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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Cantos da Ilha

(Aqui segue uma coletânea -- incompleta, diga-se-- do que pretendo intitular de Cantos da Ilha)


DEDICATÓRIA

 Para Helen, com amor.
Para toda a família, dela e minha.

Para todos os/as amigos/as.



AGRADECIMENTOS

                  Agradeço a meus falecidos pais, Alfredo e Joana.
                  Agradeço a minha irmã  e meu cunhado, meus irmãos e cunhadas e sobrinhos/as.
        Agradeço a minha esposa Helen, filhos, sogra, cunhadas, sobrinhos/as e concunhados.
                Agradeço às instituições em que trabalho: Escola Municipal Remígio Fernandez e Escola Estadual Honorato Filgueiras.
                  Agradeço a todos os/as colegas de trabalho dessas duas instituições.
              Agradeço do fundo do coração àqueles/as que posso considerar como amigos/as.
                 Agradeço a alunos/as e ex-alunos/as, vizinhos/as e conhecidos “de vista”.  
                Especial agradecimento às agremiações ligadas à arte, esporte, cultura e lazer: Barraca Empata’s Bar, Bloco Carnavalesco Tá Feio! E Mastro de São Car(v)alho.


MAR-AHU

Não
é a ilha

Não 
é a praia

E o mar
(de nos fazermos ao)
é só um nome
sem

a outra margem

(Max Martins, poema transcrito do livro Caminho de Marahu)



ÍNDICE

 PREFÁCIO: ESTES CANTOS DA ILHA ........................................................ 00


PELO CORAÇÃO DA ILHA...................................................................... 00
Paisagem de palavras
Mari-Mari
Fiat Lux!
Caruaru é meu destino
Sinestesias
O mestre e a obra
Postal de sentidos

PELA BAÍA DE SANTO ANTÔNIO E PELA VILA.............................................. 00


E/ro(s)mantismo de beira-rio-mar
A fábrica
Areão em maio
Uma ponte entre o hoje e o amanhã
Esta noite
Nihil
O cine
Página de areia


Pedaladas na Ilha

PELA BAÍA DO MARAJÓ......................................................................... 00
Naquele tempo... (ou Bispo agora-ontem)
Sombra & luz
Onde...
Praia Grande
Dezembro a abril
Desenhando letras
Prainha
Hotel
Chegada
Farol
Na janela, mirando
Infância menina
Capelinha secular
Chapéu-Virado, 21 de janeiro de 1836
uma certa dialética das coisas mínimas
Um certo Mário... em uma certa praia
No porto Artur
Bela tarde na praia do Porto Artur
Ele
Morubiras -- o início do fim
Muriramba
Praia do Ariramba
A sucuri e São francisco
No Bar Molhado
O contato

PELA BAÍA-DO-SOL............................................................................. 00
O caminho no Maraú
Maraú
Instantâneos paradisíacos
O Paraíso é um acampamento em 91
Dezembro, dia 8 de Dezembro
Praia Grande (Baía-do-Sol)
Umas doses de nonsense

PELO FURO DAS MARI(I)NHAS (DE VOLTA AO CORAÇÃO DA ILHA)......... ............ 00
Janequara: olhares para aquém e além
Poetissignus
Como conseguir partir?...


