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domingo, 4 de julho de 2010

Páginas de culpa

Desde criança que comecei a perceber que os livros que não terminei de ler são como viagens iniciadas mas nunca acabadas, e o pior, sempre por acabar, tal como uma maldição a me perseguir, como uma alma penada que não tem destino no mundo porque seu destino interrompido não a deixou seguir até o fim sua viagem.
Assim, muitas viagens tenho por fazer, muitas releituras a recomeçar, pois a estradas pelo meio percorridas não me são mais familiares. Tudo tem de ser reiniciado, passo a passo, estrada a estrada. E cada quilômetro percorrido, uma sina da qual meio pela metade me livro, a alma a se libertar de uma pesada cruz.
Qual dessas cruzes, penso, mais me atormenta ainda hoje? Talvez o Evangelho segundo Jesus Cristo? Talvez O perfume? Talvez o livro inicial da série Em busca do tempo perdido, o romance O caminho de Swan? Muitos livros, muitas histórias inacabadas, plagas jamais visitadas, paisagens nunca admiradas, pessoas excepcionais e desconhecidas, batalhas por vencer, e perder também, experiências a me moldar o caráter, a me fazer crescer em personalidade, mundos a explorar. Entre esses mundos, uma visita inacabada, que quero o mais brevemente possível acabar de fazer, é a visita ao Ulisses de James Joyce, esse irlandês pregador de peças em palavras, esse prestidigitador das páginas, essas que virarei sem pestanejar, logo tenha em mãos o livro, romance-esfinge por decifrar, eu novo Édipo então, todo orgulhoso.
O mesmo acontece com o Grande sertão: veredas, outra esfinge, outro mapa literário de veredas por percorrer, jagunços por enfrentar, o Bem e o Mal a se digladiarem em páginas memoráveis de um estilo de contar falando, de Riobaldo, fazendo as coisas acontecerem diante de meus olhos de leitor atento interessado, meio perdido, meio me achando ali pelo mato, pelas travessias de rios, ouvindo os berrantes dos condutores da boiada. Não sei por que não me perguntam todos os dias, quando caminho nas ruas, como se virando páginas em branco, porém povoadas de personagens promotores de tribunais de literatura, interrogando-me duramente: “Por que parou? Parou, por quê?”
Com o Terra de Caruaru tudo foi diferente: primeiro, porque pedi a um amigo ‘livreiro’ ― sempre me trazendo livros que ele dizia ter ganho de alguém, mas que não leria nunca, e eu sempre dizendo “Não!” a princípio e acabando por aceitar o presente ― que me trouxesse esse romance de José Condé, pois dele já lera a novela (maravilhosa!) Vento do amanhecer em Macambira. Estava curiosíssimo pelo que iria encontrar em Terra de Caruaru, só que, por diversos motivos, acabei não passando da página 50. Minha mãe e esposa já o leram e adoraram. Eu já reiniciei sua leitura três vezes; contudo, não dei prosseguimento a ela. É uma prioridade para mim, assim como o Passagem dos Inocentes, que preciso ler com urgência.
Em uma situação como essa, em que vivo constantemente sob a acusação ―minha própria acusação ― de culpado por não ler, por não saber da beleza das obras deixadas de lado, com um peso enorme na consciência de leitor frustrado, não há como vociferar um “Protesto!”, pois ouviria sempre e sempre um “Mantido!”, e com toda a razão do mundo me calaria e assumiria a culpa do crime de ter perdido o que perdi, irremediavelmente. Punição? Prisão perpétua, sem nenhuma página para ler...

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