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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

domingo, 21 de fevereiro de 2016

E/ro(s)mantismo de beira-rio-mar





Não há, não há
outro regaço onde
queira buscar aconchego,
outro corpo onde
queira encontrar calor,
sim, não há decerto
outra pele macia
e perfumada onde
queira tocar e sentir
a excitação visceral
como única fonte
de doce encanto. Nada
há como o aroma
dos cabelos da morena
− moldura natural para
a face do amor.

Tem ela aquela voz
tal qual a leve luz
na matinal
mansidão da foz
do rio Mari-Mari,
acariciando
foneticamente
os ouvidos do amado
− no friozinho invernal
da preguiçosa segunda-feira...

Tudo vai passando lá fora.
Dentro, o tempo estacionou,
abrigou-se de mansinho,
afugentando de todo a solidão.

Os pés flutuam leves,
levando-te-trazendo
do quintal ao trapiche
e à pequena faixa de areia,
ousando ser praiinha
de ventos esvoaçantes
a desenhar ao ar livre
as curvas morenas
no perambular onduloso
nas marolas da beira
da Baía de Santo Antônio.

Uma rabeta ronca o motor
ao longe... ao longe, uma-duas
gaivotas exibem-se no céu
no momento em que
o azul toma a decisão de
 dissipar a névoa.

A rede range a cada
calmo balanço...
O estalido de um beijo
desperta o caboclo.
Mãos puxam outras duas.
E a rede de amor
ganha um novo balanço
− que de calmo já
nada pode ter...

Do lado de fora,
floresta, rio-baía-mar, céu e nuvens,
tudo-tudo estacionado,
agora...


sábado, 20 de fevereiro de 2016

Publicação na Revista Genius

“Genius”: escrevendo com arte!

Todos sabemos o significado de “genius”, que em nossa língua portuguesa corresponde a “gênio”. E aqui a evidenciamos omitindo aquele seu outro significado que batiza alguém como pessoa geniosa ou temperamentalA palavra “Genius”, neste texto, obviamente está relacionada a pessoa de extraordinária capacidade intelectual e/ou que possui grande domínio ou conhecimento em determinado assunto.
Mas, nestes escritos, queremos nos reportar, especial e especificamente, à revista “Genius”, de periodicidade mensal, nascida na cidade de João Pessoa sob a direção do escritor Flávio Sátiro Fernandes e que – se não nos enganamos – já vai com mais de dez edições.
Em relação ao recente mês de novembro, “Genius” contou com uma edição especial – já à venda nas bancas de revistas deste Estado – e trazendo uma capa ainda mais especial, que destaca uma risonha caricatura de José Lins do Rego com chapéu típico de cangaceiro, com seu pé direito sobre uma bola de futebol, ele com gravata do clube Flamengo e lendo seu próprio livro “Cangaceiros”.
Ficou já entendido que essa edição especial de “Genius” é uma homenagem ao escritor paraibano que dá seu nome ao nosso Espaço Cultural concebido, construído e efetivamente instalado na gestão do governo Tarcísio de Miranda Buriti.  E nesta edição a frase ou manchete de capa é a seguinte: “José Lins do Rego – escrevendo com engenho e arte”.
E quanta arte, quanto talento, quanta capacidade criadora estão expressas nessa edição especial da revista “Genius” ao homenagear o gênio José Lins do Rego!.. Nela estão abordagens de nada menos do que onze outros gênios da literatura brasileira, todas enaltecendo – como constante na Carta ao Leitor – “o menino de Pilar, aquele que é, sem dúvida, um dos mais destacados romancistas brasileiros do século XX”.
Na impossibilidade de fazer referências a todas essas abordagens, não podemos deixar de transcrever um trecho do discurso do então deputado federal Carlos Lacerda, de 1957, na Câmara Federal, discurso este integralmente reproduzido pela revista “Genius” sob o título “Um amante das boas histórias e das boas gargalhadas”. Eis o trecho: “Não conheci até hoje ninguém mais povo do que José Lins do Rego. E tinha talento demais para ser inteligente. O seu talento era tão grande que a inteligência era por ele muitas vezes abalada”.

Do site Mais PB
Disponível em: http://www.maispb.com.br/146351/genius-escrevendo-com-arte.html . Acesso em: 20 fev. 2016.
Fico feliz e agradecido à revista por ter aceito texto meu para publicação na Edição Especial de novembro/2015 -- José Lins do Rego: escrevendo com engenho e arte --, cuja capa reproduzo abaixo, assim como foto minha lendo a revista, fotografado por minha esposa Helen Campinas:


"A Genius aborda em suas páginas temas diversos, como Literatura, Poesia, Filosofia, Artes Plásticas, Cinema, Arquitetura, Ciência Política e Folclore, com a colaboração de intelectuais e acadêmicos de todo o Brasil."
Texto do site da Associação Brasileira de Imprensa. Disponível em: <http://www.abi.org.br/em-defesa-do-jornalismo-cultural-de-qualidade/>. Acesso em: 20 fev. 2016.

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O texto é um artigo, que segue, na íntegra, abaixo, tal qual aparece na revista, mas não com a mesma paginação. Boa leitura!

