início deste estudo, de estruturação formal simples. E a par de tudo o que é novidade em sua obra, entretanto, Pessoa "ele mesmo" utilizou-se também de recursos tradicionais: é o "poeta original e moderno dentro do tradicional", como salientou Celso Pedro Luft.

A construção estrófica em quadras (três) e o metro em redondilha maior (lembrando quadrinhas populares, mas com musicalidade bem pessoana) configuram claramente o gosto do autor pelo folclórico e popular.

O esquema rimático apresentado em cada estrofe é dos mais singelos: abab, abab, abab ─ rimas alternadas, sem lapso algum de preciosismo, pelo contrário, visto serem as rimas, quanto ao vocabulário, ricas e pobres. Há uma total inexistência, portanto, de raras, ou preciosas. Além de que, a par de todo um caráter formal simples apresentado, ainda encontramos algumas rimas que podem ser rotuladas, segundo a poética, como imperfeitas.

O poeta é parcimonioso quanto ao uso de figuras de linguagem, pois só percebemos com clareza a metáfora (principalmente) e a elipse.

Se tivermos que responder às questões propostas no início deste texto, diremos que o poeta é, realmente, como vimos no decorrer de nossa argumentação, um ser humano complexíssimo, juntamente com sua obra (é lógico), que entretanto não é hermética. A complexidade não deixa de ser uma marca do século XX, e Pessoa é homem e poeta deste século.

***

Para quem desconhece a obra, aqui está ela, para seu deleite e admiração, conforme figura no livro O eu profundo e os outros eus, página 104:

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.


E os que lêem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.


E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

***

Bibliografia

1. AULETE, Caldas.Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Delta SA, 1981. V. 4.

2. ENCICLOPÉDIA BARSA. Rio de Janeiro─São Paulo, Encyclopaedia Britannica Editores Ltda, 1981. p. 261.

3. ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL. São PauloRio de Janeiro, Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda, 1989. V. 16, p. 8846-47.

4. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Pequeno dicionário brasileiro de língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira SA, 1966. V. 2 (E-O).

5. GRANDE ENCICLOPÉDIA DELTA LAROUSSE. Rio de Janeiro, Delta AS, 1979. p. 5295.

6. PAULA, João Ferreira de. Dicionário de Parapsicologia, Metapsíquica e Espiritismo. São Paulo, Banco Cultural Brasileiro Ltda, 1970. V. III.

7. PESSOA, Fernando. O eu profundo eos outros eus: seleçãopoética;seleção e nota editorial de Afrânio Coutinho. 20ª ed. Rio de Janeiro, N. Fronteira, s/d.

8. QUESADO, José Clécio Basílio. O constelado Fernando Pessoa. Rio de Janeiro, Imago, 1976. 125 p.

O entre-lugar do discurso latino-americano

SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978.

Publicado no livro Uma literatura nos trópicos, este ensaio logo avulta no conceito de seus leitores, estudiosos de literatura, ou não, por estar vinculado aos Estudos Literários tanto como por alçar vôos mais abrangentes, em direção aos Estudos Culturais. Na ordem cronológica, aparece em primeiro plano no sumário, seguido destes outros: Retórica da verossimilhança, Eça, autor de Madame Bovary, O Ateneu: contradições e perquirições, A bagaceira: fábula moralizante, Os abutres, Caetano Veloso enquanto superastro, Bom conselho, O caminho circular da ficção, O assassinato de Mallarmé e, por fim, Análise e interpretação.

