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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Mais outras do Seu Alexandre

Veneno pra rato

       Seu Alexandre, em um certo mercadinho, na Vila, perguntou se o dono do estabelecimento se este tinha veneno para rato, no que foi atendido com uma afirmativa.

       Ou porque Seu Alexandre estava interessado em algum outro produto e já estava a procurá-lo, ou porque já desistira da compra porque não gostou do produto que lhe mostraram como “o melhor da praça”, ou porque já matutava alguma outra coisa, perguntaram-lhe:

       ―O senhor vai levar o veneno pra rato?

       Não teve outra...

        ―Não... Vou lá em casa, trazer o rato pra ele comer o veneno aqui...

        Só o Seu Alexandre mesmo!

Lanche completo

         Seu Alexandre foi comprar um lanche e pediu um hambúrguer. O rapaz anotou o pedido, mas como parecia um tanto ocupado, esqueceu de lhe fazer uma perguntinha básica. Repassou o pedido para a pessoa que estava preparando os lanches na chapa. Percebendo a falta de algo no pedido, retornou-o ao atendente, que incontinente foi ter com Seu Alexandre, que já é pessoa de grande fama na comunidade. Perguntou-lhe, de chofre:

        ―Seu Alexandre, o senhor quer um hambúrguer completo?

        Não poderia obter outra resposta, além desta:

        ―Não... Me dá só metade, que amanhã eu volto pra comer a outra metade!...

        Seu Alexandre tem cada uma mesmo...

Pato Donald

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Algumas do Seu Alexandre

Ônibus e banhista

Um Zé-Apressadinho, azafamadíssimo, ao passar próximo à casa de Seu Alexandre, no famosíssimo bairro do Maracajá, dispara esta pergunta:

 Seu Alexandre, esse ônibus que vem aí vai pra praia?

No que este, olhando para o coletivo vindo na direção deles, subindo a Siqueira Mendes, dá ao indagador a informação solicitada:

 Se ele vier de sunga e óculos escuros... sim.

Lula Rindo

Esse cachorro é capado

Seu Alexandre vai visitar sua sobrinha, na casa dela. Ao chegar lá, bate palmas, no que é recebido nada amistosamente por um cachorrão deste tamanho! Au! Au! Au! Au!

Repete as palmas, dessa vez mais enérgicas. A resposta? O cachorrão, de novo: AU! AU! AU! AU! AU! AU!...

Lá pela quinta vez que seu Alexandre bate palmas, eis que surge, na janela frontal da casa, a figura esperada, que lhe diz:

– Pode entrar, tio. Esse cachorro é capado.

A resposta de seu Alexandre não poderia ser outra:

– Uh! Minha filha, não estou preocupado que esse cachorro me enrabe!...

Cão risonho

A nova Biblioteca de Mosqueiro

Com a fluidez do pensamento, meditando um pouco vaga e livremente sobre as coisas, veio-me à mente aquela máxima latina, que não necessita de tradução: “TEMPUS FUGIT”. É, realmente, o tempo alça voos e foge. Em 13/12/2007, o jornalista Elias Ribeiro Pinto publicou matéria enviada a ele por mim sobre a Biblioteca Municipal Cândido Marinho Rocha. Na ocasião, expliquei no artigo que a biblioteca fora criada por decreto do prefeito Coutinho Jorge, em 1987, e que deveria ainda existir, só que no papel, apenas lá, entre traças e fungos, visto que fora “transformada” em auditório, por um agente distrital inconsequente.

Eis aí que, por estes tempos, o TRE convoca-me a prestar serviços nas eleições 2010. A reunião seria na Agência Distrital de Mosqueiro. Ao chegar lá ―era dia 18/09/2010, um sábado―, indicaram-me que seria no “Auditório”, o mesmo prédio da antiga biblioteca. O local estava repleto de gente. Nenhuma cadeira para os futuros mesários se sentarem, nenhum ventilador. Gente pingando de suor. Bem, aquilo jamais poderia ser chamado de auditório! Nem biblioteca poderia ser, mas já o foi.

Em um canto, livros empilhados e amarrados por fios, alguns novos, outros, bem velhos, alguns bem conservados e novos! Outros, nem tanto. O curioso é que estavam ali misturados a pacotes de cerveja e isopores apreendidos pela turma da Secon (Secretaria Municipal de Economia, popularmente chamado de Rapa). Que ambiente para livros, hem?! Mas a surpresa maior veio quando vi, ali entre livros didáticos enviados pelo MEC (que deveriam estar nas escolas para serem entregues aos alunos), o carimbo da Biblioteca, bem próximo de uma pasta, onde se liam anotações de novas doações de livros. Como é? ― pensei. A biblioteca, que foi transformada em auditório, que também não existe, ainda recebe doações de livros?

Foi aí que me veio à lembrança a letra da canção de Caetano Veloso, da época em que ele ainda sabia compor música com letra menos banal que na atualidade:

“Um mero serviçal
Do narcotráfico
Foi encontrado na ruína
De uma escola em construção...

Aqui tudo parece
Que era ainda construção
E já é ruína
Tudo é menino, menina
No olho da rua
O asfalto, a ponte, o viaduto
Ganindo pra lua
Nada continua...”

Trata-se de passagem da canção “Fora da ordem”, do CD Circuladô, de 1991. Analogamente ao que diz a letra, vamos analisar certa situação em Mosqueiro: O Ministério da Educação (MEC), em convênio com o Instituto + Cultura, com a contrapartida (mínima) da Prefeitura de Belém, deveriam construir três bibliotecas públicas na capital do Pará. Das três, uma seria no Mosqueiro. O prédio? Uma ruína, a ruína do Educandário Nazareno, o antigo prédio da Semec (Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Belém), filial de Mosqueiro.

Até aí, tudo bem, pois a revitalização de um prédio histórico é sempre bem-vinda, ainda mais com a finalidade que passaria a ter. O problema vai ser revelado agora: tal instituição, tão essencial, seria entregue em dezembro de 2010. Ou seja, o que é construção, já é ruína, literalmente, assim como o projeto também. Sem a contrapartida da prefeitura, estou convicto, nada poderá sair do papel. Na cabeça dos ilhéus, fica a pergunta: a futura segunda biblioteca de Mosqueiro poderá vir a existir apenas no papel (assim como se pode forjar um cidadão de papel, dobrado ao gosto do origamista, se é que se pode chamar assim a autoridade que faz do povo “gato e sapato”), ficando lá tão-somente a ruína do que deveria ser?

Imagem007 Foto do referido prédio (em ruínas)

Alcir postou

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

(Des)Encontrando

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Saí daqui de minha Ilha,

voando entre nuvens evasivas,

vendo a pardacenta Baía de Marajó

passar abaixo e diante de meus olhos

como uma bela película em Cinemascope,

rápida e volatilmente, e cheguei

aportando em Cachoeira.

A primeira visita a fazer?

Ao chalé,

onde ouvi as vozes de Eutanázio & Mariinha,

lamentosas ecoando entre as paredes,

que em resposta ouvem as do Major Alberto

folheando livros na saleta das tipografias

e declamando poemas para uma Dona Amélia atenta,

que depois vai contar uma historinha

―se não se perder nas líquidas ilusões de sua despensa ―,

para um curioso rapazinho feridento,

com seu carocinho de tucumã no bolso

e uma fértil mente imaginativa,

voando pelos espaços rumo à cidade grande.

Minu latia para os encantados bois

no fundo do quintal, mugindo por mais capim

e menos água, um adeus à sucuri debaixo do jirau.

Almejei por encontrar Andreza,

vestindo sua pele de cobra coral,

quando passeei ao redor da lagoinha.

Em minhá imaginação, vejo esta cena:

O rapaz, pelo buraquinho do assoalho,

querendo pescar jijus, em busca dos peixes,

ou de si mesmo menino brincando

no tanque com os carocinhos de tucumã,

vê a mim, em flagrante, a espiar-lhe,

buscando na poesia nostálgica

de sua trajetória de vida,

uma saída para meu itinerário de labirinto,

sendas abertas para o passado em rememoração,

e um portal quase eternamente

fechado para o futuro.

Imaginei, para muito além do chalé,

todo um mundão de campos,

às vezes verdes, às vezes queimados,

às vezes inundados...

Vi, com estes olhos que a solidão

há de jamais devorar,

o Dr. Edmundo,

no lombo de seu búfalo branco,

mas sem nenhuma donzela na garupa,

a se embrenhar no mondongo,

ou em sua mítica fazenda da família,

os Menezes,

uma paragem fantasmagórica

belamente denominada de Marinatambalo.

O medo me é uma sombra rastejante de Edgar Menezes,

assassino e prefeito de polícia,

paradoxal imagem de injustiça reinante

por todo o arquipélago, reflexo do poder patriarcal

e do latifúndio que poucos premia

e à maioria castiga: “aristocracia de pé no chão”,

chão encharcado da imaginação

de Dalcídio.

E Dadá, onde estará?

em algum lugar,

a remoer suas mágoas e seus irmãos suicidas...

A Lucíola... Didico tocando piston,

ou pescando os já raros peixes miúdos,

que já não podem mais sustentar tantas amásias...

E Rodolfo deve estar dormindo a sesta,

sonhando com a bobina nova de papel

prometida pelo intendente

Dr. Lustosa,

que pôs cerca em tudo quanto é terra

que cerca Cachoeira, proprietário da Fazenda Bem Comum!...

Por onde andarão Tio Sebastião e Dolores?

―Perdido casal por este mundão de terra e água de Marajó?

É gente demais por encontrar

e,

por ser visita tão breve e não planejada,

não me posso ir sem antes

sentir o cheiro de Sabá Manjerona,

ocupdada com homens em seu barraco,

ou por lá mesmo no cemitério

(ou cemiteros?)...

Os campos de Dalcídio,

seus chãos encharcados

,

as vielas escuras,

os campos queimados,

além de terras cercadas

pelo arame farpado,

pela ganância

e

pela lama,

não mais são que as páginas,

linhas e linhas

que a vista percorre vorazmente,

páginas que são pessoas em suas singelas

alegrias e contínuas dores,

tudo-tudo

espraiado extremamente em dez volumes...