Ostentação e decadência em Fogo morto, de José Lins do Rego
Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues[1]
Resumo
Este artigo tenciona analisar a ostentação e a decadência como aspectos sociais no romance Fogo morto (1943), especificamente no capítulo “O engenho de seu Lula”, uma das três partes da obra-prima de José Lins do Rego, um dos mais significativos representantes da literatura brasileira de expressão nordestina. A contradição é mais que evidente: quanto mais o engenho Santa Fé foi entrando em processo de decadência, mais o personagem Lula de Holanda, proprietário do engenho, foi se tornando mais excêntrico também. A ostentação é somente uma das excentricidades desse personagem, mas é um aspecto essencial que denota seu apego por um modo elitizado de vida. Nessa perspectiva, Antonio Candido mostra-se o autor mais adequado para o viés analítico desta pesquisa.
Palavras-chave: ostentação, decadência, Fogo morto.
Abstract
This article intends to analyze the ostentation and the decadence as social aspects in the novel Fogo morto (1943), specifically into the chapter “O engenho de seu Lula”, one of the three parts of the masterpiece by Jose Lins do Rego, one of  more meaningful representatives of  Brazilian’s literature of northeastern expression.  The contradiction is more than evident: how much more the Santa Fé farmer was entering in decadence process, more the character Lula de Holanda, owner of the farmer, was becoming more eccentric, too. Ostentation is only one of the eccentricities of this character, but an essential aspect to denote his fondness for a way of life of elite. In this perspective, Antonio Candido shows to be the more adequate author to the analytical nature of this search. 
Keywords: ostentation, decadence, Fogo morto.
Introdução
Era o cabriolé do coronel Lula enchendo de grandeza a pobre estrada que dava para o Pilar. (REGO, 1997, p.19)
            Desde muito no Brasil a classe social que detém as rédeas do poder necessita alardear sua autoridade sobre as demais classes sociais, por intermédio de diversos procedimentos, tais como humilhar, surrar, prender, matar, entre outros. Então, deixar bem claro quem manda, e quem deve obedecer a quem, é máxima preponderantemente seguida não apenas neste Brasil de hoje, já que é prática bem comum desde tempos coloniais, por altos funcionários da coroa portuguesa e por latifundiários, integrantes ou não da aristocracia, por exemplo. Desde lá que ipsis litteris se tem propagado um famoso dito com carga semântica ainda de atualidade inconteste: “Manda quem pode, e obedece quem tem juízo.” A literatura pode fornecer testemunho vivo dessas relações de mando e desmando. O romance Fogo morto é bem apropriado para a análise proposta: a era de esplendor do engenho Santa Fé chegou ao fim, a decadência paulatinamente se vai instaurando, até chegar à ruína completa, mas é necessário manter a aparência do esplendor, daí a ostentação, a tentativa de se mostrar ainda quem está no poder.
1 Súmula de autor e obra:
José Lins do Rego Cavalcanti nasceu no Pilar, no estado da Paraíba, em 1901, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1957. Passou a infância e a adolescência no engenho Corredor, propriedade de seu avô materno. Formou-se em Direito (1923) pela Faculdade de Recife. Nessa época, com José Américo de Almeida, Olívio Montenegro e Gilberto Freyre, integrou o Grupo Modernista de Recife. Foi promotor público em Minas (1925) e trabalhou também para o Ministério da fazenda e foi fiscal de bancos, em Maceió (1926), onde conheceu Aurélio Buarque de Holanda, Graciliano Ramos, Jorge de Lima e Raquel de Queiroz. Em 1955, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, vindo a falecer dois anos depois. O escritor paraibano colaborou em jornais no Recife, em Maceió e no Rio de janeiro, para onde definitivamente se transferiu (1935), nomeado como fiscal do imposto de consumo. Fez viagens ao exterior, por países sul-americanos, europeus e orientais. É um dos mais significativos prosadores do Modernismo brasileiro.
Como escritor de ficção, Lins do Rego produziu obras organizadas em dois ciclos, o Ciclo da Cana-de-Açúcar, do qual fazem parte Menino de engenho (1932), Doidinho (1933), Bangüê (1934), Usina (1936) e Fogo morto (1943); e o Ciclo do Cangaço, Misticismo e Seca, do qual fazem parte Pedra bonita (1938) e Cangaceiros (1953). Além disso, José Lins é autor dos romances O moleque Ricardo (1935), Pureza (1937) e Riacho doce (1939), vinculados aos dois ciclos. Já Água-mãe (1941) e Eurídice (1947) são obras desligadas de ambos os ciclos.  Acrescidos a esses 12 romances, o escritor paraibano presenteou seus leitores com Histórias da velha Totônia (infantil, 1936), Meus verdes anos (memórias, 1956), sem mencionar os outros livros de crônicas, de conferências e de viagens. A crítica literária, de modo geral, considera Fogo morto sua obra-prima, romance integrante tardio do Ciclo da Cana-de-Açúcar e considera o autor um representante do Modernismo da Geração de 1930, ou Regionalismo de 1930, também nomeado de Neo-Realismo, por seu caráter de denúncia social, enfocando o poder do senhor de engenho, o latifundiário, o trabalho semi-escravo dos trabalhadores do eito, o patriarcalismo e machismo vigentes, os problemas trazidos pela seca, pelo misticismo e pelo cangaço.
2 Fogo morto
A expressão metafórica ‘de fogo morto’[2] era usada para se referir a engenhos que não “botavam” mais, ou seja, não moíam mais a cana para extrair o caldo (ou garapa) destinado aos tachos, para virar melaço a ser cristalizado em forma de açúcar. Sem o fogo dos tachos, sem sua fumaça a sair pelos bueiros (bocas das chaminés), o engenho ficava de fogo morto, como podemos ver na passagem abaixo:

E saíram. Lá da estrada, quando deram a volta, viram a fumaça do bueiro do Santa Rosa melando o céu azul.
– O Santa Rosa botou hoje?
– É capitão.
Foram andando.
– Me esqueci de dizer a Adriana para ela trazer umas botinas novas que o Augusto do Oiteiro me deu, para calçar no compadre.
– É capitão.
Agora viam o bueiro do Santa Fé. Um galho de jitirana subia por ele. Flores azuis cobriam-lhe a boca suja.
– E o Santa Fé quando bota, Passarinho?
– Capitão, não bota mais, está de fogo morto. (REGO, 1997, p. 257-258)

Trata-se do trecho final do romance, quando o capitão Vitorino Carneiro da Cunha e o negro liberto Zé Passarinho caminham pela estrada rumo à casa do mestre Zé Amaro, que havia se suicidado cravando uma faca no peito. Dois engenhos são mencionados, comparativamente, o Santa Rosa, do senhor de engenho Zé Paulino, até ali produzindo prosperamente, e o engenho de Lula de Holanda, ‘de fogo morto’, ou seja, passou do estágio da decadência à ruína completa.
A história do romance transcorre nos anos iniciais do século XX e desenha com profundidade o modus vivendi patriarcal em engenhos de cana-de-açúcar da Paraíba. A prosperidade que antes vigorava, naquele momento entra em contínuo e terminal processo de declínio, que, se por um prisma é lento, e poderia dar ao leitor indícios de um alento de possível recuperação financeira do engenho Santa Fé, por outro prenuncia um epílogo fatídico, naquele arrastar-se de degradação social e econômica que contagia tudo.    
O esplendor de uma época se confronta com sua ruína, não sem antes passar pela decadência, o entremeio que esmaece e dilui o choque entre os pólos, a lembrar o ensinamento de Antonio Candido no contraponto à fixação estruturalista com o número dois (os binarismos antagônicos) e na afirmação de que “[...] o 2 freqüentemente desliza ou deveria deslizar para o três”, como no esquema triádico da dialética marxista de base hegeliana. Por isso, Candido afirma: “Quando as [...] análises não deixam vislumbrar o deslizamento e se fecham realmente na díade antinômica, temos as mais das vezes um sentimento de que falta alguma coisa para completar o panorama [3].”
O número três é aqui não só uma coincidência, mas um dado de natureza mais que funcional para a análise de Fogo morto, como na passagem abaixo, do ensaio “A personagem do romance”, também de Candido:

José Lins do Rego, em Fogo morto, descreve obsessivamente três famílias, constituídas cada uma de três membros, com três pais inadequados, três mães sofredoras, tudo em três níveis de frustração e fracasso; e cada família é marcada, sempre que surgem os seus membros, pelos mesmos cacoetes, palavras análogas, pelos mesmos traços psicológicos, pelos mesmos elementos materiais, pelas mesmas invectivas contra o mundo. (1990, p. 76)
  
Ora, o romance se constrói a partir de três capítulos, pedras fundamentais na elaboração de um universo onde três personagens centrais dividem os espaços de existência ficcional: o mestre José Amaro, o senhor de engenho Lula de Holanda e o capitão Vitorino Carneiro da Cunha. Dos três, o latifundiário, aquele senhor de terras e gente, é Lula, pois Zé Amaro não é dono de seu sítio, vivendo nas terras do engenho Santa Fé, de Lula; o capitão Vitorino mora em um sítio na estrada próxima ao município do Pilar. Enquanto Amaro é ensimesmado e trabalhador dedicado, é seleiro e trabalha em casa com couro, Vitorino não pára em seu sítio, sua mulher tendo que sustentar a casa, pois o marido estava sempre metido em política e confusões por ser exaltado com quem lhe dizia desaforos. A relevância desses dois personagens é indiscutível, todavia ater-se a eles e suas famílias pode ser inoperante para a proposta deste artigo, que se centra na figura do personagem Lula de Holanda e sua família, o esplendor, a decadência e a ruína de seu engenho, o Santa Fé.
3 Santa Fé: do esplendor à ruína
Entre o fausto produtivo do engenho Santa Fé e sua ruína, pólos opostos de um processo, tem de haver um permeio: entre o ‘fogo vivo’ e o ‘fogo morto’ da fornalha que não produz mais a fumaça, signo índice (“Onde há fumaça, há fogo”) a mostrar a todos que o engenho ainda ‘botava’, entre uma coisa e outra, o processo de declínio, o meio-termo a subsidiar a análise da causa dessa ruína. O longo, mas bem elucidativo excerto a seguir, dá luz sobre tal questão:

                                     A barba de Seu Lula era toda branca, e as safras de açúcar e algodão minguavam de ano para ano. As várzeas cobriam-se de grama, de mata-pasto, os altos cresciam em capoeira. Seu Lula, porém, não devia, não tomava dinheiro emprestado. Todas as aparências de senhor de engenho eram mantidas com dignidade. Diziam que todos os anos ia ele ao Recife trocar as moedas de ouro que o velho Tomás deixara enterradas. A cozinha da casa-grande só tinha uma negra para cozinhar. E enquanto na várzea não havia mais engenho de bestas, o Santa Fé continuava com as suas almanjarras. Não botava máquina a vapor. Nos dias de moagem, nos poucos dias do ano em que as moendas de Seu Lula esmagavam cana, a vida dos tempos antigos voltava com o ar animado, a encher tudo de cheiro de mel, de ruído alegre. Tudo era como se fosse uma imitação da realidade. Tudo passava. Na casa de purgar ficavam os cinqüenta pães de açúcar, ali onde, mais de uma vez, o Capitão Tomás guardara os seus dois mil pães, em caixões, em formas, nas tulhas de mascavo seco ao sol. Apesar de tudo, vivia o Santa Fé. Era engenho vivo, acendia sua fornalha, a sua bagaceira cobria-se de abelhas para chupar o resto de açúcar que as moendas deixavam para os cortiços. O povo que passava pela porta da casa-grande sabia que lá dentro havia um senhor de engenho que se dava ao respeito. Ninguém gostava do velho Lula de Holanda, mas ao vê-lo, com as barbas até o peito, todo de preto, de olhar duro e fala de rompante, todos o respeitavam. Era um homem sério. (REGO, 1997, p. 166-167)

            “Apesar de tudo, vivia o Santa Fé”: essa concessão denota claramente a que ponto de chegada a ( falta de) administração de Lula de Holanda levaria o Santa Fé. Toda a passagem acima é ordenada em conformidade com um esquema de comparações e contrastes entre a época de prosperidade do engenho, quando nas mãos de seu Fundador, o capitão Tomás Cabral de Melo, e a decadência, nas mãos de seu genro, Lula.
            Note-se a diferença fundamental entre o engenho fundado pelo capitão Tomás e o (des) administrado por Lula, que pode ser percebida notoriamente na página em que se lê  “[...] O Santa Fé, nas suas mãos, dava mais que outros engenhos de mais terras, de outros recursos. E o capitão Tomás criou fama de homem de capricho, de palavra, de trabalho duro” (REGO, 1997, p. 123); em contrapartida, veja-se a frase-parágrafo final do capítulo estudado: “Acabara-se o Santa Fé” (id., ibid., p. 178). O desfecho em aberto “– E o Santa Fé quando bota, Passarinho?/ – Capitão, não bota mais, está de fogo morto” (REGO, 1997, p. 258) suscita uma dúvida, ao se fechar o livro: de que viverá a família de Lula? De produção agrícola e criação de animais para subsistência, pois dona Amélia, esposa de Lula, já vendia sem ele saber os ovos das galinhas? Ou seria mais provável a venda do Santa Fé?
Lula, com sua vaidade, com uma mescla de inépcia e apatia – a descambar em uma total falta de empreendedorismo e adaptação às novas realidades na área da produção de engenhos, como as máquinas que não usou para substituir a tração animal –, mais seu autoritarismo e um misticismo religioso hipócrita e doentio, só poderia arruinar a propriedade que herdou, arruinando também as relações familiares, com sua ostentação, seu gosto por um modo elitizado de vida, refletido nos objetos a que se apegara: o cabriolé tilintando nas estradas pobres, seu trajar de engravatado, as jóias das quais exigia o uso pela esposa e pela filha, a sala fechada da casa-grande, atapetada com quadros e piano, por exemplo. Ser epilético, indubitavelmente, não era a pior doença de Lula de Holanda.
conclusão
Este estudo pautou-se por critérios metodológicos abstraídos principalmente dos ensinamentos de Antonio Candido em seu livro Literatura e sociedade, entre eles, o de que o entendimento da obra literária depende da fusão de
[...] texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (s/d, p. 4, grifos do autor)
O condicionamento da obra a fatores de ordem social, histórica e econômica não é mais chave, como já o foi, para a leitura da obra literária. Um método de leitura crítico aceita o social como um dos vieses possíveis, mas não o único. Para uma leitura a partir da crítica, será mais proveitosa e menos superficial a leitura dialética que busque um equilíbrio de trocas entre a obra e a sociedade, considerando o aspecto social como de grande importância para a verossimilhança interna da obra. Em uma leitura crítica par excellence entram também elementos psicológicos, religiosos, lingüísticos, políticos e outros mais, assimilando, nessa leitura, a interpretação do social como valor estético, isto é, interno à escritura literária.
Segundo Frederic Jameson (1992, p. 15), a interpretação do texto, levando em consideração o ângulo político, é imprescindível, como no parágrafo a seguir:

Este livro vai argumentar em favor da prioridade da interpretação política dos textos literários. Ele concebe a perspectiva política não como método suplementar, não como auxiliar opcional de outros métodos interpretativos hoje em uso – o psicanalítico, o mítico-crítico, o estilístico, o ético, o estrutural –, mas como horizonte absoluto de toda leitura e de toda interpretação.
            E não há como não associar tais palavras desse estudioso americano com as de Franklin de oliveira (1978, p. 82):

[...] o papel de toda criação literária genuína é o de voltar-se contra as suas próprias bases sociais, sobretudo quando elas assentam nos contravalores que denigrem a existência humana. A função da literatura e da arte não é a de refletir a vida como ela é, e a sociedade que a determina. Muito menos será a de compensar-nos da vida malograda que vivemos [...] Arte e literatura são instrumentos de Conhecimento – de conhecimento operativo. Desnudam, desvelam, revelam a vida como ela é, indicando a vida que deve ser: a presuntiva beleza injetável no existir  humano. [...] O homem produz as obras de arte, e elas ensinam os homens a se produzirem e às suas vidas, conforme as leis da beleza.

Em Fogo morto, principalmente no capítulo final, o leitor pode vislumbrar o poderio político de alguns personagens, estes emblemáticos de suas classes sociais, tais como o senhor de engenho, coronel Zé Paulino, oportunista político e verdadeiro senhor e mandatário local. E por causa de seu poder como latifundiário rico, era ele, na verdade, quem escolhia o prefeito, como foi o caso do comendador e comerciante Quinca Napoleão. O tenente Maurício, da tropa volante, que perseguia cangaceiros como Antônio Silvino – este tido pelo povo em geral como “pai dos pobres” (REGO, 1997, p. 181) –, era opressor das classes menos favorecidas, mais terrível que os próprios cangaceiros, considerados como um poder extra-oficial, porém legítimo. Já Lula de Holanda é um típico representante de uma elite arruinada, um senhor de engenho orgulhoso como um senhor feudal sem o poder da riqueza de seu latifúndio improdutivo, mas vaidoso, apegado ao passado e à religião, isolado e humilhado por isso [4], contudo sua apatia o afastava da política.
A situação de ruína a que chegou o Santa Fé é emblemática, pois seria a de outros engenhos no futuro, inclusive o ainda próspero Santa Rosa, de Zé Paulino, pois o neto e herdeiro do engenho, Carlos de Mello, fracassa e vende-o a seu tio Juca, que o transforma na usina Bom Jesus, que mais tarde irá à falência[5].  Partindo daqui, desses dados internos à obra reguiana, o painel político da República Velha pode esboçar para o leitor um quadro de problemáticas herdadas desde o regime colonial, que não foram solucionadas cabalmente durante o império e ainda persistentes naquele momento: a monocultura em grandes latifúndios (nesse caso, açucareira), o semi-escravismo da mão-de-obra (a Abolição não deu terra nem profissão aos libertos), o choque da produção semi-artesanal do engenho com a produção industrial da usina, esta apoiada no capital emergente, o poder político dos coronéis, muitas vezes aliado a ou contra o cangaço, o misticismo exacerbado. Tudo isso é ficcionalizado pela maestria de um prosador nato como Lins do Rego, capaz de estetizar tudo isso nas linhas de sua obra-prima, proporcionando ao leitor uma dialética em que o texto ajuda a compreender o contexto, com uma recíproca totalmente verdadeira.
Então, os estudiosos acima mencionados (Candido, Jameson, Oliveira) possibilitam uma chave de leitura possível e coerente de Fogo morto em seus aspectos sociais tornados estéticos, a partir do binômio ostentação e decadência, mediadora esta como estágio anterior ao estágio da ruína.
                       