Resenhista: Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues

Ao buscarmos uma chave de leitura para resenharmos este texto, desde o subtítulo do livro, em cuja obra este ensaio está enfeixado "Ensaios sobre dependência cultural" , desde o próprio título O entre-lugar do discurso latino-americano, até mesmo em suas duas epígrafes, devemos partir da idéia de que o autor se situa realmente como um ensaísta (como já esboçamos no parágrafo anterior) que se arma de pressupostos não só dos Estudos Literários, em esferas mais estritas, mas também do conhecimento dos horizontes mais largos dos Estudos Culturais, cujas 'ferramentas' metodológicas vai buscar nas pesquisas mais contemporâneas dentro do âmbito da Filosofia, Sociologia, História, Geografia, Etnologia, etc., todavia não de maneira superposta ou sob forma de miscelânea, mas de modo transdisciplinar, de forma extremamente coesa e coerente com os tópicos que procura analisar, comparar e (re)interpretar, buscando soluções novas para problemas não tão novos assim, como o preconceito entre metrópole e colônia, colonizador e colonizado, europeu e latino-americano, etc., com o caráter de superior sempre atribuído aos membros primeiros destes pares dicotômicos, ficando os segundos com o estigma de inferiores. E por causa de seu posicionamento frente a problemáticas contemporâneas dos Estudos Literários, é difícil ler Santiago obrigando-se a situá-lo frente às correntes críticas contemporâneas, tendo em vista sua flutuação coerente entre todos os pós-estruturalismos (Marxismo, Desconstrução, Teoria Pós-Colonial, etc.).

Para Silviano Santiago, como já dito, faz-se necessária uma inversão de valores, buscar para a Latino-América seu lugar no mundo da cultura, e da literatura. E aprofundando a questão, analisando 'microscopicamente' o título do ensaio, diríamos ser um lugar entre outros (lugar de interação, de dialogismo bakhtiniano mesmo), o da miscigenação, que não é de um (o europeu) nem de outro (o autóctone), é o do meio, do diferente, do novo, do renascido. O discurso referido seria literário, ou não, de início, pois que no título o vocábulo "discurso" não está determinado, a não ser pela exclusão da Norte-América, tão ou quase tão colonizadora quanto a Europa, quando exporta para os latino-americanos tudo quanto é produto de massificação, em todos os sentidos. Por esses motivos, o discurso dos latino-americanos não pode, não deve e não é europeu, nem, tampouco, norte-americano.

Desde a primeira epígrafe, de Antônio Callado, Santiago já demonstra aderir ao Antropofagismo, à assimilação de virtudes culturais e descarte de valores estéreis e ultrapassados, típicos da Europa colonialista/neocolonialista. Apoiando-se em Foucault, na segunda epígrafe, e mais tarde, no corpo do texto, em Derrida, o estudioso quer estabelecer a negação de noções que sempre algemaram o pensamento do povo que é 'dependente cultural': a continuidade, pela influência, pela duplicação especular que na verdade é uma forma de unificação do que é plural de valores impostos pela violência com que foram transmitidos. Em vez disso, quer ele (o autor) uma (re)valorização do que é diferente e pluricultural, extirpando do discurso literário os valores de unidade e pureza.

Comparando o ensaísta a outros críticos respeitados, percebemos de chofre seu pensamento rebelde: enquanto Antônio Cândido e Flávio Kothe (não citados por Silviano) podem considerar certos autores brasileiros e mesmo outros latino-americanos como escritores de obras "parasitas" (analisando sua produção a partir do prisma das fontes e influências, considerando a verdade de seus textos estigmatizada pela imitação/dívida), o estudioso diz ser necessário declarar falido este tipo de método comparativo preconceituoso, elegendo a diferença como 'o' essencial valor crítico das obras de escritores da Latino-América. Defende uma falsa submissão, uma subversão mesmo, da obra segunda, recriada de uma primeira, que 'sofreria' com esta nova (que a relê, que a reescreve e reinterpreta) um processo de enriquecimento interpretativo, a partir de um pastiche, de uma versão parodística e inquieta.

Desse modo, segundo o autor, deve nascer uma nova Literatura Comparada, renovada e metodologicamente mais bem equipada para seu trabalho de disciplina científica de apoio aos Estudos Literários, os quais, agora, podem ter uma visão mais benevolente em relação a nosso passado literário, dar menor importância a certas condições do tempo pretérito e visualizar o presente primoroso da produção literária latino-americana, com a plêiade de autores extraordinários, como Borges, citado por Silviano, como Rosa, e muitos outros, que só fazem a imaginação voar para um futuro até mesmo extraordinário para esta nova e contemporânealiteratura, que já terá uma tradição autóctone da qual se apropriar, como novos modelos a alimentar a alma literária de mensagens polifônicas, intertextuais, agora supervalorizadas como nunca neste atual horizonte literário, que compreende o escritor como, nas palavras de Santiago, "devorador de livros", um leitor por excelência, antes de ser escritor e antropófago, a realizar a 'travessia', a junção étnica, estilística, multicultural, só possível aos latino-americanos, que, finalmente, encontram seu lugar de discurso: o lugar-entre, o seu-próprio.