Por ali só não pude encontrar Alfredo.

Talvez por que se tenha tornado

ele

uma sombra apenas,

sombra de uma Cachoeira de cartão postal

perdida entre a memória,

as marés

e o sonho,

sei lá se dele

sei lá se meu

sei lá se seu

sei lá se de Dalcídio

sei lá se de todos nós,

leitores,

num folhear de páginas-marés,

num eterno encheparavazaenche...

Ouvi contar, entre vozes de linhas mal-ouvidas,

ou bem,

que

Alfredo

c

a

i

u          por vontade própria, de sua

              Ribanceira rumo ao rio,

cujo curso aflui sabe lá aonde,

levando-o talvez a um oceano

que se tiver fim,

este é

o próprio e inapagável começo.

Acima do espelho d’água

paira a consciência de Dalcídio,

que vê seu personagem rumando

―livre―,

por sua própria alteridade,

para um horizonte distante,

dele só, e único, singular...

Eu, de minha parte,

custa-me fechar o livro

―desfazer a “viagem”―,

Encaixá-lo entre outros dez,

na estante,

sair de casa e ver o mundo,

viver o mundo, para além desta Ilha...

Sair no mundo

a escrever minhas próprias páginas...

10653406

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Você já ouviu falar de Mosqueiro como a terra do “Já-Teve”? Pois é, até cinema já teve

Pedro Veriano, crítico de cinema, escreveu o livro Cinema no tucupi (1999), cujo capítulo “Cinema em Icoaraci e Mosqueiro” trata do Cine Guajarino, o cinema que Mosqueiro perdeu:

Pedro Veriano 2 ScannedImage-2

Cinema em Icoaraci e Mosqueiro

As vilas balneárias do município de Belém, Icoaraci (antes chamada Pinheiro) e Mosqueiro, tiveram os seus cinemas. Icoaraci teve dois: Ipiranga e Guanabara. O primeiro durou mais tempo. Exibiu na sua melhor fase os filmes da empresa Severiano Ribeiro, antes Cinematográfica Paraense Ltda. No fim de carreira, os do empresário Carneiro Pinto, dono do Cinema Argus, no município de Castanhal, considerado o “cabeça de circuito interiorano” (Carneiro fornecia filmes para diversas cidades do Pará e até do Maranhão, como Imperatriz). O Cine Guanabara foi utilizado por outro empresário, Nélio Pinto. Exibiu filmes em 35mm e 16mm. Por pouco tempo.

No Mosqueiro existiu o Guajarino, na Praça da Matriz (Vila). Fundado em 1912, ainda na fase da chamada “cena muda”, sobreviveu até 1976, quando regrediu à bitola amadorista (16mm), exibindo faroeste italiano da firma que pertenceu a Hiran Bechara, dono do cinema do município de Marabá, depois a Manoel Teodoro de Miranda.

O Guajarino foi orientado por muitos anos pelo bancário Paulo Monteiro. Antes dele, pertenceu ao Sr. Bianor Carneiro, que o comprou do fundador, Pires Teixeira. Nos primeiros anos do cinema existia um trem, que o povo apelidava de “Pata Choca”, ligando o centro da ilha à Praia do Chapéu Virado. É interessante observar que a inauguração da linha férrea foi filmada por Ramon de Baños[1].

No dia 13 de dezembro de 1975, eu publiquei em A Província do Pará uma reportagem sobre o cinema de Mosqueiro. Disse, na ocasião, que havia público para uma sessão noturna diária e vesperais aos sábados e domingos durante muitos anos. Filmes como ...E o vento levou e Os dez mandamentos produziam enormes filas e tornavam-se motivo de comentários da população. “―Não tinha televisão, a noite era monótona”, dizia Monteiro. “―As coisas foram mudando com as antenas de TV nos telhados. Chegaram as novelas e ninguém perdia um capítulo para ver um filme...”

Mas o Guajarino não foi o único cinema da ilha que disputa com o município de Salinópolis a frequência dos que procuram balneários em Belém. Em 1955 e 1957 eu mesmo montei um cinema para filmes em 16mm num antigo mercado, no Chapéu Virado, que na época funcionava como escola pública (e voltaria a ser mercado nos anos 70). Como não havia energia elétrica suficiente, puxava um cabo do gerador do Hotel do Russo, próximo do local. As carteiras da escola funcionavam de poltronas. As piadas não falhavam: “―Eu depois de velho voltei à escola...”

A versão 55 foi a mais concorrida. Lembro de uma frequentadora assídua, a então Miss Pará, Gilda Medeiros. Ela se tornaria atriz do cinema nacional, fazendo filme com atores famosos como Alberto Ruschell (de O cangaceiro, versão 1953) e sob a direção de cineastas tarimbados como Fernando de Barros, um dos remanescentes da Cia. Cinematográfica Vera Cruz (SP). Um desses filmes, Riacho de sangue, ganhou distribuição nacional, e muitos anos mais tarde, longe de câmeras e roteiros, Gilda falou-me, com saudades, da produção.

Um episódio curioso que bem ilustra o que representou o cinema alternativo nas férias de julho, no Mosqueiro, aconteceu em 1957. Os filmes eram alugados em Belém de um representante da RKO Rádio, F. Aguiar & Cia. Havia uma programação traçada, mas era possível uma falha. O problema é que a cópia chegava pelo navio (não havia estrada ligando Mosqueiro ao centro de Belém) às 18h30 e a exibição tinha o horário padrão de 20h30. Quando estava anunciado o clássico King Kong, de Ernest B. Schoedsack e Merian C. Cooper, chegou, em cima da hora, O seu tipo de mulher, aventura policial com Robert Mitchum e Jane Russell. Eu tinha passado o dia orientando a colocação de um cartaz gigante, na porta do cinema, com o desenho de um gorila. Com a troca do programa, segui direto do trapiche, onde atracava o navio, para a escola-mercado. Cheguei às 19 horas e já havia fila. Muito depressa, arranquei o cartaz de King Kong e escrevi num pedaço de cartolina o título do novo filme. Quando terminei a operação, estava cercado por espectadores indignados. Pensei que, enfim, a mania de cinema ia me legar uma surra. Procurei explicar, mas a vaia não deixou. Corri para o jipe que me transportava nessas aventuras e fui para casa criar coragem para voltar às 20 horas. Voltei, mas não vi público. Aliás, não vi público daí em diante. A falta do King Kong deixou um saldo de descrédito. No último dia das férias (e o cinema só funcionava nas férias), exibi em duas sessões o desenho Alice no País das Maravilhas. Recepção morna. Foi o fim de um tempo. Nunca mais voltei com o projetor para o Mosqueiro. Dez anos depois, o próprio Guajarino encerrou suas atividades com as máquinas jurássicas de 35 mm vendidas. A fase posterior, que eu vi como pré-agônica, durou pouco. O quadro minúsculo da bitola tentou em vão ressuscitar um hábito. Mas nesse tempo a conversa, na vila, era sobre o filme da TV ou a novela das oito.

MOSQUEIRO CINE GUAJARINONesta foto de carnaval, é possível ver-se, ao fundo, parte da fachada do saudoso Cine Guajarino!


[1] O filme curta-metragem, perdido, é Da Vila ao Chapéu Virado de trem, de 1912.


Muito se deve agradecer a Pedro Veriano por essas informações tão preciosas sobre o Cine Guajarino, já que dele nem o prédio ficou, com sua linda fachada.

Referência: VERIANO, Pedro. Cinema no tucupi. Belém: SECULT, 1999, pp. 40-41.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Mosqueiro em Letras

Procurando por textos sobre Mosqueiro, para organizar um pequeno banco de dados sobre a Ilha, encontrei alguns poemas, de autores já consagrados pelos leitores e pela crítica, homenageando ufanamente ou denunciando as mazelas locais. Todos eles, de qualquer modo, tematizando a “Bucólica”, inscrevendo-a no âmbito dos registros escritos, sejam eles literários, geográficos, históricos, sociais, culturais, etc., não importa tal fato, no momento, já que o relevante é que se tenham dados (os textos) coletados sobre nosso distrito-ilha. O primeiro dos textos que compilei é este, de Antonio Juraci Siqueira, de seu livro Piracema de sonhos:

Mo(s)queiro

Metamorfose de signos ― fonemas
roídos pelo tempo e pelo uso...

Foram tantos verões, tantos invernos
foram tantos poentes e alvoradas
que a ilha do Mosqueiro e dos encantos
perdeu seus moquéns e seus mistérios.

Em que volta do tempo se perderam
os nossos ancestrais que moqueavam
piabas nas marés tepacuemas?

Hoje a ilha do Mosqueiro, em desencanto,
carrega um S enorme e sibilante
encravado no nome e no destino.




Um perfeito insight de Juraci associar o tema da decadência, muito alardeada quando se faz referência à ilha, à suposta evolução linguística que, em tese, teria dado origem à palavra Mosqueiro, muitas vezes confundida com aquela que o dicionário registra como “lugar onde há moscas com abundância”. Não é um poema de caráter ufanista, como a maior parte do que é produzido em poesia tematizando o lugar.
Garimpamos ainda outro belo poema, sucinto ―quase um poema-pílula―, que diz muito por meio de uma linguagem lacunar, sempre a ser completado pelo leitor o sentido sugerido, muitas vezes diretamente ligado à forma organizacional das palavras distribuídas no branco da página, em um isomorfismo raro entre expressão e ideia, a evocar a bela praia da predileção de Max Martins: Maraú (para alguns, Marahú), onde o poeta viveu por um tempo, na cabana chamada Porto Max. O texto integra o livro Caminho de Marahu, de 1983, e vem a seguir:


Mar-ahu

Não
é a ilha

Não
é a praia

E o mar
(de nos fazermos ao)
é só um nome
sem

a outra margem



Outro que surge, no mesmo livro, com as mesmas sutilezas, agora mais para um haicai que para um poema-pílula, é este:


Marahu

A praia
A tarde se desdiz
te diz
se estende
e te dissolve




Aqui Max explora a vacuidade possível das ondas, sempre sonoras, sempre efêmeras, porém tenazmente repetidas, solvidas dentro de si mesmas, tanto no aspecto vísuo-sonoro quanto semântico, tornando a praia um lugar de nostalgias, liquefazendo o ser dissolvido pela passagem do tempo, que parece fluir vagamente como o próprio pensamento, na contemplação da enseada do Maraú.
Na verdade, tudo o que se possa dizer sobre esses poemas, tanto de Max como de Juraci Siqueira, valem apenas como comentários, visto que os poetas já disseram tudo da melhor maneira possível, e o crítico, refletindo sobre sua obra pode estar banalizando-a, no momento em que tenta explicá-la.