Referências bibliográficas
BARBOSA, Frederico. Para entender Fogo morto. In: REGO, José Lins do. Fogo morto. São Paulo: O Estado de São Paulo/ Klick Editora, 1997.
CANDIDO, Antonio. A passagem do dois ao três. In: Revista de História. São Paulo, v. 25, t. 2, nº. 100, p 787-799, out./dez., 1974.
____. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, s/d.
____. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio et ali. Literatura e personagem. São Paulo: Perspectiva, 1990, p. 52-59.
HOUAISS, Antônio et alii. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. RJ: Ed. Objetiva, 2004.
JAMESON, Frederic. O inconsciente político. A narrativa como ato socialmente simbólico.  São Paulo: Ática, 1992.
OLIVEIRA, Franklin de. Função política da literatura e da arte. In: SILVEIRA, Ênio et alii. Encontros com a civilização brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p 81-92.
REGO, José Lins do. Fogo morto. São Paulo: O Estado de São Paulo/ Klick Editora, 1997.

  



[1] Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Letras e Comunicação/ UFPA/Belém, Área de Concentração em Estudos Literários.

[2] Cf. in: HOUAISS, 2004, p. 1363; e BARBOSA, 1997, p. 266.
[3] Cf. in: “A passagem do dois ao três”, 1974, p. 787.
[4] Vide texto do professor Gilmar sobre Fogo morto, disponível no site  http://www.objetivoitajuba.com.br/caro/downloads/resumosgilmar/Fogo%20morto.doc. Acesso em: 22 jan. 2009.
[5] Para entender melhor esse contexto, ler Bangüê e Usina.

Dezembro a abril...

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Quase tudo em redor
resume-se
a branco e cinza.

Aqui e ali
uma vela
(que o vento
pouco leva)...

O mar cor de prata
e pouco encrespado
parece refletir-se
ao olhar-se
no espelho do céu...

As gotículas
friazinhas
aos milhares
quase enregelam
e embranquecem
toda a atmosfera
,
até entre nós
                      ,
apenas aquecidos
por aquelas
doses de branquinha,
de mão em mão.

Assim era a Praia Grande
         --para nós--
de fim de dezembro a abril...
...e ainda o é,
               nestes versos
               respingados de memória
traspassando-me como
sílabas úmidas...

A brisa
um pouquinho mais ligeira
perpassa
o próprio pensamento.
E o tira-gosto
é a bruma um tanto
translúcida,
quase transparência
no todo embaçado
                            deste panorama...

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Espaço ficcional em Ponte do Galo, de Dalcídio Jurandir

Espaço ficcional em Ponte do Galo, de Dalcídio Jurandir

Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues[1] (UFPA)

                                                                                                                                               
Resumo:

Esta é uma análise elaborada de forma preliminar à dissertação Espaço ficcional no romance Ponte do Galo, de Dalcídio Jurandir. É estudo intrínseco à obra, pois o espaço ficcional é uma entre outras categorias que na narrativa constroem a ficção romanesca. Contudo, ainda não recebeu a devida atenção nos Estudos Literários, fato que constitui uma lacuna, portanto. Em vista disso, partindo de nosso livro-corpus, sétimo (de um total de dez) do Ciclo do Extremo-Norte, tencionamos contribuir para o aprofundamento e detalhamento do estudo da categoria narrativa do espaço, e da ambientação, sua caracterização, funcionalidade e efeitos de sentido gerados por antíteses e oxímoros espaciais. Com isso, pretendemos coadjuvar no preenchimento de tal lacuna. Para tanto, consideramos fundamental a ferramenta teórica da Narratologia, mantendo diálogos com a semiótica da Escola de Tartu.

Palavras-chave: espaço ficcional, ambientação, Ponte do Galo, Dalcídio Jurandir, Ciclo do Extremo-Norte.

Introdução

        Como dado de esclarecimento absolutamente necessário, ressaltamos o fato de que este artigo constitui, ainda, um ponto aonde chegamos até agora no desenvolvimento de nossa pesquisa. Pode ser nomeada, portanto, de pesquisa in progress, visto que nossa dissertação somente será defendida no primeiro semestre de 2009, como está previsto. Logo, as conclusões a que chegamos não podem -- e não devem -- ser consideradas definitivas.  
      Embora constituindo um estudo em andamento, a pesquisa revelou, entre outros achados, a espantosa polissemia e amplitude de sentidos do vocábulo espaço. “Para o confirmar, basta verificar, num bom dicionário, as suas múltiplas acepções nos âmbitos mais diversificados: da filosofia à física, da geometria à literatura” (GORDO, António, 1995, p. 19). Nossa análise, sendo intrínseca à obra, não está centrada nesse aspecto: enfoca tão-somente um dos componentes estruturais da narrativa literária que, aliando-se à ação, personagem, narrador, tempo e enredo, engendram o universo da ficção romanesca.
        Pretendemos, a partir do estudo do livro-corpus Ponte do Galo, erigir uma ponte que ligue a problemática da escassez de trabalhos acadêmicos sobre a categoria do espaço na narrativa de ficção à outra problemática, que é a leitura rarefeita das obras do grande romancista da Amazônia, Dalcídio Jurandir. Com isso, contamos poder contribuir para a aproximação/interligação dessas duas complexas margens e, outrossim, contribuir, modestamente que seja, para tentar apontar outra (sobretudo para o autor deste trabalho), onde uma senda, um caminho mais auspicioso, permita palmilhar tal terreno com menos insegurança.

1     Espaço e ‘espaço ficcional’
   
      Segundo Gordo (1995, p. 19) o “[...] universo espacial da narrativa só subsiste e se entende como réplica artística do outro, o real ou cósmico, em cuja experiência o homem funda o conceito de espaço.” Na verdade, nos novos mundos fictícios inventados pela literatura, o espaço não funciona senão como instância indireta em que a apreensão do real se manifesta, sendo os objetos espaciais finitos e indeterminados, só possivelmente atingindo o status inverso disso no espaço real. Ao leitor, segundo Roman Ingarden (1973, p. 245), cabe o preenchimento imaginativo dessas lacunas. A Escola de Semiótica de Tartu contribui sobremaneira para essa discussão enriquecedora, cuja necessidade premente de clarificação nos recomenda operar com o conceito de sistemas modelizantes primários e secundários, pensamento basilar dentro dos estudos desenvolvidos por Iuri Lotman [2] no âmbito da disciplina Semiótica da Cultura [3]. O sistema modelizante primário é a linguagem natural, isto é, a verbal, estruturadora do mundo na mente do ser humano. O sistema modelizante secundário é a cultura, isto é, todos os sistemas semióticos existentes: mitos, religião, artes (inclusive a literatura), etc.
            Aquilo que Lotman nomeia de espaço artístico é o produto do processo de modelização de uma modelização, ou seja, a versão que resulta da estruturação de um mundo outro, secundário (a arte, em nosso caso, a literatura), a partir de um primeiro (a língua natural, verbal), por si mesma considerada por Tartu um “sistema modelizante do mundo” (SILVA, 1997, p. 91). A idéia de espaço fictício  que aqui se quer literário e narrativo  que ‘recria’ na sua finitude o infinito exterior à obra na qual se acha incrustado, fica evidente nas palavras de Lotman: “O sistema modelizante secundário de tipo artístico constrói o seu sistema de referentes, que não é uma cópia, mas um modelo do mundo dos referentes na significação lingüística geral” (1978, p. 95 apud Montagem, p. 9). Nessa perspectiva, a literatura é, pois, sistema modelizante secundário. Logo, o romance, uma forma narrativa literária, é uma manifestação desse sistema. E, sendo o espaço um componente primordial de organização dessa modalidade narrativa, resta-nos concluir que o espaço é, também, produto de modelização secundária (REIS & LOPES, 1987, p. 131).
           