ESTES CANTOS DA ILHA

            Cantos podem ser também recantos, paragens, plagas, até mesmo nichos ou lugares na geografia ou topografia da afetividade, inscritos no papel (ou estampados em quaisquer outros suportes) como para mapear tesouros quase irrecuperáveis que um sujeito poético busca escavar nos soterrados escombros da memória. Também podem ser, além disso, manifestações vocais, canções, entoações melódico-rítmicas, acompanhadas ou não, de arranjos instrumentais.
            Por outro lado, não podemos ignorar, entre tantos outros sentidos, talvez o mais evocado neste caso do livro Cantos da Ilha: o de cantos como composições escritas em versos, que no passado eram declamados − entre alguns povos da Antiguidade, entre eles os greco-latinos − acompanhados por instrumentos musicais, como a lira, por exemplo. Daí podermos nos referir a poesia lírica, poemas líricos. Esse sentido é encontradiço em títulos de livros de poesia, como Primeiros cantos (1846), de Gonçalves Dias (1823-1864). Então, em certo sentido, cantar pode ser entendido como fazer poesia, no sentido de compor os versos, produzi-los, ordená-los em estrofes, na construção do poema.
            Por isso, Cecília Meireles (1901-1964), inicia seu famoso poema “Motivo”, do livro Viagem (1939) com os versos “Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa”. Mais de quatro séculos atrás, ninguém menos que Luís Vaz de Camões (1524(?)-1580), em Os lusíadas (1572), pronuncia-se: “Cantando espalharei por toda a parte/ Se a tanto me ajudar o engenho e a arte” (nos versos 7.º e 8.º da 2.ª estrofe, do 1.º canto). E aqui já temos o sentido de canto como segmento ou divisão de longo poema. No caso da epopeia camoniana, o imenso poema está dividido em 10 cantos, cada um com aproximadamente 110 estrofes de oito versos.
            Em todo caso, não obstante a polissemia da palavra, cantos sempre nos conduzirão à lembrança dos encantos que a vida pode proporcionar aos seres humanos em geral, ou somente a um ser humano, em especial, ilhado, por isso parte mergulhado e parte ancorado em um mar, revolto ou calmo, de vocábulos encantadores, como já o disse Cassiano Ricardo de forma bem melhor e, na verdade, maravilhosamente, no poema “Poética”: “Que é Poesia? / uma ilha / cercada / de palavras / por todos / os lados”. Mas é bem provável que o sentir de um pode ser representativo do sentir de um grupo ou de muitas pessoas, porque sendo humano, faz parte de todo um gênero: sente, pensa, trabalha, inter-relaciona-se, ama, sofre, decepciona-se, cai e levanta, tem saudade, medo, dor; ri, gargalha, fica feliz, discute com amigos, fica de mal com a família, casa, divorcia-se; crê, descrê, enfim, age como um ser humano. Principalmente, vive como um ser humano. Ser um de sua espécie é ser um pouco de todos.
            E este eu, a quem se dá vez e voz em Cantos da Ilha, passeia por um espaço-tempo que pode trazer ao leitor algum alento, ao rebuscar pelo acontecido e quase esquecido, na tentativa de depositar na palma da mão do leitor algumas humildes páginas de outrora-agora, desentranhando um intangível modo de ser-estar de um lugar-ilha chamado Mosqueiro, que, embora ficcionalizado e ser um construto verbal, não pode ser lido como apenas palavras no papel: trata-se de um universo recriado, seja ele belo, alegre, nostálgico; seja repulsivo à leitura, seja medíocre em sua escritura e constituir uma coletânea eivada de clichês, também não deixa de ser um ensaio de recomposição da vida, mesmo que fictícia, mesmo que cheia de defeitos, mesmo que deveras fantasiosa (em parte ou quase que totalmente), concebendo então vivências em uma singular ilha no estuário do maior rio do mundo, onde vivem pessoas labutando em um cotidiano entre a urbanização e a floresta, entre os rios, os igarapés e o grande rio-mar, no ato de criar seus filhos muitas vezes a duras penas, testemunhando angustiadamente o patrimônio natural e cultural definhar à míngua, muito por causa inação do poder público. Cantos da Ilha propõe-se tematizar em torno disso tudo, poeticamente, metaforicamente.
            Embora ainda haja a beleza do patrimônio natural, sempre evocado por causa da singularidade das praias em forma de enseada, banhadas por um Mar Dulce com ondas; por causa dos ainda piscosos e sinuosos rios, por causa da frondosa mata ciliar de mangueiros, aningais e açaizeiros e por causa também da floresta de terra firme já bastante desmatada, ainda que com árvores frutíferas regionais de deliciosos sabores exóticos; enfim, por causa de toda uma diversidade da fauna e flora, que a urbanização e a ocupação desordenadíssimas vão extinguindo, assim como vão arrasando os caracteres típicos de cada antiga povoação ou vilarejo, agora já bastante descaracterizados; sim, embora ainda haja riqueza no patrimônio cultural, na materialidade da arquitetura dos casarões seculares da Belle Époque na Amazônia, por exemplo, como também na imaterialidade da culinária e do imaginário sociocultural local; trata-se de riquezas abandonadas ao acaso, ainda sobrevivendo não pelo que se faz a favor da preservação, mas porque as forças destrutivas empregadas (pelo tempo, pela natureza e pelo ser humano) não foram suficientemente avassaladoras para tal.

            Tudo poderia ser atribuído somente a uma questão de mero acaso. Assim, algo continua a existir, ou se perde parcial ou integralmente por simples casualidade. Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar, já diz o dito popular. É falta de ação, não acaso, mas, sim, descaso: nem Estado, nem iniciativa privada, nem sociedade civil organizada movem-se contra o atual estado das coisas, deixadas ao deus-dará. Talvez, por isso, a atmosfera típica pairando sobre nossa poetizada Ilha seja, na voz dos antigos, aquela dissipada no ar como uma bruma sonora e ecoante: “Ah! No meu tempo é que era bom!”  O clima geral é sentido como o de um “Era uma vez”, de um “...E o vento levou”. Levou para não trazer de volta: o bucolismo decantado em versiprosa, os grandes quintais com árvores frutíferas e a natureza sempre presente, a segurança de portas e janelas sem grades, as crianças brincando nas praias e nas praças, tomando banho, mergulhando nos igarapés não poluídos, as histórias assustadoras de visagens e assombrações, os remédios caseiros, as noites enluaradas... Talvez para esquecer --ou mudar -- o veredito do “Era uma vez”, as páginas de Cantos da Ilha  tenham sido escritas, ou, sei lá, parece que se escreveram sozinhas. Sem ninguém que as desenhasse no papel, rabiscaram-se sozinhas, porque necessárias, porque um clamor gritava por elas. 
               Será isso mesmo? É bem provável...

  

PELO CORAÇÃO DA ILHA



Paisagem de palavras

O mês de março
desaba sobre os telhados,
                sob os quais fluem
jatos-goteiras
, liquefazendo aquela imagem
   --já difusa -- da paisagem
         memorável:

          uma estampa, um postal,
conjunto da estrada líquida
cobreada do Pratiquara
com suas margens
inundadas de mangueiros e siriúbas...

         Um lápis mental
   vai derrapando o grafite
                      em linhas de meio-tom
por este curso d’água
               reconstruindo
uma bela paisagem de palavras
-- estas deste poemeto –,
onde a utopia traz
        pelos olhos
            que decodificam os signos
deste grande bem perdido
    em degradas águas
             turvas
a cortar, serpenteando,
um solo pobre
            e desmatado.

A paisagem de letras
-- em imagem difusa,
                                  não esqueçamos –
põe de volta no céu coloridas aves e,
                            no rio,
      lépidos peixes.

       Põe também a musa
nesta canoa
               que piloto;
põe em nossas mãos
taças de vinho,
nos meus lábios
                         os doces beijos dela,
   a ambrosia há muito desejada...

o céu azul em pleno
   inverno amazônico,
         põe, enfim
-- o poeta grafitando nesta página --,

                            sim, põe
                             o caos
                                  em grande
                                  harmonia

(nesta bela paisagem de palavras).