O mastro, de Márcio Barradas, na estreia em Mosqueiro (04/12/2009)

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Onde ...



As ondas da praia do Bispo
Nada sabem de você...
No céu plúmbeo,
As nuvens quase equidistantes
Não me cochicham,
Segredando teu destino.

Às garças elegantes,
Grito silenciosa
E desesperadamente
Que não mintam para mim.
As pedras cruelmente calam,
Calam, calam...
Só as ondas falam...

Mas é um idioma
Cujo código desconheço
Por completo...
Ao largo, na baía,
Zombeteiros barcos, gargalhando
Aos pô-pô-pôs,
Despedem-se e vão-se...
E só, eu vou ficando por aqui...

O sol decai em sono lento,
Espargindo pelo panorama
Melancólicos vermelhos,
A impregnar meus lassos olhos,
Abandonados pela luz.

Pergunto às estrelas,
que apenas me piscam, cúmplices
desse segredo, desse mistério
que insiste em não ser revelado...

Que estará fazendo o Meu Amor?
Por quais trilhas estará vagando,
longe longe sem mim, que lamento
por estares em um lugar por mim desconhecido!

Eu, que durmoacordo no Paraíso,
porque é com minha Princesa que divido
o leito, vivo num sonho, devaneio
que não quero nem de longe
que me escapula da vida/vista.

Tudo que mais quero no mundo
é ter você em meus braços...

Sempre... Sempre...

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Embora desnecessária, uma defesa

Não é necessária uma leitura tão complexa, como a que nasceria pelo viés da Análise do Discurso, para percebermos que algo incongruente contamina o texto “O bom ditador”, publicado pelo jornalista e sociólogo Lúcio Flávio Pinto em seu Jornal Pessoal de agosto de 2010, 2ª quinzena. No título – um intertexto com o “bom ladrão”, aquele que no texto bíblico foi crucificado à direita de Jesus, o Nazareno –, o autor sugere que Lula é um ditador porque vai eleger quem lhe sucederá. Fazendo uma analogia com o processo eleitoral estadunidense, será que alguém chamou Bill Clinton de “ditador” por que tentou eleger Al Gore seu sucessor? Ou mesmo o implacável, odioso e belicista George Bush, que indicou o senador John McCain como seu sucessor à Casa Branca (no caso de ser eleito), quem o chamou de ditador? E, no plano nacional, o que dizer de Fernando Henrique Cardoso, que forçou a barra para alterar a legislação eleitoral, reelegendo-se presidente e, a posteriori, tentando também eleger seu sucessor, o mesmo José Serra, atual adversário de Dilma Roussef? E no plano estadual, quem tachou Almir Gabriel de ditador, bom ou mal, infligindo ao povo paraense 12 anos de pessedebismo? Mas, agora, como se trata de Lula, do PT, é tentativa de erigir um regime fascista! Muito me admira também a tamanha absurdidade, em relação a Lula, de afirmações do tipo “morde e assopra”, vindas à luz no texto do respeitado jornalista, mais ao estilo “tipo assim”... Paulo Francis. O Lula pintado por Pinto semelha uma obra do surrealista Salvador Dalí, com o diferencial de que aquele buscava o ilógico e quimérico propositadamente. Resta-nos concluir que, quanto ao Luís Inácio parido pelo texto de Pinto, este seria o que o Dicionário Eletrônico Michaelis-UOL diz que é: “qui.me.ra s. f. 1. Monstro da mitologia grega, com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de dragão. 2. Criação absurda da imaginação; fantasia, utopia, sonho. 3. Coisa impossível, irrealizável; absurdo.”
Quimera
Lula

Porém, a quimera, como todos vêem, é diferente do “bom brasileiro” (e torneiro mecânico) Lula (redução de Luís, apelido que nada tem a ver com o animal, o molusco), um cidadão do povo.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Você

1
A Baía de Santo Antônio é você.
E nada mais me sobra olhar
Quando vejo a paisagem
E só vislumbro sua face
A me saltar aos olhos.

Todos os possíveis horizontes
Me lembram a possibilidade
De nunca te esquecer.
E me sinto, assim, feliz!

2
Não há flores ― sequer murchas― no meu jardim.
O Sol não aquece e a Lua não inspira...
Meu coração, em pranto, só suspira:
Você, enfim, está longe de mim.

Por isso, em pensamento, para te ver,
Vôo, na velocidade-luz do amor.
Seja para qualquer lugar em que for,
Aonde vou, tenho de estar com você.

À noite pinga sobre meu leito
Toda a angústia e doída solidão,
A sufocar este grito no meu peito:
― Não vá embora, não vá, não!

3
Eu caminho na sombra de seus sonhos.
Na escuridão
Das idéias que emaranham
Seus pensamentos,
Eu vivo.
E grito.

E espalho em jorros, em esguichos
Agigantados
Toda a solidão que me abandona com a chegada
De teus longos negros cabelos
E sua longilínea
Figura a serpentear pelas ruas
De minha cidade,
Num bailado etéreo
De andar compassado...
E o aroma de seus olhos
Me quase hipnotiza.

Em todo seu ser sei que habito
E desespero se portas e janelas fechadas
Me aprisionam do lado de fora.

As horas dançam num balé
Estilhaçado, como se nuvens
De vidro fossem,
Quebradas pelos logradouros desérticos,
Se me deixa fora da geometria
De suas formas de mel e luar.

E um quase nada a nadar
Nas entrelinhas do fundo da piscina da dor
Sou,
Se não vem você me acender a luz
E dizer: “É um pesadelo!
Estou aqui! O mundo amanheceu!
Todos os pássaros cantam
A melodia do mar...
Os ventos espalham pelo ar
A música do afeto mais sublime,
Que só existe por sua causa.
Se você me sonha, eu existo,
E te amo!”

Posso deixar a vida em paz...

A uma pastora

Qual um pastor arcádico
alimenta o sentimento da terra,
no ato de apascentar o rebanho
na solidez maleável
da verde pradaria,

e no ato de aspirar o puro ar
na concretude pedregosa da montanha,
aliando a isso
ritmar palavras amorosas
à doce pastora sua,
murmurando-as ao seu ouvido,

nascidas elas da transparência
um tanto lacustre
das águas dos ribeirões,
espelhando a fugacidade
diáfana das nuvens lá no céu,

Sim, qual esse pastor,
também eu
― não tão bem como o Poeta Pablo Neruda ―


desenhei estas palavras,
na esperança de também
despertar minha pastora

― de seu sono macio ―

com este poemeto que,
quisera, tivesse a ternura leve



de um beijo cálido.

Bem baixinho...

A saudade é contemplar as nuvens
sem poder com elas levitar
até próximo de onde estás
e sorver no ar o olor
achocolatado
de teu hálito de Afrodite
ameríndia.


É não poder sequer perseguir-te
como um pobre coitado
Apolo a aspirar o aroma de teus cabelos
esvoaçantes na brisa
célere que te rapta
para longe de mim,
até o K2,
onde possivelmente morrerei,
por tu já te teres partido
em tua volatilidade
de monarca, na direção do belo México...

Será meu destino escalar as distâncias de mar e terra
e vento e cordilheiras, sem fim?
Se o for,
é por um transcendental motivo, e isso
não apequenará o meu espírito de amador inconteste.


As distâncias são um obstáculo a se extrapolar, só isso, meu amor.
Sempre apenas isso!

Uma certa dialética das coisas mínimas

Muitos dizem
Ah, no meu tempo...
O meu tempo sempre é hoje!
Mas, no decorrer de 24 horas,
torna-se ontem,
e o amanhã se torna hoje,
que vira ontem...
Nada mais dialetizante
porque mutante,
tempo nunca-sempre-quase
a esgotar-se, inesgotavelmente...
Tempo-vento: o tudo-nada
a bater,
a esbofetear suavemente a face do ilhéu
e desalinhar as madeixas
da cabocla banhista,
a lembrar que outrora
acariciou a cara
do autóctone-índio no moqueio,
o corpo suadensangüentado
do cabano na Batalha,
a defender-se no Chapéu-Virado...
Do veranista no convés
do Presidente Vargas...
Nas janelas do Beiradão,
nas Vans.
Esse tempo-vento, tempo-ventre,
a que porto-futuro
guiará esse barco-ilha
de desencanto-acalanto,
sempre ao mesmo tempo-vento?...

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Eterno retorno

Tudo volta, sei.

Tudo é círculo,

tudo é ciclo.

Te amo hoje como ontem.

Ontem numa caverna, é verdade.

Hoje, numa cama, em casa, confortável.

Confortável com ontem, apesar de tudo,

pois aquela era uma boa caverna.



Hoje sei que és a mesma

que milhares de anos

encontrei na bela pradaria

longe-longe da quase cristalina

e imensa geleira.



Estávamos na planície.

Eu sorrateiramente caçava.

Tu coletavas frites,

ervas, raízes.

Nosso amor enraizou aí

quando comemos a carne assada da caça

e as frutas, que dividimos

entre carinhos, toques suaves,

beijos, cheiros

que trocamos sob a árvore-mãe,

na sombra e na frescura,

e no conforto da grama, das folhas,

das flores que abençoavam

nosso matrimônio natural.



Ali mesmo, em certeiras flechadas,

Gotejei meu sêmen em ti.

Te fecundei. Fomos felizes

então, três a partir dali,

uma família já feita.