1.1   O espaço na narrativa

           “Espaço é, por definição, o lugar onde se passa a ação numa narrativa.”  “[...] O termo espaço, de um modo geral, só dá conta do lugar físico onde ocorrem os fatos da história; para designar um ‘lugar’ psicológico, social, econômico etc., empregamos o termo ambiente” (GANCHO, 2002, p. 23). Todavia, não necessariamente o espaço ficcional na literatura deve ser somente narrativo. Em muitos poemas descritivos, a espacialidade é evidenciada, presente na representação-clichê do locus amoenus, por exemplo, em formas poemáticas como o idílio e a écloga, tipicamente convencionais e peculiares ao Arcadismo brasileiro. Porém, como nosso propósito é analisar tal categoria romanesca em Ponte do Galo, restringir-nos-emos ao espaço narrativo, a respeito do qual Antônio Dimas (1994, p. 21) afirma que o romancista e também pesquisador Osman Lins (1976, p 77-94) estabeleceu uma distinção essencial entre espaço e ambientação. Nos comentários do primeiro, o espaço “puro e simples”, referencial e denotado, que se reporta a lugares interiores e exteriores, só ganha status de ambientação se não for patente e explícito, se for, pelo contrário, implícito e subjacente em seus dados da realidade, conotativos por excelência, portadores de complexidade e destinados a leitura mais perspicaz (op. cit. p 13).
Pretendemos enfocar os espaços gerais e amplos e os particulares e restritos, a que se refere Antonio Candido, no artigo Espaço e degradação, comentado por Dimas (op. citat., p. 13). Interessam-nos, também, os espaços físicos, sociais e psicológicos a que se referem Gordo e Carlos Reis e Ana Cristina Lopes [4], assim como suas relações funcionais com os personagens, discutidas por Cândida Vilares Gancho (2002, p. 24-25), além de tornar evidentes temas e figuras espaciais representados por pares opostos dialéticos com “marcado caráter espacial” (antíteses e oxímoros), como alto/baixo, próximo/distante, cidade/interior, centro/periferia, por exemplo [5].
Dos espaços  físicos, destacamos os macroespaços, que são dois: Cachoeira, na Ilha de Marajó (no estado do Pará), e Belém, a capital do mesmo estado . No âmbito desses dois espaços amplos, destacam-se os microespaços. Por exemplo, em Cachoeira o espaço do interior , o chalé da família de Alfredo (personagem central do romance), onde moram os pais do ginasiano, dona Amélia e ‘seu’ Alberto, onde com eles o filho passa as férias. E na cidade no locus urbano , no bairro do Telégrafo, a outra casa onde o estudante reside (de favor) durante o período das aulas, com a costureira dona Dudu, tia de Ana e Nini. Luciana, a que “caíra na vida”, a que vive na rua, a desabençoada (para quem o pai, o “Cel.” Braulino Boaventura, construíra a casa), lá também deveria morar. À procura das três, Alfredo, como um flâneur, perambula pela cidade, muitas vezes com a parteira, dona Santa, avó das duas primeiras e tia da última. Tanto em Cachoeira como em Belém, é ele um notívago. Contudo, é no subúrbio da cidade que sua deriva sem meta nem fim, por excelência, se evidenciará, como alerta Ernani Chaves [6].
Em decorrência de nossa pesquisa estar ainda em andamento, enfocaremos aqui apenas um aspecto, que consideramos fulcral: a transfusão de espaços. O narrador  manipulador da e, ao mesmo tempo, manipulado pela mente de Alfredo  transfunde os espaços. Entre Cachoeira e Belém, não mais o rio e a baía separam (e unem, paradoxalmente) os espaços, mas a memória de Alfredo, como ponte, traz e leva os fatos, as pessoas, os lugares, numa viagem que é um jogo, também pondo o leitor em xeque: “Onde estou?” A passagem abaixo, do romance Ponte do Galo em que fica evidente a onisciência do narrador heterodiegético, ao revelar a fusão topográfico-memorialística de Alfredo , é exemplar:

Seguiu sob a chuva, não de Belém, chuvas de Cachoeira, as de outrora sobre o chalé, sobre a casa de seu Cristóvão, sobre Eutanázio andando. Também Rodolfo, com a chuva no telhado, redistribui pelas caixas de tipos o “Cachoeira Nova”, por falta de papel e logo vai compondo outro número e assim por diante até que chegue,  ou nunca chegue a prometida bobina de papel, tão prometida pelo Dr. Lustosa (JURANDIR, 1971, p. 139).

Tudo porque o personagem se sente um dépaysé, tal como diria um Gabriel Marcel (apud GORDO, 1995, 21): “Um indivíduo não é distinto de seu lugar; ele é seu lugar mesmo”. Então, o ginasiano não se ‘ambienta’ na sua Belém, onde sonhava ir para estudar, nem tampouco consegue estar em Cachoeira sem ‘viajar’ em pensamento até a Cidade das Mangueiras. Neste ponto, é bom que se perceba que o filho de dona Amélia não só transfunde espaços, mas tempos também: “Este tempe, em Cachoeira, é apanha de tucumã e gogó“ (op. cit., p. 138). Só que o ”este tempe, ao qual se refere o narrador, está registrado na mente de Alfredo como uma estação passada as tais “chuvas de Cachoeira, as de outrora sobre o chalé” , como reminiscências, assim como as recorrentes lembranças de sua infância, de Mariinha (sua irmãzinha, já morta), do tio Sebastião e de outros personagens, fundem tempo e espaço, numa perfeita representação do cronotopo.
Daí que se deduza a impossibilidade de um estudo do componente espacial de forma isolada do componente temporal, já que o ser ocupa lugar no espaço e é, ele mesmo, espaço. Mas espaço marcado pelo tempo, ser ativo-passivo de ações, de eventos, de mudanças ou transformações que se realizam não em um espaço, mas em um tempo-espaço ou espaço-tempo, como o afirmam os astrofísicos e filósofos. O mesmo, logicamente, estende-se ao campo dos Estudos Literários, com a denominação de cronotopo, estabelecida por Bakhtin [7], que a ótica do estudioso Ítalo Meneghetti Filho [8] vai denominar com o neologismo ‘tempoespacialidade’. Então, disso tudo podemos abstrair a idéia de que só um recorte analítico de natureza didático-metodológica pode permitir uma discussão em separado de um dos elementos desse par. É o que ocorre quando se busca classificar o espaço em topográfico, cronotópico (ambos no nível da diegese) e textual (no nível do discurso). É nessa perspectiva que operaremos com esses componentes narrativos na análise de Ponte do Galo.
Dentro do âmbito dos macroespaços, na narrativa estudada avultam os microespaços, todos eles impregnados de sentidos de importância fundamental para o funcionamento do universo ficcional de Dalcídio Jurandir, pois estão, todos eles, sobrecarregados da peculiar semântica de decadência atribuída por ele à região amazônica das primeiras décadas do século XX [9], com o fim do Ciclo da Borracha. Porém, deter-se no estudo dos espaços físicos do romance só faz sentido para nós se deles emerge o signo do social e do existencial. Por isso, por último, examinaremos os espaços sociais de poder (agrário, econômico, político, de gênero), os espaços simbólicos das casas (o chalé da família, em Cachoeira, e nele a “saleta”, a “varanda” do prelo, a cozinha e a despensa; a casa do Telégrafo, em Belém, entre outros espaços), os ‘lugares de passagem’, as ruas, a ponte em Cachoeira, a Ponte do Galo, etc. Interessa-nos, essencialmente, o que emana desses espaços em termos de sentimentos humanos e existenciais e como neles se vivenciam as relações sociais.