Mari-Mari

O sol não nasce rasgando
o céu sobre o Mari-Mari.
Lá, o sol nasce e emerge
do próprio solo do rio,
esquentando as águas
e pintando todo um arco-íris
aquático, que vai refletir
no líquido espelho celestial.

Nascendo das águas doces
do Mari-Mari, o astro
mais pop do mundo
eclode ante os olhos

Uma pororoca de luz!

e seu silencioso mas eloquente brilho
alimenta camarões, peixes, aves...

O ser humano? Quase
não importa ali, quase
um elemento de intrusão,
move-se como se um patético
alienígena, principalmente
no agir de preda-dor...


Fiat lux!

O candeeiro recebeu
a chama...

                         ... polegar e dedo
                                       indicador
                         em pinça
                           carregam o palito
                           doador do fogo...

... as mãos calejadas,
     donas dos dedos,
            pertencem ao caboclo
pescador ribeirinho...

− corpo robusto,
bronzeado
e maltratado
pelo sol,
         chuva,
         calor,
          carapanãs...

Lida diária
maré enche-para
vaza-para
     enche novamente...

A tarrafa não só
captura
peixes, camarões, siris.

Captura – o ar
                  a luz
                  a água
                  o verde
                         o Sol.
Captura a dor
e a alegria
         o voo das garças
o canto do sabiá
    o marulhar das águas na enchente
                                                   e vazante
o “tum” do galho
seco n’água
 do ‘garapé, tépida e cobreada
    As nuvens
     agasalhando  a Lua,
protegendo-a do frio
    e amenizando
         a brasa solar
                    sobre a morenice cabocla
     
 Enquanto  estes versos
      são pensados, o caboclo
           apagou a chama do candeeiro...
                     Eu nem percebi...
                                          Já está lá fora, canoa no rio, despescando matapis...


Caruaru é meu destino (Dizem por aí...)

Cumpro, todas as noites,
este carma, esta ‘mardição’...
sobrevoo ruas, casas, prédios...
O cemitério passa lá embaixo,
a igreja já ficou para trás,
junto com a praça,
o cinema, o mercado,
o trapiche e a praia...

Sei que o Caruaru é o meu destino...

Avanço rumo aos igarapés...
Tudo é soturnidade!...
Por quê? Por que desta sina?
Que fiz eu? Que mal cometi?
Contra quem? Quem sou eu?
Que metamorfose é esta?!...
Chegam as matas, o frio vem,
trazido do manguezal e das águas...

Do meu propósito me aproximo...

O mundo é triste, lá embaixo.
Aqui, a coisa não é melhor...
Nem vivalma vejo, só névoa:
ninguém para assustar ou surrar.
Passa o Tamanduaquara, passa;
passa o rio Murubira, passa;
sigo o Pratiquara adentro...
Lá no Caruaru pousarei.
Quero ver a filmagem.

Dizem, dizem por aí: o tal filme,
este que está sendo feito agora,
dizem, é sobre mim...


Sinestesias

Os sons escuros
que das ondas
pingam frialdades
trazem-me
a carícia tátil
e o aroma de tua voz,
tatuando em minha pele
milhares de marcas
de teus beijos,
teus lábios
carimbando de batom
100% de meu corpo,
que saboreia
cada uma sensação
ao redor,
aqui nesta praia,
que minha imaginação
transforma em cama.


O mestre e a obra

O mestre
vê sua obra
decepando em dois
a pelica cobreada
do igarapé, conduzindo
caboclos aos seus (in)certos destinos...

Um sentir confuso
entre orgulho
pela obra acabada
e melancolia por já se estar
acabando, consumida
pela mesma causa primeira
que a fez flutuar: água,
este miolo líquido
que engole (em parte), suporta
e leva-e-traz
cascos, montarias, canoas,
rabetas, batelões e vigilengas...
e pessoas, principalmente estas.

Do Porto do Pelé,
desde o Tamanduaquara,
pelo Murubira,
Pratiquara,
pela Ilha de São Pedro,
pelo Pirajuçara,
pelo Furo das Marinhas,
ilhas Maruins
rumo da Ponta do Queimado...
Suas obras
em madeira da Amazônia
desembocam nas três baías,
ganham o Pará,

o País, o planeta... singram
sob a Via-Láctea
os (des)caminhos
de água e de canoa,
driblando botos,
enganando a boiuna,
(des)encantando os encantados
do fundo do riomundo...

E de todos os lugares,

sua obra vê seu Mestre...



Postal de sentidos


Vislumbro nos
círculos de tuas
       duas íris, profundamente,
       umas certas lonjuras
                            levemente
                                emanadas
de lembranças turvas
do encontro do rio
Murubira com o Pratiquara:

esquina de rios – duas curvas –
a desaguarem suas águas
em um leito repleto
de mágoas enlutadas...

Ouço e sinto os pingos
do chuvisco
espocando suas gotas geladas
na chapa do piso líquido
destas largas artérias
ramificando-se
e levando sinergia
por toda a anatomia
desta Ilha,

espargindo
                    pela atmosfera
ares aromatizados
pela mata ciliar
brotada logo acima do tijuco
que assoalha estas águas cor de cobre...

E, assim, um rio
de sentimentos e de sentidos amalgamados
dilui-me e deglute-me
este universo
  circundante, em doce entorpecimento...

Tudo isso é efeito
       do que reflete
       dos teus
               olhos
              para os meus
                     desse postal antigo
             que tu tens nas tuas mãos.