Nunca mais o frio glacial

Nos enregelaria noite adentro.

Amor, calor, fogueira na lenha

e nos nossos corpos.



Hoje somos os mesmos.

faltam-nos apenas nossos filhotes

que ainda virão,como vieram ontem.



O tempo é um voltar-se

A si mesmo, em ciclos...



O ontem é hoje.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Pequenas reminiscências

Abre o baú, e dele saem
(como se da Caixa de Pandora)
aladamente todos os liames
do passado tempo,
fios de memória atando
objetos a lugares e pessoas
dentro de si,
que nasce e morre
na natureza-morta de fatos/fotos e desenhos,
de documentos,
de uma caneta-presente recebida
com muito orgulho, da escola...

Memórias dentro de si se inserem
e fora de si se disserem e evaporam
e têm gosto amargo...
e encharcam os olhos,
quando o baú se fecha
consigo dentro...
(de minha autoria)

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Agradecimento

Sempre combativo contra
toda forma de desigualdade,
ele não silenciará jamais,
porque sua voz ecoa
―em metáforas desconcertantes ―
pelas páginas por nós lidas,
suas obras dialogam
com o mundo e denunciam
com sarcasmo peculiar
as contradições
que tanto ainda nos atormentarão
nas trilhas abertas por suas linhas,
e ainda mais por suas entrelinhas,
a levar a luz ao fundo da caverna,
permitindo a mim,
entre muitas coisas,
fugir,
sutilmente como um elefante
viajante,
da ilha desconhecida
onde
―sem nenhuma intermitência―,
pode me aguardar,
com a lucidez de uma cegueira branca,
a minha própria morte,
como a de um Cristo Sem Evangelho!
―sem sequer poder sonhar com a ressurreição―,
como um Ricardo Reis no ano de sua morte,
sempre sabendo o que fazer
com estes seus livros,
estes muito mais que quase objectos,
possíveis mapas,
para em Lisboa fugir
do histórico cerco junto com Fernando Pessoa
e chegar a visitar memoravelmente,
e rápido escapulir,
do convento,
anônimo, ou por todos os nomes
possíveis chamado,
inclusive o de Caim,
irônico rebelde
e gritar
―Saramago, Saramago!
por tudo o que fizeste,
disseste
e
escreveste,
obrigado, muito obrigado,

José Saramago!

terça-feira, 6 de julho de 2010

O f/ato de re/ler

As marcas codificadas carimbadas no papel
emanam sombras, silhuetas enigmáticas
― interpenetrando córneas adentro ―,
e acabam pela íris refletidas de volta no papel...

Os signos então se releem em seu reflexo,
se redimensionam ao se (re)verem,
se repensando no confronto do espelho convexo
binocular de um circunspecto minucioso leitor.

Por seu lado, o cérebro, o ilustre receptor,
interpreta tudo, mas secundariamente:
os dados são sensações (não mais) oculares,
dependentes estas em parte, da visão saudável,
sim ou não, de cada um simples leitor.

domingo, 4 de julho de 2010

Paisagens (re) memoráveis

Ampla maioria dos mosqueirenses desconhece o fato de que já foram publicados dois romances ambientados aqui em nossa pacata ilha de Mosqueiro. Pessoas, lugares, fatos e situações referentes à nossa terra, que já foi nomeada de Bucólica, foram ficcionalizados pela pena de dois ilustres paraenses, escritores que viveram parte de suas vidas nesta terra e a tornaram locus de ação de seus personagens; contudo, em que pese o fato de ambientarem suas histórias no espaço mosqueirense, fato que aproxima as duas obras, estas, no entanto, se distanciam no que tange ao clima sugerido pelo enredo de cada uma. É disso que passaremos a discorrer nas linhas que se seguem.
O locus amoenus (um lugar ameno e agradável para se viver), verdadeiro paraíso perdido e irrecuperável, docemente aquarelado por Cândido Marinho Rocha (1907-1985), nas páginas de seu romance Ilha, capital Vila, publicado em 1973, contrasta notoriamente com o locus horrendus (um lugar assustador para se viver), painel violentíssimo traçado por Edyr Augusto em seu Moscow, romance este publicado quase duas décadas depois, em 2001.
Esse contraste torna-se gritante, ao fazer-se comparação entre as duas obras. A de Marinho Rocha, Ilha, capital Vila, envereda pela trilha do ufanismo e do bucolismo em relação ao tratamento dado à ambientação, também possivelmente porque sua produção data da era do Milagre Brasileiro, do general-presidente Médici, em plena ditadura militar. Esse fato torna-se patente ainda mais, quando se leva em consideração o fato de seu subtítulo ser “Histórias e estórias de uma ilha cercada de amor por todos os lados”.
O painel ultraviolento desenhado em Moscow expõe a Ilha em cores fauvistas, isto é, fortes e vivas, em sintonia com todo um quadro de acontecimentos que impressiona por uma verossimilhança surreal (como numa tela de Salvador Dalí). Como foi publicado em 2001, escrevi, algum tempo atrás, que tudo no romance soa como notas reais de uma música ainda não tocada apenas pela falta dos instrumentistas, que logo, logo subirão ao palco para compor uma cruel orquestra, a tocar aterradora sinfonia para um público boquiaberto, atônito, só percebedor recente da degenerada mutação social que já se abatera sobre a “Ilha Perfumada pelo Amor”, nas palavras de Marinho Rocha.
Ilha, capital Vila, com sua atmosfera de bucolismo, onde pairavam no ar os amores livres de Dona Rosamor, e do personagem central Zozó, dentre outros personagens que vivenciaram os acontecimentos pitorescos na Ilha, de 1931 a 1943, dá mostras de uma mítica e doce recordação que praticamente só vive na memória dos mosqueirenses mais antigos. Já Moscow, por toda crueza da violência que povoa suas páginas, com o personagem central e seus amigos praticando atos de agressão gratuita de toda natureza, além de assaltos, estupro e assassinato, tudo homologado pelos fatos reais e cotidianos da contemporaneidade, é profético e atual, e aterrorizante. No geral, os dois romances têm qualidade e apresentam um panorama humano e social com o qual o mosqueirense, sem sombra de dúvida, se identifica. O leitor deve lê-los, fazer comparação e ponderar: “O que teria uma pessoa a ganhar, se não os ler?”



Autor: Cândido Marinho Rocha. Título: Ilha, capital Vila.
Cidade: Belém
Editora: Falangola
Ano: 1973
Páginas: 206




Autor: Edyr Augusto
Título: Moscow
Cidade: São Paulo
Editora: Boitempo
Ano: 2001
Páginas: 68

Páginas de culpa

Desde criança que comecei a perceber que os livros que não terminei de ler são como viagens iniciadas mas nunca acabadas, e o pior, sempre por acabar, tal como uma maldição a me perseguir, como uma alma penada que não tem destino no mundo porque seu destino interrompido não a deixou seguir até o fim sua viagem.
Assim, muitas viagens tenho por fazer, muitas releituras a recomeçar, pois a estradas pelo meio percorridas não me são mais familiares. Tudo tem de ser reiniciado, passo a passo, estrada a estrada. E cada quilômetro percorrido, uma sina da qual meio pela metade me livro, a alma a se libertar de uma pesada cruz.
Qual dessas cruzes, penso, mais me atormenta ainda hoje? Talvez o Evangelho segundo Jesus Cristo? Talvez O perfume? Talvez o livro inicial da série Em busca do tempo perdido, o romance O caminho de Swan? Muitos livros, muitas histórias inacabadas, plagas jamais visitadas, paisagens nunca admiradas, pessoas excepcionais e desconhecidas, batalhas por vencer, e perder também, experiências a me moldar o caráter, a me fazer crescer em personalidade, mundos a explorar. Entre esses mundos, uma visita inacabada, que quero o mais brevemente possível acabar de fazer, é a visita ao Ulisses de James Joyce, esse irlandês pregador de peças em palavras, esse prestidigitador das páginas, essas que virarei sem pestanejar, logo tenha em mãos o livro, romance-esfinge por decifrar, eu novo Édipo então, todo orgulhoso.
O mesmo acontece com o Grande sertão: veredas, outra esfinge, outro mapa literário de veredas por percorrer, jagunços por enfrentar, o Bem e o Mal a se digladiarem em páginas memoráveis de um estilo de contar falando, de Riobaldo, fazendo as coisas acontecerem diante de meus olhos de leitor atento interessado, meio perdido, meio me achando ali pelo mato, pelas travessias de rios, ouvindo os berrantes dos condutores da boiada. Não sei por que não me perguntam todos os dias, quando caminho nas ruas, como se virando páginas em branco, porém povoadas de personagens promotores de tribunais de literatura, interrogando-me duramente: “Por que parou? Parou, por quê?”
Com o Terra de Caruaru tudo foi diferente: primeiro, porque pedi a um amigo ‘livreiro’ ― sempre me trazendo livros que ele dizia ter ganho de alguém, mas que não leria nunca, e eu sempre dizendo “Não!” a princípio e acabando por aceitar o presente ― que me trouxesse esse romance de José Condé, pois dele já lera a novela (maravilhosa!) Vento do amanhecer em Macambira. Estava curiosíssimo pelo que iria encontrar em Terra de Caruaru, só que, por diversos motivos, acabei não passando da página 50. Minha mãe e esposa já o leram e adoraram. Eu já reiniciei sua leitura três vezes; contudo, não dei prosseguimento a ela. É uma prioridade para mim, assim como o Passagem dos Inocentes, que preciso ler com urgência.
Em uma situação como essa, em que vivo constantemente sob a acusação ―minha própria acusação ― de culpado por não ler, por não saber da beleza das obras deixadas de lado, com um peso enorme na consciência de leitor frustrado, não há como vociferar um “Protesto!”, pois ouviria sempre e sempre um “Mantido!”, e com toda a razão do mundo me calaria e assumiria a culpa do crime de ter perdido o que perdi, irremediavelmente. Punição? Prisão perpétua, sem nenhuma página para ler...

terça-feira, 22 de junho de 2010

Carlos Martinez de Pinillos (1895-1947), aviador peruano, esteve em Mosqueiro, em 1929.