1.2   A ambientação segundo Osman Lins   

      Osman Lins, no livro Espaço romanesco de Lima Barreto, de 1978, resultado de sua tese de doutoramento, sistematiza uma sólida tipologia para a ambientação, que nos parece ter funcionalidade ainda válida atualmente, em uma ótica narratológica. Este autor afirma que ambientação consiste em um conjunto de procedimentos empregados no texto narrativo com o fim de evocar a idéia de um ambiente. Diz ainda que, para aferir o espaço, o leitor leva em consideração a experiência que tem de mundo. Entretanto, com respeito à ambientação,  “[...] onde aparecem os recursos expressivos do autor, impõe-se um certo conhecimento da arte narrativa” (1978, p.77). E, segundo esse mesmo autor (apud DIMAS, p. 19-26), a ambientação pode ser franca, reflexa e dissimulada ou oblíqua, de cujos conceitos e exemplos passamos a discorrer agora: por franca entende-se

aquela em que o narrador introduz, pura e simplesmente, a descrição física do ambiente, estabelecendo um hiato no desenrolar da ação. Neste caso, a ambientação não contribui para a compreensão da trama, ou do estado de espírito da personagem. Funciona, tão-somente, como uma moldura, um pano de fundo dos acontecimentos. O leitor poderia pular este trecho, e em nada seria prejudicada a compreensão do enredo” (Atlas das representações literárias de regiões brasileiras, 2006, p. 23).

      Um exemplo característico encontramos nas primeiras linhas de Três casas e um rio:

Situada num teso entre os campos e o rio, a vila de Cachoeira, na ilha de Marajó, vivia de primitiva criação de gado e da pesca, alguma roça, roçadinhos aqui e ali, porcos magros no manival miúdo e cobras no oco dos paus sabrecados. O rio, estreito e raso no verão, transbordando nas grandes chuvas, levava canoas cheias de peixe no gelo e barcos de gado que as lanchas rebocavam até a foz ou em plena baía marajoara. Na parte mais baixa da vila, uma rua beirando o rio, morava num chalé de quatrto janelas o major da Guarda Nacional, Alberto Coimbra, secretário da Intendência Municipal de Cachoeira, adjunto do promotor público da Comarca e conselheiro de ensino (JURANDIR, 1994, p 5).

            Em Ponte do Galo, a rigor, tal procedimento de ambientação não é empregado pelo autor; por causa disso, o exemplo foi extraído de seu terceiro romance. Pelo que se pode deduzir, constitui esse fato uma evolução dentro da obra do autor marajoara, que vai aperfeiçoando sua técnica narrativa de romance a romance. Quanto à ambientação reflexa, certamente não se confunde com o ato praticamente estanque da cisão levado a efeito pela ambientação franca, ao contrário disso: “Ela é percebida pela personagem, o que evita o hiato na trama. De qualquer forma, o entorno está sendo enunciado e não tem, necessariamente, uma relação intrínseca com o desenrolar dos acontecimentos” (Id., ibid., p. 23). Como passagem exemplar de Ponte do Galo, transcrevemos esta:

Fronteou a casa da avó, espiou, espiou, foi, espiou pela fresta da porta e o escuro lá de dentro lhe dizia: nem as netas nem a avó. Quis bater. Mexeu na porta, só encostada, hesitou, estalava os dedos, esperou sob o chuvisco.O catavento gemia moroso. A velha, sabia aonde? Pelos caminhos do subúrbio fantasmal e gotejante, entre os fedores de vacaria, feira de peixe e bucho e a ruidosa insônia das crianças. Com o seu hálito, ou com a sua mão que sempre faz nascer e a paixão pelas netas, purificava o subúrbio e este a parir sempre, nas tocas e barracas, como nos estábulos (JURANDIR, 1971, p 136).

            É por intermédio de Alfredo que o leitor absorve a sensação do lugar, vivido e percebido por esse adolescente marajoara, do subúrbio de Belém, de uma periferia fétida (FURTADO, Marli. In: Asas da palavra, 2004, p. 105). E, por fim, chegamos à ambientação oblíqua ou dissimulada: é uma construção narrativa que consiste em destacar como característica primordial a ausência de

[...] um corte no desenrolar dos acontecimentos. A ambientação dissimulada exige a personagem ativa: o que a identifica é um enlace entre o espaço e a ação. [...] Assim é: atos da personagem, nesse tipo de ambientação, vão fazendo surgir o que a cerca, como se o espaço nascesse de seus próprios gestos. (LINS, 1976, p. 83-84)” (Atlas das representações literárias de regiões brasileiras / IBGE, Coordenação de Geografia. Rio de Janeiro, 2006, p. 23).

Um exemplo significativo disso é a passagem abaixo:

Da José Pio olhou a janela. Uma janela suspensa na tarde, na última luz, na última esperança. Olhava. Não está mais. Não estava. Alvos, solenes, num cortejo, passavam os zebus da Cocheira Jabuti. Corriam descalças pela Municipalidade as netas da velha parteira. Olhou, de novo, para a janela. Adeus, mulher da tarde. Mas não se arrependia do gesto, fosse a ela ou a outra, era a chave entregue, e à noite pôs-se a esperar pela visita. Tocava o0 sino de São Raimundo, apitou a Cremação, o Utinga apitou, e aqui embaixo do alicerce os soterrados bailes da gente Juruema (id., ibid, p. 160).
            Pode-se afirmar que é patente o dinamismo narrativo alcançado partir do emprego desse tipo de ambientação. É possível sugerir uma aparente simultaneidade entre o tempo da diegese e do discurso, pois aqui desaparece a cisão ‘despudorada’, que se constata principalmente na ambientação franca, entre o narrar e o descrever. A ação do personagem engendra um espaço que emana de seu percurso por meio de suas ações. Logo, personagem e ação, mediatizadas por um narrador heterodiegético e onisciente, fornecem ao leitor os índices necessários à ancoragem narrativa cronotópica.
         Por último, Lins levanta ainda a possibilidade de, por outros prismas, podermos classificar a ambientação como ordenada e desordenada (1976, p. 86), assim como o que ele nomeia de ambientação excaustiva e alusiva (1976, p. 90). A essa classificação Antônio Dimas não faz nenhum tipo de referência em seu livro Espaço e romance. Ao contrário, imprime grande destaque apenas e tão-somente à distinção proposta por Lins entre espaço e ambientação (p. 19-20) e à classificação da ambientação em três tipos, já apontados neste estudo (p. 20). Por ordenada entendemos a ambientação em que ordem e exatidão dos componentes do espaço são metodologicamente exigidas, enquanto a desordenada é a que, faz uma espécie de simples catalogação dos componentes, “[...] sem muita ordem” (id., ibid., p. 86-87), como se, em aparência, elidisse qualquer forma de método organizacional. Exaustiva é aquela minuciosa, detalhista, que esquadrinha o ambiente, pontilhando-o de elementos em superpopulação. A alusiva, ao contrário, entendemos ser muito mais sugestiva e parcimoniosa. É importante salientar que ao autor essas ferramentas estão disponíveis para emprego de acordo com suas escolhas, conforme organicidade ou utilidade funcional aos efeitos de sentido desejáveis.
2 Ponte do Galo no contexto do Extremo-Norte