PELA BAÍA DE SANTO ANTÔNIO E PELA VILA



E/ro(s)mantismo de beira-rio-mar


Não há, não há
outro regaço onde
queira buscar aconchego,
outro corpo onde
queira encontrar calor,
sim, não há decerto
outra pele macia
e perfumada onde
queira tocar e sentir
a excitação visceral
como única fonte
de doce encanto. Nada
há como o aroma
dos cabelos da morena
-- moldura natural para
a face do amor.

Tem ela aquela voz
tal qual a leve luz
na matinal
mansidão da foz
do rio Mari-Mari,
acariciando
foneticamente
os ouvidos do amado
-- no friozinho invernal
da preguiçosa segunda-feira...

Tudo vai passando lá fora.
Dentro, o tempo estacionou,
abrigou-se de mansinho,
afugentando de todo a solidão.

Os pés flutuam leves,
levando-te-trazendo
do quintal ao trapiche
e à pequena faixa de areia,
ousando ser praiinha
de ventos esvoaçantes
a desenhar ao ar livre
as curvas morenas
no perambular onduloso
nas marolas da beira
da Baía de Santo Antônio.

Uma rabeta ronca o motor
ao longe... ao longe, uma-duas
gaivotas exibem-se no céu
no momento em que
o azul toma a decisão de
 dissipar a névoa,

enquanto um-dois-três botos festivos
boiam à flor d'água...



A rede range a cada
calmo balanço...
O estalido de um beijo
desperta o caboclo.
Mãos puxam outras duas.
E a rede de amor
ganha um novo balanço
-- que de calmo já
nada pode ter...

Do lado de fora,
floresta, rio-baía-mar, céu e nuvens,
tudo-tudo estacionado,
agora...



A fábrica

Óleos e essências
no passado longínquo.
Mais tarde, tornava o látex
o sangue branco da seringa
a valiosa borracha,
o ouro brando da Belle Époque
                    daqui.
Hoje, apenas fabrica sonhos,
nem sombra do que o foi:
o tempo passando uma borracha
nesse passado de glória!...

Entretanto,
também fabrica uma outra realidade,
mitificando esta mais óbvia
do eu-aqui-agora, matando
nossa fome ilhoa de alimentos do imaginário,
oferecendo à mesa
o Mistério da Cobra Grande,
administradora de fato
do fantasmagórico prédio,
ruína de um fausto
que soterra o Ontem
sob os escombros
       do Agora.


Areão em maio

O chumbo enche a paisagem
de sua cor fria e nostálgica.
O mar é morto
e não há ninguém na praia,
além de mim
e meu cachorro.
Ao longe longes barcos,
longes revoadas de maçaricos.

O cinza contamina o céu
e o mar e a minha alma.
O bege da areia
e o pelo do cão
discrepam do ambiente.

Mas o todo sugere o que há em mim:
nem dia nem noite,
nem negrume nem luz,
apenas a palidez da indecisão...

O cinza tedioso desliza pelo mar,
sobe pelo céu
e se dissemina por todo o panorama.


Uma ponte entre o hoje, o ontem e o amanhã

A ponte quase que somente liga hoje o Mosqueiro ao nada,
pronunciam alguns... nada disso: é uma voz do passado, cochichando
ao nosso ouvido: “Não deixem morrer nossas memórias!”
E, se é uma ponte de memórias, um trapiche de lembranças,
é também um convite a um mergulho, de um salto rápido,
não só nas águas da Baía de Marajó, mas uma imersão
nas águas passadas do tempo e do espaço, sob e em frente
deste monumento erigido por ingleses em 06/09/1908.
Cem anos de nascimento, cem anos de ir-e-vir de pessoas...
E nada de batismo, um monumento anônimo, 
que ergue sua voz secular, vinda com os ventos ancestrais
da Belle Époque Paraense, que o Ciclo da Borracha
fez passear em trajes afrancesados e arquitetura requintada,
da melancólica praia do Bispo até o doce recanto do Ariramba...
A transfusão de tempos nos vislumbra esta Ponte, pontas atadas
de um século e outro, do outrora ao agora, a lembrar
que seu parto coincidiu com a chegada dos estrangeiros da Amazon River,
da Port of Pará e Pará Eletric Railways Company,
construtores dos chalés da orla de nossa bela Ilha.
Antônio Lemos ressuscita em nossa memória mosqueirense,
e esta ponte que não liga margem a outra liga tempo e memória
já testemunhou a atracação de centenas de navios-fantasmas...
Ponte a interligar a Ilha do agora àquela do outrora, do fim
do Ciclo Áureo da Borracha, trapiche, atracadouro onde aportaram
personagens navais que jamais devem mergulhar nas águas
barrentas da desmemória: o vapor Gaivota, o mais antigo
na linha Belém-Mosqueiro-Belém. A lancha Tucunaré, o saudosíssimo
Almirante Alexandrino, o Lobo Dalmada, o Lauro Sodré, o belo,
luxuoso e elegante Presidente Vargas. Ei, psiu! Acorde de seu sono,
sob estas águas! Mas... é impossível...
Muitas águas passadas, e o trapiche ainda sobrevive em seu eterno
retorno de tentativas com outras embarcações: Otávio Oliva, Capitariquara,
Mazagão... E hoje, esporadicamente, surge nos horizontes da Baía
de Santo Antônio, como um mito vivo, eis de novo o intendente,
Antônio Lemos, um retorno ao passado, mesmo que raro, muito raro.
Importa é que nosso secular monumento anônimo ainda
sobrevive, sem projetos, sem nome sequer, apesar de não ser mais
metálico, ser de madeira, em estado de decadência que dá dó de ver...
Mas é um sobrevivente teimoso. Por isso venceu a outros, já extintos.
Na sua inglória luta temporal, sobreviveu aos trilhos do Ferril-Carril, Cine Guajarino,
Bonde Pata Choca. Nasceram a Rádio Nacional, o Estado Novo,
veio Magalhães Barata, eclodiram duas guerras mundiais, nasceu Brasília e a Rodovia
Belém-Brasília,chegaram os mega projetos desenvolvimentistas amazônicos, 
o Milagre Brasileiro trouxe-nos a PA-391 e a Ponte Belém-Mosqueiro
                          para ofuscar o trapiche
veio a energia de Tucuruí, espantando visagens e assombrações...
O trapiche, caprichosamente, ainda está de pé, por assim dizer,
à revelia da ausência de projetos de melhoria de vida para a gente daqui da Ilha.
As águas passadas e as atuais não destruíram o trapiche anônimo:
as do futuro, então, o farão?
Ponte sem função? Não: perdeu uma função e ganhou outra: os namoros em flor!
O guerreiro já velho, cansado e calejado, de muitas batalhas, tanto ganhas
quanto perdidas sem mais nenhuma por vencer, talvez não queira mais,
do mundo e das pessoas, nada mais que se mantenha dele, na memória,
os tempos de glória, para o eternizarem. Jamais deseja o esquecimento,
pois o esquecimento, este sim, significa a morte.