Resumo do romance Ponte do Galo


A história do romance Ponte do Galo se passa no início da década de 1920 e divide-se em duas partes, às quais o autor não deu título. Na primeira (que vai da página 03 à 120), o personagem central Alfredo regressou de seus estudos na capital, Belém. Ele tem nesse momento 17 anos, já é um ginasiano da segunda série [1] e retornou para Cachoeira, no arquipélago de Marajó, com o intuito de passar as férias no chalé dos pais, o Major da Guarda Nacional Alberto Coimbra, e dona Amélia, esta que se empenhou como pôde em realizar o sonho do filho de ir estudar na cidade grande.

Na pequena Vila onde nascera, Alfredo passa o tempo revendo personagens familiares, como o tio Sebastião, irmão de dona Amélia, e outros da redondeza, como o Salu da venda, Dadá, Rodolfo e Didico (irmãos de Lucíola, a solteirona suicida que queria criar Alfredo como seu filho) e a prostituta Sabá Manjerona, entre outros conhecidos do personagem. Todavia, acima de tudo, o ginasiano permanecia mesmo era dentro de um recinto do chalé, a saleta, nicho que tomaria para si nesse período, com toda a nostalgia de ter sido espaço de predileção de seu irmão, Eutanázio, morto após quarenta dias de agonia. Era esse também o espaço preferido de seu pai, onde ficavam seus catálogos e livros, além da tipografia.

Instigado por dona Amélia a sair de casa, a dar um passeio, Alfredo teve encontros marcantes com pessoas com quem manteve conversa, pontos altos dentro da narrativa. Foi à casa dos irmãos Saraivas e lá encontrou Dadá, que reclamou, dizendo-se farta da cidade, remoendo mágoa por uma Belém da época em que a vida era mais promissora para sua família. Falou também com o Salu da venda do trapiche que, entre outras coisas, contou a Alfredo que não podia mais ler, pois tinha a vista e a curiosidade cansadas. O cupim é quem lia então seus livros. Encontrou na lagoinha Didico, que lhe disse, mentindo, ter dado seu barco. Encontrou muitos outros personagens que povoavam a cidadezinha de Cachoeira. De todos eles, destaque se dê à Sabá Manjerona, uma prostituta, que lhe facilitou um 'encontro' com uma mocinha da idade dele, página entre lírica e erótica do flanar de Alfredo pelas noites cachoeirenses.

Além do encontro e da conversa mantida com seu tio Sebastião, que lhe pediu segredo de sua estada por ali, destacam-se os momentos memorialísticos do filho do major Alberto. A mente se dispersa e 'viaja' para Belém, para suas ruas suburbanas, perdendo-se em digressões, em questionamentos sobre o paradeiro das personagens Luciana e Andreza, sobre Edmundo e sua lenda, a cavalgar no lombo do búfalo e levar embora consigo as moças de Cachoeira, sobre enfim seu desalento com o tipo de ensino obrigado a 'assimilar' no ginásio.

Pela atitude pacata, sonhadora e passiva de seu pai diante da vida que levava em Cachoeira, o filho não recebia a atenção paterna desejada, como por exemplo a resposta que queria às cartas enviadas de Belém. Por isso, era com a mãe que Alfredo procurava dialogar. Sendo o pai branco e letrado, totalmente diferente da mãe ― negra e iletrada ―, era de se imaginar que ele é quem deveria responder aos questionamentos do filho. Contudo, esse alento somente encontrava na figura de sua mãe. Esta, em dado momento, relembrou e lhe contou o fim de uma história que ficou por terminar quando diante dele, de Mariinha e de Andreza, ainda em Três casas e um rio, perdeu o fio da meada e prometeu para mais tarde terminá-la. Trata-se da história oral "O velho e o lilás".