En la ciudad de Belem do Pará no existía aeropuerto y el aterrizaje se efectuó en un campo improvisado en la playa "Chapeu Virado" en la isla de Mosqueiro y esto significó un entrampamiento para el viaje, puesto que no tenían permiso oficial para el vuelo sobre la Guayana Francesa y no había una pista suficientemente larga para despegar con la cantidad de combustible necesario para llegar hasta Venezuela. Para empeorar las cosas, una crecida del río Amazonas redujo aun más el espacio disponible.Como resultado de esto, Pinillos y Zegarra iniciaron el retorno a la patria por vía fluvial después de desarmar el "Perú" y despacharlo por barco hacia Nueva York.


Disponível em: www.aeroclubperu.org.pe/socios/pinillos.html. Acesso: 22 jun. 2010.

1º voo homologado da história, 14 Bis, de Santos Dumont (23/10/1906)

quinta-feira, 3 de junho de 2010

“Vambora” e a relevância da leitura do intertexto

O estudo a seguir nasceu sugerido por uma aula de literatura medieval portuguesa, isto é, sobre o Trovadorismo (1189/98(?)-1434), cuja relevância maior recai sobre as cantigas trovadorescas, as líricas e as satíricas. Destas, destaque se dê às primeiras, que se subdividem em cantigas de amigo e cantigas de amor.
Ao fazer referência à coita de amor feminino, o sofrimento da mulher portuguesa, na constante espera(nça) pelo retorno de seu amigo (entenda-se, amado), que demora a retornar porque pode estar morto, estar ferido, ser prisioneiro, ou por ter encontrado outra donzela por quem se enamorou ― tema constante da cantiga de amigo ―, lembramos do reaproveitamento dessa temática pelas composições de música popular brasileira, entre elas algumas de Chico Buarque, de Caetano Veloso, de Rui Barata, entre outras. Daí, veio à memória a canção “Vambora”, de Adriana Calcanhoto, perfeito exemplo acerca da temática discutida, mas atualizada pela autoria feminina, fato impossível na Idade Média.
De outro lado, no decorrer da análise do texto da autora gaúcha, deparamo-nos com uma riqueza imensa de possibilidades de abordagem, embora a extensão diminuta da letra da canção. Acerca dessa riqueza, faremos nossas considerações, um tanto ao ‘correr da pena’, o que não invalida, mas, pelo contrário, enriquece a leitura por um viés subjetivo de um leitor; contudo, este leitor que pode ganhar ares de leitor plural, um eu representando um nós.
Então, a partir de comentários sobre a letra de “Vambora”, canção da compositora e cantora Adriana Calcanhoto (1965- ), tratamos de enfocar alguns problemas relativos à leitura, tais como a falta de conhecimento prévio sobre o assunto tratado, a negligência com o contexto de produção da obra, o desconhecimento de estruturas linguísticas básicas do idioma, entre outros, que dão origem a crônicos tumores no processo comunicativo, mas que geralmente são negligenciados, porque considerados simples (ou até mesmo simplistas), visto que, muitas vezes tão veementemente tratados, paradoxalmente acabam por tornar-se lugares-comuns e, talvez por causa disso, tão pouco merecedores de crédito pelo universo de leitores em geral, que não os vê como uma questão cotidiana, já que tanto desinteresse normalmente despertam. E nesse enfoque, selecionado por nós, surge a necessidade de evidenciar a relevância que a artista gaúcha dá ao intertexto.
Segue a letra da canção, para o bom entendedor, para o qual meia palavra nunca basta, já que sempre necessitará do contexto:
Vambora

Entre por essa porta agora
E diga que me adora
Você tem meia hora
Pra mudar a minha vida

Vem, vambora
Que o que você demora
É o que o tempo leva...

Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara?
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
“Dentro da noite veloz...”

Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara?
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
“Na cinza das horas”


Muito feliz a gaúcha Adriana Calcanhoto, que consegue, como bem poucos, aliar o erudito ao popular, na letra de “Vambora”, do CD Público, de 2000, com tantas outras antológicas canções, das quais citamos como exemplares “Clandestino”, “Esquadros” e “Mais feliz”. A palavra vambora, uma palavra composta (vamos + embora), nascida justamente da variante linguística coloquial-popular, tão bem pronunciada pelo povo, tornada título e empregada de forma muito adequada na canção, faz par com o uso coloquial do verbo ter (“Ainda tem o seu perfume pela casa/ Ainda tem você na sala [...] Quando tem o seu cheiro”), este escolhido adequadamente para substituir, na canção popular, o verbo haver, ou o verbo existir, ambos a denotar, de modo bem brasileiro, o sentido da existência, o estar-ali da pessoa ausente, embora isso constitua um paradoxo, mas bem elucidado pela problemática do eu-lírico feminino que presentifica o amado ausente ― coisa bem trovadoresca, bem medieval mesmo, não é? ―, pelo sentimento de amor declarado implicitamente, que o espacializa nos recintos da casa, espaço feliz; contudo, isso só se a esperança de seu retorno se concretizar, o que desperta no leitor uma conjectura:ele, muito provavelmente, não voltará...
Mas o verbo em questão (ter, na flexão do presente, 3ª. pessoa do singular, ou seja, tem) também é empregado em sua forma erudita, no sentido de ‘poder dispor’ (um, entre tantos sentidos desse verbo, cujo sentido mais usual é o de ‘possuir’, ‘gozar’ ou ‘usufruir’), como um ultimato, uma decisão final e irrevogável: “Você tem meia hora/ Pra mudar a minha vida”. A palavra ‘vambora’, lembremos também, já traz como curiosidade o fato de um de seus componentes (‘embora’) ter se formado, há muito tempo, por uma composição por aglutinação (ou seja, com alteração fonética), pois se origina da expressão “Vamos em boa hora”. Em boa hora>embora; portanto: vamos embora>vumbora/umbora/simbora/bora... Tantas transformações!... Tantos metaplasmos (terminologia mais adequada para as ‘evoluções fonéticas’)!...
Gostaria de sugerir que alguém pudesse empregar em um texto a palavra/expressão já tão usual e pouco artisticamente divulgada “Borimbora?”. Trata-se de uma espécie de reduplicação de ‘vambora’. E a mim me parece tão bela, mas... Bem, esperemos por alguém que tenha a ousadia de a empregar. Ao lado disso tudo, o estudo do texto, aqui realizado, permite-nos abordar um dado de alta relevância no que diz respeito à competência leitora, isto é, o que faz um leitor ser um leitor, e não um ledor, este decodificador que permanece na superfície textual, este meio entendedor, já que apenas chega a atingir o alcance comum da trivialidade, inepto que é, pelo menos no momento, para penetrar nas entrelinhas da trama textual.
Já o leitor, esse que adentra as vísceras e penetra no âmago da mensagem expressa ― para muito além das trivialidades com as quais se conforma o ledor ―, extrai do texto as informações, muitas vezes incompletas, e inocula no interior delas seus próprios conteúdos experenciais, o que as conforma e dá sentido ao que é lido. Por isso, um dos fatores que torna um texto possível de ser compreendido é a intertextualidade, este diálogo do autor com outros autores e com o leitor, este que se torna meio autor no processo de leitura, de interpretação mesma do texto. No entanto, aquele que é o autor, o emissor da mensagem, ou enunciador, como se queira, precisa de conhecimentos do ‘inconsciente coletivo’, conteúdos da ‘estrutura’ cultural de uma nação, para engendrar sua mensagem, que imprescindivelmente necessitará de um leitor capaz de pôr os olhos bem abertos para a compreensão inclusive das entrelinhas, como já se disse, de conteúdos implítos do texto, um leitor intertextual, viajante do espaço-tempo de sua cultura, de seus próprios processos mentais, competente para o ato de até mesmo ser cético em relação às “verdades” internas ao texto. “Duvido; logo, existo!”
Feitas estas considerações, passemos ao que interessa, o intertexto: “Dentro da noite veloz” e “Na cinza das horas”. Comecemos pelo primeiro dos dois versos : Cinza das horas (1917) é o primeiro livro de poesia de Manuel Bandeira, que abre com um poema intitulado “Epígrafe”, que segue abaixo:

Epígrafe
Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.


Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugiu como um furacão,

Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó –
Ah, que dor!
Magoado e só,
– Só! – meu coração ardeu:

Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.

– Esta pouca cinza fria...


Então, o verso “Na cinza das horas” é mostra notória do conhecimento e admiração de Adriana Calcanhoto pelo Modernismo brasileiro e, mais especificamente, pela obra do poeta pernambucano Manuel Bandeira (1886-1955), além de atestar domínio pela artista de uma imagética invejável, a de que tudo se desfaz, impiedosamente, mesmo que não se queira, e só sobrevivem, para nossa imensurável angústia, os vestígios, quase imperceptíveis, do que já se foi, pelas “estradas do tempo-foi” , as horas “de angústia rouca”, consumidas, das quais só restaram ‘esta cinza fria’.
Agora, passemos ao outro verso: “Dentro da noite veloz”. Trata-se de um relativamente longo poema que dá nome ao livro de poesia Dentro da noite veloz (1975), do poeta maranhense Ferreira Gullar (1930-), dedicado ao revolucionário argentino Ernesto Che Guevara (1928-1967), um dos líderes da Revolução Cubana (1959), tematizando o dia de seu aprisionamento na selva montanhosa da Bolívia, véspera, portanto, do dia de sua execução, em Higuera (09/10/1967). Segue, abaixo, o poema:

Dentro da noite veloz
I
Na quebrada do Yuro
eram 13,30 horas
(em São Paulo
era mais tarde; em Paris anoitecera;
na Ásia o sono era seda)
Na quebrada do rio Yuro
a claridade da hora
mostrava seu fundo escuro:
as águas limpas batiam
sem passado e sem futuro.
Estalo de mato, pio
de ave, brisa
nas folhas
era silêncio o barulho
a paisagem
(que se move)
está imóvel, se move
dentro de si
(igual que uma máquina de lavar
lavando
sob o céu boliviano, a paisagem
com suas polias e correntes
de ar)
Na quebrada do Yuro
não era hora nenhuma
só pedras e águas
II
Não era hora nenhuma
até que um tiro
explode em pássaros
e animais
até que passos
vozes na água rosto nas folhas
peito ofegando
a clorofila
penetra o sangue humano
e a história
se move
a paisagem
como um trem
começa a andar
Na quebrada do Yuro eram 13,30 horas
III
Ernesto Che Guevara
teu fim está perto
não basta estar certo
para vencer a batalha
Ernesto Che Guevara
Entrega-te à prisão
não basta ter razão
pra não morrer de bala
Ernesto Che Guevara
não estejas iludido
a bala entra em teu corpo
como em qualquer bandido
Ernesto Che Guevara
por que lutas ainda?
a batalha está finda
antes que o dia acabe
Ernesto Che Guevara
é chegada a tua hora
e o povo ignora
se por ele lutavas
IV
Correm as águas do Yuro, o tiroteio agora
é mais intenso, o inimigo avança
e fecha o cerco.
Os guerrilheiros
em pequenos grupos divididos
aguentam
a luta, protegem a retirada
dos companheiros feridos.
No alto,
grandes massas de nuvens se deslocam lentamente
sobrevoando países
em direção ao Pacífico, de cabeleira azul.
Uma greve em Santiago. Chove
na Jamaica. Em Buenos Aires há sol
nas alamedas arborizadas, um general maquina um golpe.
Uma família festeja bodas de prata num trem que se aproxima
de Montevidéu. À beira da estrada
muge um boi da Swift. A Bolsa
no Rio fecha em alta
ou baixa.
Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustáquio, Ñato
castigam o avanço
dos rangers .
Urbano tomba,
Eustáquio
Che Guevara sustenta
o fogo, uma rajada o atinge, atira ainda, solve-se-lhe
o joelho, no espanto
os companheiros voltam
para apanhá-lo. É tarde. Fogem.
A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos.


V
Não está morto, só ferido
Num helicóptero iangue
é levado para Higuera
onde a morte o espera

Não morrerá das feridas
ganhas no combate
mas de mão assassina
que o abate

Não morrerá das feridas
ganhas a céu aberto
mas de um golpe escondido
ao nascer do dia

Assim o levam pra morte
(sujo de terra e de sangue)
subjugado no bojo
de um helicóptero ianque

É seu último voo
sobre a América Latina
sob o fulgir das estrelas
que nada sabem dos homens

que nada sabem do sonho,
da esperança, da alegria,
da luta surda do homem
pela flor da cada dia

É seu último voo
sobre a choupana de homens
que não sabem o que se passa
naquela noite de outubro

quem passa sobre seu teto
dentro daquele barulho
quem é levado pra morte
naquela noite noturna

VI
A noite é mais veloz nos trópicos
(com seus
monturos)
na vertigem das folhas na explosão
das águas sujas
surdas
nos pantanais
é mais veloz sob a pele da treva, na
conspiração de azuis
e vermelhos pulsando
como vaginas frutas bocas
vegetais
(confundidos nos sonhos)
ou
um ramo florido feito um relâmpago
parado sobre uma cisterna d´água
no escuro
É mais funda
a noite no sono
do homem na sua carne
de coca e de fome
e dentro do pote uma caneca
de lata velha de ervilha
da Armour Company

A noite é mais veloz nos trópicos
com seus monturos
e cassinos de jogos
entre as pernas das putas
o assalto
a mão armada
aberta em sangue a vida.
É mais veloz
(e mais demorada)
nos cárceres
a noite latino-americana
entre interrogatórios
e torturas
(lá fora as violetas)
e mais violenta (a noite)
na cona da ditadura
Sob a pele da treva, os frutos
crescem
conspira o açúcar
(de boca para baixo) debaixo
das pedras, debaixo
da palavra escrita no muro
ABAIX
e inacabada
ó Tlalhuicole
as vozes soterradas da platina
Das plumas que ondularam já não resta
mais que a lembrança
no vento
Mas é o dia (com
seus monturos)
pulsando
dentro do chão
como um pulso
apesar da South American Gold and Platinum
é a língua do dia
no azinhavre
Golpeábamos en tanto los muros de adobe
y era nuestra herencia una red de agujeros
é a língua do homem
sob a noite
no leprosário de San Pablo
nas ruínas de Tiahuanaco
nas galerias de chumbo e silicose
da Cerro de Pasço Corporation
Hemos comido grama salitrosa
piedras de adobe lagartijas ratones
tierra en polvo y gusanos
até que
(de dentro dos monturos) irrumpa
com seu bastão turquesa

VII
Súbito vimos ao mundo
E nos chamamos Ernesto
Súbito vimos ao mundo
e estamos
na América Latina

Mas a vida onde está
nos perguntamos
Nas tavernas?
nas eternas tardes tardas?
nas favelas
onde a história fede a merda?
no cinema?
na fêmea caverna de sonhos
e de urina?
ou na ingrata
faina do poema?
(a vida
que se esvai
no estuário do Prata)

Serei cantor
serei poeta?
Responde o cobre (da Anaconda Copper):
Serás assaltante
E proxeneta
Policial jagunço alcagueta

Serei pederasta e homicida?
serei o viciado?
Responde o ferro (da Bethlehem Steel):
Serás ministro de Estado
e suicida

Serei dentista?
talvez quem sabe oftalmologista?
Otorrinolaringologista?
Responde a bauxita (da Kaiser Aluminium):
serás médico aborteiro
que dá mais dinheiro

Serei um merda
quero ser um merda
Quero de fato viver.
Mas onde está essa imunda
vida – mesmo que imunda?
No hospício?
num santo
ofício?
no orifício
da bunda?
Devo mudar o mundo,
a República? A vida
terei de plantá-la
como um estandarte
em praça pública?

VIII
A vida muda como a cor dos frutos
lentamente
e para sempre
A vida muda como a flor em fruto
velozmente
A vida muda como a água em folhas
o sonho em luz elétrica
a rosa desembrulha do carbono
o pássaro da boca
mas
quando for tempo
E é tempo todo o tempo
mas
não basta um século para fazer a pétala
que um só minuto faz
ou não
mas
a vida muda
a vida muda o morto em multidão.

Mais uma vez se vê a admiração e o conhecimento de Calcanhoto em relação à poesia brasileira do Modernismo. O uso do intertexto é procedimento que se faz necessário entender com mais profundidade, quando do processo de apreensão ou fruição da canção “Vambora”, o que propicia um processo redimensionado de leitura, que se distancia da mera decodificação ou olhar superficial em relação a um texto. Pelo contrário, o leitor de Adriana Calcanhoto deve buscar ser sagaz, como ela o é, ao escolher os versos que tão bem soube explorar.
Nesse caso, temos obrigação de nos contrapor às palavras de Graham Allen: “A intertextualidade surge para nos lembrar da verdade chocante de que o que dissermos e pensarmos sempre já foi dito e pensado” . O que foi dito e pensado por Bandeira e Gullar foi redimensionado e ressignificado pela compositora gaúcha, que dignifica as palavras dos poetas, dando aos versos deles novas atualizações de sentidos, mergulhando os leitores no mar da poesia desses dois nordestinos de calibre. A poesia da música de Adriana acaba sendo uma provocação ao leitor, capaz este de fazer retomadas aos textos originais, com o fim de enriquecer o sentido da leitura que faz da canção “Vambora”, escapando assim, heroicamente, do mar abissal da trivialidade tão comum no processo de leitura cotidiana.
A ideia de polifonia , desenvolvida por Mikhail Bakhtin (1895-1975), permite-nos indicar as diversas vozes que povoam o texto de Calcanhoto, dialogando entre si e, simultaneamente, permitindo ao leitor uma cabal atribuição de sentidos: a voz do eu-lírico, que é o sujeito poético do texto ― um ser fictício, inventado pela autora ―, as vozes de Bandeira e de Gullar, percebidas claramente pela citação de seus versos, a voz da mulher pobre e camponesa da tradição Ibérica e, (por que não?) da mulher brasileira contemporânea, limitada pelas cercas da tradição patriarcal ainda vigente na atualidade.
Retomando e, além disso, desenvolvendo o que fora estabelecido por Bakhtin, Julia Kristeva (1941) diz o seguinte:

Cada palavra (texto) é uma intersecção de palavras (textos) onde pelo menos uma outra palavra (texto) pode ser lida (...) qualquer texto é construído como um mosaico de citações; qualquer texto é absorção e transformação de outro. A ideia de intertextualidade substitui a de intersubjetividade, e a linguagem poética é lida como no mínimo dupla.