Esta noite


Não pude perceber lá fora
a noite de carbono descer
em seu peso e pouso manso
e leve ruflar de asas silentes...

Pois aqui dentro, nada posso
notar do que se dissimula
sob o céu de altas estrelas
em ato sublime e cintilante
de vigiarem todas as trilhas
por esta afável Ilha a fora.

A umidade cai serenamente
sobre folhas e floresta inteira,
sobre a pelica fria e imóvel
da cobreada horizontalidade
das doces águas dos igarapés;

sobre o limo destes telhados,
não só sobre a Bucólica Ilha,
não só sobre toda a Amazônia,
mas também sobre toda a Terra.
É... a noite toma conta de tudo...

E eu insulado, no interior fechado
aqui deste meu caroço de tucumã,
sou um encantado, apenas esboço
de uma lenda em que o ostracismo
é um dos emblemas mais notórios.

A noite, a Grande Noite Lá Fora,
é bem maior e mais opressora ainda
no interior deste circunspecto peito.

Tal treva infinita é a noite universal.

Nihil

A vítrea garrafa,em vez da cachaça,
Vomitou-me umas doses de remorso.
Mesmo assim as bebi – só de pirraça!
Ao meu redor, meditam em seu ócio,

Soturnas sombras nesta bela praça.
Pessimistamente, descansam meus ossos
Doídos, carcomidos pela traça
Do álcool e do fumo. São destroços

De minhalma, da verdade entediada.
Estas mangueiras, estes companheiros,
Esta cachaça, esta lua no céu

(Pairando triste nesta madrugada),
São fiéis testemunhos derradeiros
Do fim da linha diluída em fel…

O Cine

Cedo ainda, ele entra.
Apressado, como de praxe.
Qual seria o filme?
O cartaz responde:
Rastros de ódio, com John Wayne.
É o ano de 56.

A perplexidade quase
narcotiza a vista:
o projetor pinta na tela
índios não tão vilões assim!...

Está mais cansado
nesse início de noite,
as mãos ainda com vestígios
de graxa, as retinas
semicerradas, pedindo
cama ou rede para
os ossos, músculos e mente...

O jovem mecânico estava ali
apenas porque nutria
a esperança de pegar
nas mãos da namorada,
que não pôde vir. E ele se foi.

Sonhou com aquela
sessão superlotada, em 39:
era ...E o vento levou.
Ela estava lá. Sorriu-lhe.
Só em sonho. Nem nascida era.
E ele, criança apenas.

1959. É outra sessão agora:
Bem Hur, com Charlton Heston.
Alfredo e Joana entram,
de mãos dadas e anéis nos dedos
-- eram alianças!-- no Cine Guajarino.

Não, não era sonho. Ou melhor, era!
Mas um sonho realizado.

E os cinéfilos ilhéus em multidão
se ombreiam na fila,
principalmente mulheres,
tudo por causa do galã.
É, Charlton Heston é o culpado
-- de jeito algum o vilão!...

Os anos 70 trouxeram para a Ilha
as espinhas de peixe das tevês,
e as telenovelas te dizimaram,
velho Guajarino... Mais
um lugar do ontem
nas reminiscências do agora.

Na tela sombria da mente
se dorme um sono pesado,
mais que o de Alfredo
naquelas sessões em que
o enredo da película, sem dúvida,
não poderia jamais lhe apetecer.

Restam as preciosas recordações:
aquelas sessões noturnas,
 no meio e nos fins de semana,
com suas movimentadas
 matinês e as vesperais, comuns
em férias e feriados.
A lucidez de Wolney Dias
e Pedro veriano é que
nos lembram desses memoráveis
tempos, dessas melancólicas
projeções docemente rememoradas.



Página de areia

Meus pés lépidos pisam o ar por sobre os versos,
pairandopulando por cima e acima das letras
com bastantíssimo cuidado para não tropeçar...

Na areia, lagos cavados por outras crianças,
montes, castelos, lúdicas fortalezas arenosas
nesta página –não de papel− que é praia...

Mas eu gosto é de ler, de escre-ver, ver-os-versos,
apagá-los, reescrevê-los, poematizar o céu,
Mar Dulce, a pétrea e mística Ilha dos Amores...