A segunda parte do romance (da página 121 à 175) situa Alfredo já de volta aos estudos em Belém, cidade antes de encanto para o menino, que aos poucos se transformou, aos olhos do adolescente, em desencanto. Então sua 'musa' deixou de ser uma cidade de sonho (como lhe pintaram Belém em Chove nos campos de Cachoeira [2]), para se tornar uma cidade de periferia, noturna, feia, cidade pós-lemismo [3], decadente e labiríntica para um Teseu que não encontra sua Ariadne, muito menos o fio a lhe guiar na sua busca por Luciana (CHAVES, Ernani, 2006, p. 40). Dona Santa, sua filha dona Dudu, suas netas órfãs Ana, Nini e a sobrinha ausente sempre presente Luciana vivem e emanam vida na voz e na mente do narrador e de Alfredo, possibilitadores, os dois, de nosso passeio ― como leitores que somos ― por uma ponte interligadora entre oAlfredo menino e o Alfredo adolescente.

Assim como em Cachoeira, pontos altos são os encontros e conversas marcantes com inúmeros personagens pelas noites do subúrbio belenense, no perambular sem fim do ginasiano pelas ruas principalmente do Telégrafo, ali pelas proximidades da Ponte do Galo. De dia, entre o ir para e o vir de Alfredo do ginásio, estava sempre ao telefone a dona Brasiliana, sempre a falar alto, a alardear suas influências com os poderes públicos, a dar opinião sobre a "questã" de terras do Cel. Braulino Boaventura ― o Cel. Delabençoe―, sobre a enjeitada filha deste, Luciana, tentando saber de Alfredo alguma informação sobre esta.

Ao perambular de dona Santa pela noite, sempre no seu trabalho mal remunerado de parteira, junta-se a busca zelosa por suas netas, Nini e Ana, principalmente esta, sempre à procura de um velório. Muitas vezes, Alfredo acompanhava a idosa. Outras, o filho de dona Amélia ia sozinho, no que encontrava Ana, sempre a escapulir deste. Nessas caminhadas, era possível ver Zuzu, embaixo da jaqueira, a se defender dos moleques que a perturbavam. É bem patente a chamada de atenção do narrador para as roupas rasgadas e sumárias de Zuzu, a denunciar sua extrema pobreza.

Às conversas com dona Dudu, esta costurando sempre e sempre criticando a ingenuidade da mãe dona Santa em relação às netas desta, junta-se a conversa com Esméia, a que queria conhecer o palacete do Cel. Delabençoe, e acaba por convencer Alfredo, que a conduz pela casa às escuras no fim de Ponte do Galo, quando são por Ana flagrados,escapando de dentro da casa, pulando a janela da frente, quando temos o epílogo do romance, com estas palavras bem significativas e quase proféticas, proferidas por Ana: "― Botaram vocês dois pela janela?"

É possível a errônea inferência de que o tratamento dado ao espaço de Cachoeira seja mais enfático que o dado ao de Belém, em face da disparidade de quantidade de páginas a mais dedicadas à primeira parte do livro, que é de 117 páginas, em oposição às 54 da segunda. Mas a intersecção dos espaços (sobre o que adiante nos debruçaremos com profundidade) anula essa impressão e o espaço belenense avulta em importância no romance.

Embora constitua o sétimo livro do Extremo-Norte, Ponte do Galo, no nosso entender, pode ser lido isoladamente, por compor um todo íntegro em seu universo ficcional. No entanto, sendo assim parte de vasta obra cíclica, sua leitura pode e ― mais que isso ― deve ser feita no contexto do ciclo do qual o livro faz parte, com isso ganhando o leitor um redimensionamento de compreensão, um enriquecimento mesmo do processo de recepção da obra do romancista marajoara, o que pode levá-lo a considerar esse romance como um rio afluente cujo curso deságua em um rio maior, que é o conjunto das dez obras. Assim, as águas que passam por Ponte do Galo (tomando-as aqui como uma figuração da passagem do tempo) certamente já passaram por sob outras pontes e trapiches nos seis romances que o precedem e continuam passando pelos outros três que o sucedem.