A multiplicidade de sentidos povoa a leitura do texto da artista gaúcha, do começo ao fim, fenômeno proveniente do “mosaico” a que se refere Kristeva, característica comum às produções da modernidade, mas não exclusivas dessa época, pois é, na verdade, de tempos muito recuados que os autores de obras artísticas ― mas não apenas estes ―‘devoram’ seus antecessores, relendo-os e recriando uma outra obra, genuína, renovada. Não se diz, por exemplo, que o Classicismo é uma espécie de retomada de valores greco-latinos da Antiguidade Clássica? Em que consistia, então, a originalidade do artista daquela época? Se, para ele, os clássicos da Grécia e Roma já haviam ‘descoberto’ valores que seriam absolutos? Ora, caberia ao artista daquele período apenas ‘imitar’ os antigos? Não! Absolutamente!
Vejamos o que fez Michelangelo (1575-1564) ao esculpir uma de suas mais perfeitas obras, o Davi (1501): trata-se da estátua não de um pastor de ovelhas hebreu, franzino como é descrito no texto bíblico, mas de um atleta olímpico, tal a perfeição anatômica surgida do fator proporcionalidade entre a estatura, a massa muscular, a pesagem e a postura corporal do vencedor do gigante Golias. Uma obra monumental (pesa 5,5 toneladas e mede 5,16 metros de altura), que se pretendeu executada para ser eterna, segundo preceitos do ideário clássico dos antigos (Fídias, Zêuxis, Praxíteles, entre outros escultores), pelo próprio contexto do Renascimento, não poderia ser uma réplica do Davi do Velho Testamento. Primeiramente, as linguagens que configuram as obras são diferentes, já que o episódio bíblico explora a linguagem verbo-visual: visual, se lida silenciosamente; oral, se declamada em público, enquanto a escultura do gênio florentino explora a tridimensionalidade das formas e volumes talhados no mármore. Segundo, os contextos (sociais, históricos, culturais...) entre uma e outra obras são separados por uma fronteira milenar, o que impossibilita replicação. E diversos outros fatores poderiam ainda ser mencionados como causalidade diferencial entre a concepções dos dois davis.
Como se vê, é impossível a replicação de uma obra por outra , principalmente por causa da autoria. Michelangelo imprimiu à sua criação a marca da mentalidade de seu tempo e, mais que isso, de sua própria genialidade. Dentro dos limites existentes, dialogou de forma original entre os contextos (daí a ampliação do conceito de intertexto para intercontexto ) e as linguagens. Daí que o ‘leitor’, não o ledor, ressignificando e redimensionando sua leitura da obra, no ato perceptivo de entender o intertexto, os diálogos possíveis entre obras, autores, textos e contextos, seja capaz de passar ao largo da leitura trivial, do superficial das letras e linhas, e possa ser co-autor, seja partícipe desse processo de leitura do texto como leitura complementar do mundo.
E tudo isso aqui discutido por causa de uma canção de MPB, tão aparentemente despretenciosa, tudo isso por causa da autora-leitora Adriana Calcanhoto que, em sua letra simples, mas não simplista, brinda seus admiradores com uma pequena-grande canção. Que outras mais assim possa continuar compondo e cantando Adriana, para alegria geral, em nome da música, da poesia e da arte,.

Referências

ALLEN, Graham. A intertextualidade e sua “dupla” origem. In: Pátio, São Paulo, ano 4, n. 15.
BAKHTIN, Mikhail (V. N. Volochínov). A interação verbal. In: ____. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 2004.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2002.
BANDEIRA, Manuel. Epígrafe. In: ____. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 43.
CALCANHOTO, Adriana. Vambora. Intérprete: Adriana Calcanhoto. In: Público. Rio de Janeiro: Sony & BMG, 2000. 1CD, 700 (?) mb, 8ª faixa.
GULLAR, Ferreira. Dentro da noite veloz. In: ____. Toda poesia (1950-1999). 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004, p. 195-202.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 9 ed. São Paulo: Contexto, 2007.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça; BENTES, Anna Christina; CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2007.
MEURER, José Luiz. Ampliando a noção de contexto na lingüística sistêmico-funcional e na análise do discurso. Revista em (DIS)curso, v. 4, número especial, 2004.

domingo, 30 de maio de 2010

Morubiras ― o início do fim

Na camboa,
em meio à névoa
da manhãzinha preguiçosa,
o índio morubira
recolhe o peixe, o camarão,
o siri...
Os curumins-filhos o ajudam
nesse labutar cotidiano, sem muriçocas
para atazanar a paciência.

Cunhã-esposa, no estirão da areia
recolhe sementes
na companhia das cunhãs-filhas.
Também juntam tabatinga vermelha
para pintar o corpo
pra festa que aí vem.

O mar-baía, cinza...
O céu, cinza...
A névoa, branquidão
que oculta o bege
da areia praieira,
onde a lenha já está
distribuída enfileirada
em montes a espaços
pela extensão da enseada.

O verde renasce por trás
da brancura a se dissipar, aos poucos.
O guerreiro-pescador morubira
já sente antecipadamente
o cheiro do peixe no moqueio,
o sabor do beiju,
do peixe apimentado,
do cauim inspirador.
Seus sentidos todos despertos,
já antevê ali
seu povo em festa, cantando
e dançando feliz,
na realização de seus rituais.

Um trovão, dois, três e mais,
― com um ribombar repetido e assustador ―,
despertam de sua reflexão o índio.
Em um átimo, a paisagem
ganha espessas pinceladas de vermelho.
O mundo explode em sangue
diante do guerreiro: a tribo
covardemente atacada
― velhos, crianças, mulheres,
algumas grávidas,
atravessadas a espada, ou
já atingidas pelos tiros.

Sua família, sua tribo,
todos
vítimas de algozes gananciosos,
sedentos por terras,
e pelas riquezas que delas
se pode extrair.
Veloz, o guerreiro tupinambá
corre destemido rumo aos seus
e ouve um trovão ― não, não é de Tupã!
Dor, insuportável dor!...
Diante de seus olhos, a última visão:
o chão e a escuridão.

O nada destruidor passou a imperar
na Enseada dos Morubiras...
(de minha autoria)


Disponível em: luizmalvino.blogspot.com. Acesso em:11/07/2010.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Chorando pra Cachorro na Praça da República

Na manhã do domingo, dia 25 de abril, na Praça da República, o público presente próximo ao Theatro da Paz foi brindado com um concerto de uma orquestra de choro. O evento é uma homenagem ao Dia do Choro, festejado todo ano no dia 23 de abril, data de aniversário de Pixinguinha (1897-1973), um mestre neste que é considerado o mais brasileiro dos gêneros musicais.
Mosqueiro marcou presença nesse importante evento, já que esteve por lá o grupo Chorando pra Cachorro, representado por Evandro Praia (violão 6 cordas), Leandro Moraes (surdo e cavaco), Jorge Bíndalos (violão 7 cordas) e Denílson Machado (flautas e saxofone). Os outros componentes do grupo, que não puderam estar presentes, são: Lauro Pantoja (cavaco), Ronaldo Andrade (bandolim) e Dico Medalha (pandeiro). Familiares e amigos dos músicos puderam também ir até lá no mesmo ônibus que levou e trouxe o grupo, ajudando com uma contribuição simbólica, no que foram apoiados pelos senhores Elídio Machado e Amândio Ribeiro.
A orquestra contou ainda com componentes de outros grupos de chorões de Belém, como o Charme do Choro, Sapecando no Choro, Corda Solta, Gente de Choro, Clave da Lua e Choramingando, todos eles apoiados pelo projeto Casa do Choro, da Secretaria de Estado de Cultura, via Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves. O palco ficou pequeno, para caber tantos músicos, entre homens, mulheres e até crianças. O repertório foi variado, com execução de composições de Pixinguinha, de Yuri Guedelha, de Adamor do Bandolim, entre outros mestres do choro.
Felizmente, Belém é agora a 3ª força do choro no Brasil, contando com um veloz crescimento do número de músicos e grupos do gênero, graças, em muito, ao apoio institucional e a figuras inspiradoras, como Adamor do Bandolim (compositor e grande incentivador do choro em Belém), Paulinho Moura, idealizador do projeto Casa do Choro, entre outras pessoas ligadas ao choro na capital do Pará.
Só quem esteve por lá pôde ver, ouvir e dançar ao ritmo de acordes vibrantes, coisa bem rara de acontecer nesse deserto cultural que muitas vezes se instaura em nossa cidade e em nosso estado. E quem pensa que choro é coisa de gente idosa, muito se engana, pois estavam por lá gente de todas as idades, entre crianças, adolescentes, adultos e pessoas da melhor idade. Todos embalados pela música dos mestres do choro.
Os músicos do Chorando pra Cachorro, ao representarem Mosqueiro nesse evento, enchem a Ilha de orgulho, ilha em vários sentidos, muitas vezes isolada culturalmente, sem quase nenhuma perspectiva para seus habitantes, que amargam um vazio bem grande nesse setor. (por Alcir Rodrigues)



Acima, da esquerda para a direita: Leandro, Evandro, Denílson e Jorge Bíndalos

domingo, 21 de março de 2010

Um certo Mário... em uma certa praia

Aqui, nesta calçada,
defronte deste caramanchão,
próximo ao chalé Porto Franco ― desde a Belle Époque
mirando a Baía de Marajó ―,
sem chapéu na cabeça,
na mão, ou virado no chão,
contemplo um tempo
que não vi(vi):
vejo ali na areia
e após na água da praia,
(a banhar-se),
a alegria descontraída
de Mário de Andrade
― é maio de 1927 ―,
entregue às ondas
destas águas do Chapéu-Virado,
neste tempo que não
vi(vi),
mas que perco-ri
na transcendência das entrelinhas imaginárias
deste poema
que agora escrevi(vi).


(Muita gente desconhece o fato de que Mário de Andrade, quando esteve pesquisando aqui na Amazônia as fontes que o levariam à elaboração de seu notável romance Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, também esteve em Mosqueiro, onde tomou banho de praia, no Chapéu-Virado, em maio de 1927.)Segue, abaixo, uma foto de Mário, no Chapéu-Virado, "capturada" do Blog do Haroldo Baleixo:

Chapéu-Virado, 21 de janeiro de 1836

Piso este solo sagrado,
onde sou apenas remanescente
dos que tombaram, heróis sidos,
mortos que caminham hoje
nas sendas da memória
de quem os reverencia.

É dia 21 de janeiro de 1836:
balas chispando o espaço
do que seria o futuro Chapéu-Virado,
alvejando as tropas em conflito
e chacoalhando meus neurônios,
excitando-os em sinapses imaginárias...

... e legalistas tombando,
cabanos tombando
e se levantando agora,
no momento em que reescrevo
suas trágicas histórias,
libertando-as do apagamento
a que o ostracismo condenou.

Os canhões trovoam, mesclados
ao som do arrebentar dos vagalhões
ali na beira da praia...

Uma praça, uma igreja, um caramanchão...
Um prédio de um antigo hotel...
O edifício Lílian Lúcia...
O chalé Porto Franco...
A orla, as farmácias, as barracas...
Banhistas, passantes, carros,
motos e bicicletas habitam este solo
em fronteira com a praia do Farol.
Os heróis tombam no combate,
clamam, num ganido candente:

― Quem se lembra de nós, que lutamos desigualmente
por um punhado de menos desigualdades?!...