De repente, um pingo grosso de uma nuvem,
em minha face, e não é de chuva, é de tinta!


Corro! Tento escapar da pena que me escreve!...



Pedaladas na Ilha

Fôlego
falecendo
neste pedal girando:
força, for-ça, f-o-r-ç-a...
O asfalto, como esteira rolante,
escapulindo para trás...
O tempo na frente
diante de meus olhos,
e o pneu dianteiro
bebendo a distância,
encurtando o futuro
 ali, quase a fugir da tentativa
de apanhá-lo com as mãos
(apesar de estarem
                             seguras
                                     no guidom) 
...
O vento inunda os olhos
de cores, a endoidecer a razão,
no fluxo contínuo das pedaladas:
trôpegos passos de pés redondos,
levitando sobre o solo esburacado da Ilha
 em direção à praia à luz ao sonho ao arco-íris... ,
em busca de uma bateia mágica
garimpar num veio etéreo
todas as minhas líquidas utopias
que subjazem latentes, mas não se desfazem,
emergindo, mesmo que volatilmente,
e me arrastando até a linha do horizonte,
onde, por fim, descansarei...



PELA BAÍA DO MARAJÓ
Naquele tempo... (ou Bispo agora-ontem)

Neste novo amanhecer na praia
a do Bispo, há uma névoa
cristalina que quer esconder
a realidade presente e revela
espontaneamente um outrora
ante minhas retinas estupefatas.

A lenda impele sua indistinta figura
no lento rumo daquele monumento:
São Pedro, imagem do santo pescador
decaído, que a baía já engoliu de todo.

Este é um olhar na direção da seta
apontando o que já-foi, tempo (tardio
tempo!) do qual ficaram somente
 migalhas na palma de minha mão,
onde pousa este um pássaro etéreo
que vem mariscar e deixa, apenas,
o cuí indistinguível do tempo ido...

E voa.... voa... e fico contemplando
 sua sombra a se desvanecer nas nuvens.


Sombra & luz

É madrugadinha no Bispo.
Das árvores vão descendo
as sombras que se arrastam
em meio às grandes rochas.

E seu silêncio sopra em simbiose
com o marulho da beira,
fronteira onde água e areia
em conjunção orgásmica
transfundem-se, tão interpenetradas
em si quanto aquele
duplo vulto notívago e insone,
na contínua cópula escultórica
de horas a fio: em pé, sobre as rochas,
em decúbito no solo praieiro,
sentados com água pela cintura,
felicíssimos na dança
das águas cadenciadas
desta mística praia,
já no lusco-fusco do alvorecer.

Ali há líquidos fluindo
de dentro para dentro,
não só dos corpos suados,
mas a introduzir-se
pelas ribanceiras e
de lá se precipitando,
pelos galhos pendentes,
como se gotas etéreas fossem,
esguichadas gotas cristalinas
de sêmen jorradas
e nascidas de sombra & luz.


Onde ...

As ondas da praia do Bispo
nada sabem de você...
No céu plúmbeo,
as nuvens quase equidistantes
não me cochicham,
egredando teu destino.

Às garças elegantes,
grito silenciosa
e desesperadamente
que não mintam para mim.
As pedras cruelmente calam,
calam, calam...
Só as ondas falam...

Mas é um idioma
cujo código desconheço
por completo...
Ao largo, na baía,
zombeteiros barcos, gargalhando
aos pô-pô-pôs,
Despedem-se e vão-se...
E só, eu vou ficando por aqui...

O sol decai em sono lento,
espargindo pelo panorama
melancólicos vermelhos,
a impregnar meus lassos olhos,
abandonados pela luz.

Pergunto às estrelas,
que apenas me piscam, cúmplices
desse segredo, desse mistério
que insiste em não ser  revelado...

Que estará fazendo o Meu Amor?
Por quais trilhas estará vagando,
longe longe sem mim, que lamento
por estares em um lugar por mim desconhecido!

Eu, que durmoacordo no Paraíso,
porque é com minha Princesa que divido
o leito, vivo num sonho, devaneio
que não quero nem de longe
que me escapula da vida/vista.

Tudo que mais quero no mundo
é ter você em meus braços...

Sempre...  Sempre...


Praia grande

I

                                                    Independentemente das furiosas
                    surras das marés altas,
                                que com suas ondas fustigantes
línguas líquidas de marinhos
                                    dragões
bombardeiam e carcomem as falésias,
                                            ainda assim é
Grande,
                   bastante grande,
 não tão grande como o rio-mar,
                                                              lá adiante, que é demasiado maior.

II

                    Aqui em frente a mim, esta praia, clara faixa arenosa de longa longa margem,
             em minha memória de um ontem bem recuado lá para atrás...
       Pois no agora, tanta tanta tanta pedra onde só havia fina areia...

Meu coração, que tem muito de pedra,
no entanto, se confrange
quando olho o hoje
e só vejo o ontem
no interior de cujo âmbito habitam
o bate-papo e o bate-bola, além da bola-ao-copo
                     entre velhos amigos...
Na pele, ainda agora a impregnar-me
a brisa cálida, e o pôr do sol dentro destes olhos,
                           a me contagiar com a alegria das cores do verão,
     nos chamativos trajes de banho (o)usados,
trajes que passeiam no corpo de veranistas
               em evocações intensas
                                  na nostalgia desta paisagem plúmbea
   deste inverno amazônico
                  a povoar tudo aqui...