           Acerca de Ponte do Galo, é necessário salientar que raríssimo material para pesquisa pudemos encontrar sobre este que é o sétimo romance do Ciclo do Extermo-Norte. Na verdade, apenas uma minúscula resenha de jornal intitulada “Uma ponte simples” [10], sem grande relevância em suas parcas e errôneas informações, além uma conferência proferida por Ernani Chaves [11], denominada de Ponte do Galo: a cidade como labirinto do desejo, II Ciclo de Conferências: Dalcídio Jurandir (Belém – UNAMA), 25 a 29 de junho de 2001. Vale dizer, também, que nada fácil foi encontrar a obra a ser estudada, uma vez que nunca foi reeditada, fato que ocorreu igualmente com os cinco últimos romances do ciclo: Primeira manhã (1968), Ponte do Galo (1971), Chão dos lobos (1976), Os habitantes (1976) e Ribanceira (1978). Os cinco primeiros foram editados, no mínimo, duas vezes: Chove nos campos de Cachoeira (1941, 1976, 1991, 1996, 1988), Marajó (1947, 1978, 1992), Três casas e um rio (1979, 1994), Belém do Grão Pará (1960, ed. Portuguesa de 197_, 2004) e Passagem dos Inocentes (1963, 1984). Um enorme desequilíbrio, portanto, na publicação da obra de Dalcídio Jurandir. Ficamos a nos perguntar, então: “Por que esse desprestígio com os últimos romances do Ciclo do Extremo-Norte? Será por causa do fato de serem os menos estudados? Ou será porque são mais recentes, por isso menos conhecidos? O tempo os tirará do ostracismo dentro da obra do romancista?”
            Na verdade, o autor marajoara, ao receber da Academia Brasileira de Letras em 1972 o prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da obra, quase já havia concluído seu ciclo romanesco, pois consta que houvesse já finalizado todos os romances até 1971 (ASAS DA PALAVRA, 1996, p. 9). Teria concluído Os habitantes em 1967, antes mesmo de publicar Primeira manhã, que é de 1968, ano de conclusão também de Chão dos Lobos. Em 1970, termina Ribanceira, um ano antes, portanto, da publicação de Ponte do Galo, de 1971. Contudo, seu desejo era incluir no ciclo no mínimo mais um romance, do qual escrevera pelo menos um capítulo:

Entreguei o Ribanceira ao editor, não é o romance que esperava fazer e não posso saber como e quando posso esboçar o último volume. A doença foi mais apressada do que eu. Vamos ver.
[...] pena que não possa escrever o último volume de Alfredo. Atrasei-me. As dificuldades são grandes. Talvez eu use um gravador e vá capengando, levantando a estrutura do livro. A mão não ajuda.
 [...] Escrevi sete páginas do volume que viria encerrar a série dos romances e senti que o cérebro  memória, observação, senso da narrativa tudo vai bem. Não tenho dores de cabeça.
[...] Perdoa te escrever assim. Fora dos ataques vejo-me boiando satisfeito por mais um capítulo vencido (ASAS DA PALAVRA, 1996, p. 39) [12].

Como sétimo romance do ciclo, Ponte do Galo apresenta-nos agora um Alfredo  personagem central, de nove entre os dez do Ciclo  como um ginasiano: “[...] mamãe passei, pregue a segunda divisa, segundo ano” [...] (JURANDIR, 1971, p.5), que chega “[...] De volta ao chalé, pelas férias [...] (id. ibid., p 3). Não mais um menino, já um adolescente, ele se encontra em Cachoeira revendo personagens familiares (o pai, Major Alberto, e a mãe, D. Amélia), e outros da vizinhança (Salu, Dadá e Didico, Sabá Manjerona, etc.), relembrando momentos do passado no chalé, momentos com o irmão Eutanázio e a irmã caçula, Mariinha, ambos já mortos. Pode se dizer que esses momentos de Alfredo em Cachoeira transcorrem muito mais na onisciência de um narrador, que segue a esteira de seu personagem central. Tudo isso se passa na primeira parte do romance, intitulada simplesmente pelo numeral romano I (que vai da pág. 3 à 120).
É com este personagem, também, que o narrador, como uma câmera de cinema, acompanha, bem de perto, seu retorno para Belém, capital do Pará, cidade antes de encanto (em Chove nos campos de Cachoeira) [13] e, agora, de desencanto. E já estamos na segunda parte, com o título econômico de II (da pág. 121 à 175: o fim do livro).  Belém, não mais para Alfredo uma cidade de sonho, mas cidade de periferia, noturna, feia, cidade pós-lemismo [14], decadente e labiríntica para um Teseu que não encontra sua Ariadne, muito menos o fio a lhe guiar na sua busca por Luciana (CHAVES, Ernani. In: LEITE, 2006, p.40). Dona Santa, dona Dudu, Ana, Nini e a ausente-sempre-presente Luciana vivem e emanam vida na voz e na mente do narrador e de Alfredo, possibilitadores, os dois, de nosso passeio  como leitores que somos  por uma ponte interligadora entre Cachoeira e Belém, entre o Alfredo-menino e o Alfredo-adolescente, como nesta passagem de Ponte do Galo:

Deitou-se no soalho a olhar pelo buraquinho onde, quando guri, ficava com a sua linha conversando com os peixinhos, lá de baixo, tempo de cheia, tempo de Mariinha e Andreza, tempo em que o irmão, rompendo o lamaçal, o seu e o dos caminhos, ia ver Irene. Olhou, e lá estava, embaixo, no seco, o menino pescador. Rapaz e menino se miravam. Dizia o menino: E agora? Nem te ligo nem te conheço. Me traíste em Santana, enterraste o faz de conta, ganhaste a cidade. E aqui estou para sempre, fiel a este chão, aos carocinhos de tucumã espalhdos no tanque e no meio dos peixinhos mal as águas chegam. E a tua pesca aí em cima? Que conversação é a tua, aí com o mundo? (JURANDIR, 1971, p. 92).

Alfredo, dentro do espaço íntimo da casa (chalé dos pais), está no microespaço que mais lhe é louvável: a saleta, o lugar da tipografia, dos livros, onde na rede atada seu irmão Eutanázio (morto agora) costumava ficar, com o pensamento voltado para sua amada Irene, que tanto o menosprezava. Os elementos espaciais aqui avultam em quantidade e em valor sígnico. O assoalho é o elemento material mediador de dois espaços bipolarizados: o “lá de baixo” e o “aí em cima”. Relação de verticalidade, portanto. Porém, essas antíteses espaciais passam a conotar relações que, fora deste contexto particular, podem soar inimagináveis. Por exemplo, o assoalho (de madeira) é o meio que deveria separar, mas paradoxalmente  à maneira de um oxímoro , por causa do “buraquinho”, torna-se câmera, olho mágico e (por que não?) a ponte que interliga o do alto, o adolescente em férias, ao do baixo, o menino que brincava com Mariinha e Andreza e com seu carocinho mágico de tucumã. O espaço acaba por se temporalizar, tornando-se como uma revelação do ser e do tempo, um espaço cronotópico onde/quando o lá de baixo representa o passado: a infância e suas isotopias: inocência, fantasia e encanto com a cidade e seu futuro nos estudos que na Vila não poderia ter. O aí em cima representa a não-aceitação do menino em relação ao adolescente, lembrando um Narciso pelo qual a imagem do reflexo sente rejeição, porque recusa a ‘traição’, já que em Santana Alfredo renuncia à inocência, tendo com Dolorosa sua iniciação sexual, perdendo aos poucos também seu encanto com a cidade e os estudos. Desse confronto entre o antes e o depois, quem ganha o jogo? Possivelmente, ninguém mais que o leitor.
No entanto, por maior riqueza que possam apresentar, os espaços e a ambientação não devem aflorar em um texto narrativo de forma gratuita, visto que participam de um sistema cuja relação entre os componentes deve e tem de ser intrínseca, sob o risco de comprometer o todo, por uso mínimo e por imprecisão, ou por exagero e detalhismo inconseqüente, procedimentos ambos que empobrecem a instauração do universo ficcional. É por isso que, na abordagem do problema da espacialidade, relevantíssima é a discussão acerca do uso da descrição como recurso de ancoragem narrativa. Até que ponto o narrador a introduz de modo útil ou inútil no preenchimento do espaço romanesco? Serve somente para caracterizar, decorar uma situação? Ou pode ascender à relevância de uma dimensão simbólica no universo ficcional? O que pode ser considerado mais intrínseco e essencial à construção da narrativa?
Neste ponto, a operacionalidade dos estudos de Tomachevski [15] (interessam-nos mais particularmente os motivos associados e livres e a motivação caracterizadora) e Bournneuf e Ouellet [16](funcionalidade dos elementos espaciais) subsidiarão nossa pesquisa a partir daqui, muito embora estejamos limitados e restritos pelo espaço exíguo deste artigo e pela progressão da pesquisa, que nos conduzirá mais lá adiante, já na monografia dissertativa, pelos espaços dacidianos, onde o eu existencial e social dos personagens vivenciam sua identidade cultural em um locus amazônida, porém este sem a moldura dos clichês do exótico e do pitoresco, tão comuns em obras de alcance literário duvidoso. E, assim, a posteriori, nossa investigação emergirá mais enriquecida e aprofundada em novo texto de artigo.