Um grito inaudível ecoa em minha mente...



(Pouquíssimas pessoas tem conhecimento desse evento histórico de tão alta relevância, relatado em primeiro lugar no livro "Motins políticos", de Domingos Antônio Raiol, no terceiro volume, publicado pela UFPA, 1970, p. 894)

quinta-feira, 4 de março de 2010

Sesquicentenário: presente de grego

Caro amigo

Talvez você ainda se lembre destas palavras: “Foi o curumim / Para adormecê / Na samaúma/Mãe da floresta/ Plumas ao vento...”
Você lembra? Claro que sim. Você não esqueceria da canção de Nilson e Vital, esquece-ria? Amocario, é este o nome, não? Versos singelos e bonitos. Concordo com os autores, pois a samaúma é, sem dúvida nenhuma, a mãe da floresta. E que espetáculo é ver suas plumas ao vento.
Você pode estar pensando: “Mas que papo despropositado para uma carta entre amigos que já não conversam há tanto tempo!...” Porém, peço-lhe que continue lendo e entenderá meu intento. Amigo velho, você então recorda da nossa amiga-mãe, a velha samaumeira da Av. 16 de Novembro? Aquela de aproximadamente 150 anos... Aliás, velha apenas no sentido huma-nizado, porque no sentido, como diria... arbóreo da palavra, só e´ velha no sentido carinhoso, já que para uma samaumeira um sesquicentenário talvez corresponda a somente 15 primaveras. É isso: 15 primaveras!
Exuberante. Pomposa árvore. Árvore guia dos pescadores que a avistam da baía deste longe e podem por ela se orientar. Longeva, poética. Humana árvore.
Mas algumas pessoas são demasiado hu-ma-nas para perdoar que uma árvore, para elas velha, viva tanto, já que viver tanto é imperdoável num país como o nosso. Aqui as pessoas normalmente vivem pouco, muito pouco. Morremos de velhice aos cinqüenta, acusados de vagabundagem pelo presidente República, se já formos aposentados. Isso se não morrermos de fome, ou assassinados, quando crianças ou jovens. E se não morremos de raiva (da seleção, do governo, dos vizinhos chatos...) aos quarenta. Faço todo este circunlóquio para lhe revelar, em doses miúdas, a má notícia. Eu sei que você é nervoso por natureza, que se desesperou assis-tindo de camarote a seleção perder a copa. Sei que sofre ao ver o Fluminense na 2ª divisão. E sei também que assim já estou lhe deixando tenso. Por isso, prepare-se. Lá vai: estão cortando a velha samaumeira. Pronto. Consegui dizer... É verdade, velho amigo, estão primeiro amputando seus galhos, aos poucos, para então mais tarde deceparem-na no tronco, por completo.
Imagino que você pense que há a lei para impedir tal criminoso ato, que o Ibama pode agir (multar, prender, sei lá...). Mas eu esclareço, mano: é a própria lei, no momento, que obriga darem cabo da nossa amiga tão estimada. Parece inacreditável, mas é verdade: é ato legal este assassínio, este extermínio de um ser legendário e desde muito patrimônio de nossa ilha. E, se você se sente revoltado aí, distante que está, tente imaginar como me sinto, aqui perto, vendo a destruição de uma vida que nos é tão cara!
Você deve ter na cabeça um rebanho desembestado de dúvidas. Acontece que esse pre-sente de aniversário dado à samaumeira , um presente de grego para seus 150 anos (primeiro, único e último presente), é por causa do perigo iminente que ela (alegam) propicia à vida das pessoas que moram ali, sob sua cabeleira pujante e sombreira. E, para complicar mais, vândalos, segundo pessoas dali, recentemente atearam fogo no tronco da árvore, e enormes línguas vermelhas e ardentes logo-logo devoraram parte de seu caule. (O fogo trabalhou ─ pasme! ─ durante toda uma noite.) Foi um crime ecológico. O irônico, meu amigo, é que tudo começou num monturo de lixo que foi entulhado no tronco. Por quem? Pelos vândalos? Até poderíamos rotular de vândalos esses sádicos, o que ainda seria acusação pouca; todavia, o difícil é crer que, em vez depredar orelhões, pichar muros e casas, apedrejar telhados e cachorros, tenham os delinqüentes escolhido logo a samaumeira para seu sinistro entretenimento. Não posso crer nisso. Pergunto-lhe, amigo, de quanto tempo precisariam esses tais vândalos para acumular tanto lixo no tronco da planta, que aliás é imenso? Parece-me que os tais vândalos são, para falar literariamente, uma supra-realidade, personagens inventados para encobrir os reais perpe-tradores do gravíssimo delito. Ora, não é preciso ser Sherlock Holmes para saber a quem inte-ressa o aniquilamento da mosqueirense sesquicentenária. Desde muito tempo houve quem a-chasse por bem cortar-lhe alguns “galhinhos”, pois seu sombreiro ameno lhe incomodava.
Dia 20 de setembro, junto com dois amigos, fui vê-la de perto, um dia depois do dia da árvore. Batemos algumas fotos. E observamos alguns detalhes curiosos: o buraco no caule, que (segundo alegam) foi aberto pelo “fogo dos vândalos”, não o foi na verdade, pois já estava lá há muito tempo. É uma velha cicatriz, só reaberta pelo fogo. Mas já estava lá havia muito tem-po. Disseram, por outro lado, que mesmo sem a ação destrutiva do fogo, qualquer vendaval já poderia derrubá-la sobre as residências dali. Mentira! Suas sapopemas (raízes aéreas) estão firmes ─ mesmo depois das chamas ─ e se estendem pelo terreno, ampliando-se como uma teia gigante a entranhar-se pelo solo, dando-lhe incrível vigor. Não cai, tenho certeza. É tão firme quanto suas irmãs lá de Nazaré e da Praça Batista Campos.
Um engenheiro agrônomo, que reside ali por perto, opinando sobre o caso, acusou de incompetentes os que assinaram o laudo, visto que não levaram em consideração que na sama-úma não há folhas necrosadas, que o cerne do caule do vegetal pode não ter sido atingido, que as sapopemas a sustentam firmemente. Em síntese: a árvore não está morta. Estão matando-a!
Por isso, continuo a desconfiar de que há forças nada ocultas por trás da derrubada desta gigante-mãe da floresta. Ela, resoluta e corajosa, desafia o tempo e forja uma história de vida de um século e meio. Nasceu, pois, no Império, pouco depois da derrocada dos heróicos cabanos. Foi contemporânea da guerra do Paraguai, da Libertação dos escravos, da Proclama-ção da Republica. Presenciou cautelosa o apogeu e declínio da riqueza dos seringais. Sobrevi-veu às duas grandes guerras, ao estado novo de Getúlio, ao maldito Golpe de 64, à conquista da Lua. Viu o Brasil ganhar 4 copas do mundo. Principalmente, viu Mosqueiro tornar-se vila e festejar seu centenário. A mãe da floresta é, há três cinqüentenários, testemunha de todos esses fatos, e muitos outros mais.
No ano de 97 tivemos aproximadamente 52 semanas. Multiplicando isso por 150, teríamos em torno de 7 821 semanas. É muita vida! No entanto, aquelas que se dizem técnicos, em uma semana, uma só semana, decidiram que ela já não pode viver mais. Ela incomoda al-guns, por isso deve ser extinta. Os idiotas ignoram que não é ela sozinha que morre: morre um pouco de cada mosqueirense, que tomba e desaba também. Os idiotas ignoram que uma sa-maumeira contém em si um miniecossistema, pois abriga maternalmente (há 15 décadas) gera-ções de vegetais e animais (alguns vivem ali por toda vida): orquídeas, bromélias, samambaias, trepadeiras de toda espécie, calangos, pássaros, besouros borboletas... como disse, um minie-cossistema.
Meu caro amigo, é uma barbaridade! É revoltante e doloroso pensar que, para os que querem morta a planta, o que vale é a lei dos “incomodados que se mudem”. Será que a Prefei-tura de Belém e a Agência Distrital, antes de tomarem a decisão (sem novamente consultarem o povo da ilha!), procuraram verificar o imposto (IPTU) dos que ali, de vez em quando, passam seus fins-de-semana? Será que estão em dia com suas obrigações? E mais: sabe-se que os crimes ecológicos aqui em Mosqueiro sempre tiveram e ainda têm muito a ver com a omissão das autoridades. No caso da samaumeira, por que deixaram que construíssem casas à sua proximi-dade? Os terrenos foram re-al-men-te aforados antes de serem loteados? Foi isso? E a fiscali-zação? O que impede a Prefeitura de desapropriar a área, redimindo-se assim de seu erro.
Certamente, desde muito, um parque (uma praça com brinquedos e tendo como ele-mento físico predominantemente o verde, as árvores) cairia muito bem como o lugar. O povo agradeceria, principalmente a criançada e, é claro, a samaumeira ─ que ficaria, para a felicidade geral dos ilhéus, preservadíssima, verde, majestosa, imponente.
Entretanto, meu amigo, isto que digo são só palavras, só desabafos. A ignorância, a prepotência e a mesquinhez ─ que sempre se irmanam no controle do poder ─ ganham nova-mente a queda-de-braço, infligindo à coerência e à solidariedade uma inconformada e revoltan-te derrota.
Eu sei o que você me diria, amigo. E o que faria se estivesse por aqui. Contudo, peço que tenha indulgência por minha covardia e falta de iniciativa, pois me sinto desarmado.
E sinto-me infinitamente triste, sabendo que o curumim não vai mais adormecer na samaúma...
Adeus, árvore-amiga!
Até breve, amigo. Escreva.



(Escrevi esse texto como forma, embora ínfima, de demonstrar revolta pelo assassínio da mais antiga árvore de Mosqueiro, que ficava às proximidades da Avenida 16 de Novembro, com a conivência da Funverde (hoje SEMMA), Corpo de Bombeiros e agente distrital Paulo Uchôa, que não impediram que interesses imobiliários se sobrepusessem a valores ecológicos e humanos. É... é sempre assim... essa velha história...)