III

                                                     Tudo tudo passa em branco e preto e em cores
                    frente aos olhos,
            enquanto a caneta banha de tinta a página esculpindo nesta praia de papel
                                       estas letras incertas, evocando,
                        rememorando ocasiões
                                                                                               que se inscreverão na História
como imagens baças, máscaras de fatos,
                    e mascarados de Carnaval,
como o cara chamado Pelado,
    entre outros quase anônimos, tais como ele,
                 figuras sempre repetidas ali pelo bar O Harém,
                                   cuja antiga dona apelidou a todos os pinguços
                (nós, brincantes do Bloco Tá Feio)
                         de
   Caras-de-espanta-freguesia!...

IV

Pingam as chuvas frias no corpo... e nos copos
      e a pinga nos lábios...
                                                             As piadas riem de nós,
                                                       as pescarias
                    e avoados de peixe
                                           e siris assados na brasa também
   não se esquecem de nós,
                                                                                                     coisa mais que fácil de fazer
                                    para aquelas belas banhistas hipnotizando
os que mendigavam por apenas
                                                   uma inverossímil recíproca troca de olhar.

Desenha-se com contornos nevoentos
            um panorama em que ainda subsistem
                                                  as faveiras, a solitária árvore da beira
próxima um tanto à linha d’água de nossos frequentes banhos,
                                          afastada razoavelmente da ilha de pedras.

Os ônibus de piquenique e as brigas
          frequentes, naquela época, eram um tosco atrativo      
                                    já meio tradicional, até...

V

As ondas agora, em suave e incessante falecimento,
                                 na praia e, por isso mesmo, neste papel,
não as posso ver só como fenômenos,
mas como ecos,
como vozes saudosas
de épocas mais promissoras, que se fazem assim nóstalgicas,
soluçando lamentos por um grande bem perdido, recôndito,
que estas pardacentas águas,
                                                 de propósito,
    vão diluindo, liquefazendo,
        como mensagens de letras em transparências
               quase imperceptíveis,
que emanam das linhas e retornam para
a vaguitude de meus pensamentos,
                                                       perdidas em sinapses estéreis,
              ondas mortas,
                                           vazias,
                                                 vagas ondas,
                                                                         que vêm e que vão,
                                                trazendo e levando
                                                                              momentos já perdidos,
 contudo, em parte recuperados por esta grande praia/página chamada memória.
         Não só a minha, mas inclusive a tua, a nossa...
                        A memória de todos que estiveram lá... e aqui também...


Dezembro a abril...

Quase tudo em redor
resume-se
a branco e cinza.

Aqui e ali
uma vela
(que o vento
pouco leva)...

O mar cor de prata
e pouco encrespado
parece refletir-se
ao olhar-se
no espelho do céu...

As gotículas
friazinhas
aos milhares
quase enregelam
e embranquecem
toda a atmosfera
,
até entre nós
                      ,
apenas aquecidos
por aquelas
doses de branquinha,
de mão em mão.

Assim era a Praia Grande
         --para nós--
de fim de dezembro a abril...
...e ainda o é,
               nestes versos
               respingados de memória
traspassando-me como
sílabas úmidas...

A brisa
um pouquinho mais ligeira
perpassa
o próprio pensamento.
E o tira-gosto
é a bruma um tanto
translúcida,
quase transparência
no todo embaçado
                            deste panorama...

Desenhando letras

Folheio as páginas,
viajo conduzido pela
cor escura de cada letra
carimbada nos brancos
antes quase inconspurcáveis...

Não sou eu nessa jornada
quem decide o rumo
―rota já traçada
     por “eles”?

Sigo assim mesmo
desenhando letras
(sonorizando-as
                            , silenciosamente)
neste pergaminho,
tinta diluída
em ácido muriático...

Por que o tempo não parou,
se tanto me desesperei por isso?!
Por quê?!
O Trenzinho Pata Choca
seguiu, extinguiu-se... até
as saudades da locomotiva
e seus vagões foram perdidas,
quase nem foto restou...

Aposentaram o Almirante Alexandrino,
nem em objeto de museu tornou-se,
senão um belo bem perdido...
O Presidente Vargas
dorme um sono líquido
dentro das turvas águas frente a Soure.

Do Cine Guajarino, nem projetor
nem fachada do belo prédio,
nada restou, só desconsoladas
memórias de sobejo.

O imponderável infunde
em minhas evocações
estampas fluidas das piscinas
do Netuno Iate Clube, ASCB,
Fazenda Clube...
O silêncio do Praia-Bar
e da boate Ressaca me comprime
o peito, quase me impede
de persistir...
A sensação do já-ter-tido
e do não-ter-mais crava-me
um veemente punhal
na mente...
O que fazer com o que sinto?
Como trazer de volta o que se perdeu?...

As letras que ora desenho
 nublam tudo.
Em um átimo, todas as evocações
descambam em remoinho...
                                         ...ferro-carril... Faveirão...
...Interpass... Buretama...
                       ...caramanchão do Bispo...
    ...biblioteca... Educandário...
                                          ...escolinha do padre...
                                       ...Catalinas...Zepelins...
             ...aeroporto e teco-tecos...
        ...Praia-Bar...Cine Guajarino...
                                                ...usina de força...
            ...clubes e campos de futebol...
...a bandinha Sempre-Serve...
     ...Carnaval na Praça...
...Expedição Africana...
...blocos de sujo...
...bicho folharal...
   cabeçudos...
   ...homem lama...
...papaimamãe
vovótiosetias...

Pessoas, ideias,
espaços e tempos confundem-se
e povoam de casmurras sugerências
condoídas as páginas  e letras
que desenho em minha mente...