Conclusão
É evidente, portanto, a classificação de Ponte do Galo como romance de espaço, muito embora saibamos dos problemas advindos de uma classificação estanque, não permitindo outras ponderações, como a possibilidade de o considerarmos igualmente como romance de personagem, numa tipologia engendrada por Wolfgang Kayser e exposta por Vítor Manuel de Aguiar e Silva (1997, p. 685). Além disso, em vista dos procedimentos narrativos empregados em Ponte do Galo, postulamos que este romance é corpus mais que apropriado ao estudo proposto, em decorrência da forte presença do componente espacial na criação do ambiente como locus de ação dos personagens dalcidianos.
Muito ainda nos falta para concluir a pesquisa. No entanto, nem tudo são incertezas. Sabemos, por exemplo, que pode parecer ser (mas não o é) coincidência que aqui, neste artigo, queiramos erigir uma ponte entre a ainda rarefeita leitura dos livros de Dalcídio Jurandir e a pouca relevância dada a um componente narrativo sobremaneira valorizado em sua obra Ciclo do Extremo-Norte. Ponte, portanto, a ligar entre si essas duas margens problemáticas e, concomitantemente, proporcionar uma transposição, uma superação possível, um salto qualitativo numa direção mais auspiciosa. Assim, Ponte do Galo nos ajudará na travessia desses espaços ficcionais dalcidianos, que enfocam um locus, por excelência, amazônida (sem o clichê tão desgastante e desgastado do elemento pitoresco), proporcionando um estudo analítico que contribua para minimizar (ao menos um pouco) a problemática dupla do silenciamento da palavra do autor ponta-pedrense/cachoeirense [17] e, ao mesmo tempo, aprofunde e pormenorize o estudo tão menosprezado da espacialidade na ficção narrativa.

Referências Bibliográficas
[1] ASAS DA PALAVRA Revista de graduação em Letras. Belém: UNAMA, v. 3 nº 4, 1996.
[2] ______  _____. Belém: UNAMA, v. 8 nº 17, 2004.
[3] Atlas das representações literárias de regiões brasileiras / IBGE, Coordenação de Geografia. Rio de Janeiro: IBGE, 2006-.
[4] AYBAR-RAMÍREZ, María-Dolores. A espacialidade do texto artístico: Iuri Mijailovich Lotman na fronteira textual. In: MONTAGEM – Revista do Centro Universitário Moura Lacerda. Ribeirão Preto: Centro Universitário Moura Lacerda. Ano 5, nº 5, 2001.
[5] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
[6] BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4ª ed. São Paulo: Ática, 2002.
[7] BOURNNEUF, Roland e OUELLET, Réal. O espaço. In: _____________. O universo do romance. Trad. José Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Almedina, 1976, p. 131-168.
[8] CHAVES, Ernani. Ponte do Galo: a cidade como labirinto do desejo. In: LEITE, Marcus Vinnicius C. (Org.). Leituras dalcidianas. Belém: Unama, 2006, p. 37-46.
[9] DIMAS, Antônio. Espaço e romance. São Paulo: Ed. Ática, 1994.
FILHO, Ozíris Borges. As artimanhas do ser e do espaço em “Aparição”. In: MONTAGEM – Revista do Centro Universitário Moura Lacerda. Ribeirão Preto: Centro Universitário Moura Lacerda. Ano 5, nº. 5, 2001.
[10] FURTADO, Marli Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. Campinas: UNICAMP/Instituto de Estudos da Linguagem, 2002 (Tese de doutorado).
[11] GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2002.
[12] GORDO, António da Silva. A escrita e o espaço no romance de Vergílio Ferreira. Porto: Porto Editora, 1995.
[13] INGARDEN, Roman. O estrato das objectividades apresentadas. In:____. A obra de arte literária. 3. ed. Licboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1973. p.239-255.
[14] JURANDIR, Dalcídio. Chove nos campos de Cachoeira. Belém: Cejup/Secult, 1997.
[15] ______. Ponte do Galo. São Paulo: Martins [RJ] INL, 1971.
[16] ______. Três casas e um rio. 3. ed. Belém: Cejup, 1994.
[17] LEITE, Marcus Vinnicius C. (Org.). Leituras dalcidianas. Belém: Unama, 2006.
[18] LOTMAN, Iuri. Estrutura do texto artístico. Coimbra: Editorial Estampa, 1978.
[19] LINS, Osman. Espaço romanesco de Lima Barreto. São Paulo: Ed. Ática, 1978.
[20] MONTAGEM – Revista do Centro Universitário Moura Lacerda. Ribeirão Preto: Centro Universitário Moura Lacerda. Ano 5, nº 5, 2001.
[21] ORNELA, Paulo Sérgio. Tempo e espaço em Belém do Grão-Pará, de Dalcídio Jurandir. Belém: UFPA, 2003.
[22] REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 1987
[23] SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. 8 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1997.
[24] TOMACHEVSKI, B. Temática. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (org.). Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1971. p 169-204.







[1] Alcir RODRIGUES, Doutorando.
(Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Letras e Comunicação/ UFPA/Belém)
[2] “Iuri ou Yuri Mijailovich Lotman (1922-1993).” In: Revista Montagem, 2001, p. 7.
[3] Disciplina do Programa de Pós-Graduação da PUC, de São Paulo. Disponível em <http://www.pucsp.br/pos/cos/cultura/>. Acesso: 04 jun. 2008.

[4] REIS, C. & LOPES, Ana Cristina M. (1987, p. 130). Cf. também em Gordo (1995, p. 27 e 52-57).
[5] Cf. em AYBAR-RAMÍREZ, María-Dolores. A espacialidade do texto artístico: Iuri Mijailovich Lotman na fronteira textual. In: Montagem, p 11.
[6] Cf. em Ponte do Galo: a cidade como labirinto do desejo. In: LEITE, Marcus Vinnicius C., 2006, p. 40.
[7] Cf. BAKHTINE, M. Esthétique et théorie du roman. Paris: Galimard, 1978, p. 237. Apud GORDO (1995, p. 41 e 49).
[8] Do artigo “Por uma epistemologia do espaço ficcional em literatura  a Geografia do afeto”. In: Revista Garrafa. Rio de Janeiro: UFRJ, nº. 7 set. dez., 2005. Disponível em: . Acesso em: 25 mar 2005.
[9] Cf. a relevante contribuição de FURTADO, Marlí Tereza, em sua tese Espaço derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir, constante nas referências bibliográficas.
[10] Cf. in: NUNES, Benedito; PEREIRA, Ruy & PEREIRA, Soraia Redon (orgs.), 2006, p. 137.
[11] Idem, p. 261. Esta conferência foi publicada no livro Leituras Dalcidianas (LEITE, Marcus Vinnicius C. (Org.), 2006, p. 37-46, constante em nossas referências.

[12] Vide, na revista citada, ASSIS, Rosa: Uma leitura nas cartas de Dalcídio Jurandir. São trechos de três cartas escritas pelo romancista para Maria de Belém Menezes, filha de Bruno de Menezes, em 1978 (em 03/02, em 28/05 e em 11/09).
[13] Cf. em JURANDIR, 1997, p. 86.
[14] Antônio José de Lemos (1843-1913), que foi intendente municipal de Belém, de 1897 a 1911, modernizou esta capital, embelezando-a aos moldes franceses, durante o período áureo do Ciclo da Borracha, em plena Belle-Époque paraense.
[15] Cf. em Temática, do livro Teoria da literatura, 1971. Vide referências.
[16] Cf. em O universo do romance. Coimbra: Almedina, 1976, p. 131-168. Vide referências.

[17] Ponta de Pedras e Cachoeira do Arari são municípios situados no arquipélago de Marajó.