Prainha

Entre a Praia Grande
e o Farol, existe um nicho,
um recorte na paisagem
que descerra um panorama
em modesta enseadinha,
iniciada por uma fileira
de pedras bem encaixadas
(uma a uma, feito a montagem
de um brinquedo da Lego),
bem à esquerda do observador:
extasiado, a bicicleta ao lado,
máquina fotográfica à mão...

O futuro cartão postal em foto
fala por si mesmo, nas árvores,
areias, pedras, lagoas, capinzais
e garças; nas ondas, nas nuvens
que testemunham o solitário
ato de pescar do homem de chapéu
ali na beira, a tarrafear o de-comer,
ignorando as peçonhentas arraias.

À direita, bem lá adiante,
o velho casarão antigo, fechado,
 na beira a mirar a calma baía,
rumo à Praia Grande,
finaliza o passeio do olhar.

A outra bicicleta estaciona.
A voz da ciclista morena
assobia como a aragem
e é  doce como as ondas:
que charme de lugar!...


O Hotel

:Um barco fundeado
no fim da enseada,
sob a calmaria da marémória...
Sua âncora?
                               A Ilha dos Amores...

O Farol – deixará de piscar
a luz-guia
de seu olho de Ciclope Vermelho?
Só se o coração da Ilha
também parar de pulsar...

E só ecos de reminiscências
            restarão:
                 ...
          A infância (es)correndo
                                      livre-solta
nas ondas “de pegar jacaré”,
sob o guardassol azul do céu,
erguendo-se espumantes
sobre o pardacento líquido
do Mar Dulce,

                           introjetadas nos risos
refletidos nas lagoas, e nos castelos
de areia das crianças-arquitetas
de um futuro-em-devaneio...

... as linhas-de-mão, com seus anzóis de arco-íris,
            fisgando não só peixes e pitus,
mas todas as constelações
e nuvens deste céu líquido,
que testemunhava
os jogos de bate-bola
                                            (e de bola-ao-copo!)
... os passeios e namoros em flor,
inspirados nos ajiruzeiros
de mãos dadas
na bege faixa arenosa...

...sobre-tudo, esta bela lua levitando
nesta abóbada celestial sem gravidade,
magnetizando os olhos
e o coração dos recém-casados,
que a fitam
pelas claraboias do Hotel, perplexos
como Ismália no dilema
entre a lua do Mar
e a lua do céu...

É aí que o vento resvala
na água e impele as ondas
a copular com as areias.
As rochas e árvores na Ilha ouvem sua voz
a acariciar nossa pele e sussurrar em nosso ouvido:
“Os que aqui vêm, vivem vidas centenárias!...
...
Só o sonho visionário
explica claramente como
na escuridão das saudosas
noites da metade daquele século,
eu já estava por lá,
perdido e encontrado
pelo cheiro de mar na pele,
pela cor espalhada
captada pelo ouvido,
os olhos perdidos entre
os sabores
de luz
e as cores-sons -- doces--,
que os olhos hipnotizam,
abarrotados de ar
                             ,água
                                e areia...

Chegada

De mãos dads com o sonho,
e acompanhada pelo vento
e o som das ondas,
ela volta para casa,
utopia
de refúgio e descanso.

Sim, a cabana Yndaí
ainda esta ali,
situada em um Farol
sem tempoespaço,
com todos seus habitantes:
Georgina e André,
Maria e Raimundo,
e Wolney, que está
de chegada de Belém.

A menina entra,
a porta se fecha,
um novo sonho
começa a ser
sonhado...

A Joana chegou:
uma suave voz se ouve.
Sorrisos largos se abrem.
Seus olhos se enchem de luz.


Farol

As ondas lá adiante
acariciam a página de areia,
alisando-a com suas
líquidas mãos doces
e vêm banhar esta
página de papel em minhas mãos,
tingindo-a com sua
úmida mensagem
de  vem e vai,
como das linhas movendo-se
diante dos olhos:
esquerda-direita-esquerda...
Molhando a superfície
branca de tabula rasa
e registrando os versos
quase que espontâneos,
que jorram do papel
como um spray de pimenta,
mas que só ardem nos olhos
como o sal da saudade:
lágrimas de luz em letras
carimbando a mente
de imagens vívidas
de passado e presente,
de pedras e Ilha,
Ilha do Amor, rochosa
ilha misteriosa, agreste verde-negra
Ponta do Amor:
exótico oásis de beleza
em multifacetados pixels
enfeitiçando os olhos enamorados
e alegrando os ventos a favor
nas velas deslizando
(nas baías do Marajó
e do Sol), trazendo-as presas
como uma magnética
tarrafa afrodisíaca.

Lá fora, fundeados na barra,
os navios graneleiros admiram
a fileira ordenada dos juruzeiros
que amenizam os ventos
e barram um pouco as areias
da invasão do calçadão, da ciclovia,
da Avenida Beira-Mar e dos casarões antigos,
chalés do Ciclo da Borracha,
e para onde os banhistas fogem
do sol abrasador, sob o bem bom
das acariciantes sombras amenas.

A maré vaza na página
de areia e pinga bem aqui
quedando da folha de papel,
tabula rasa novamente
na mente deste poeta-leitor,
que só contempla
a paisagem de solitude
nesta manhãzinha
azul na praia do Farol,
ausente de gente, só,
só como eu, eu-só.


Na janela, mirando...

Os olhos na janela
da Cabana Ynday
se perguntam por ela:
onde estará agora?

O panorama está vazio:
pelo menos de pessoas...
Ali, além de uns poucos
maçaricos em revoadas,
só as areias dançando
esta melodia cantada
pelos velozes ventos;
só o som da maré rugindo

nas bocas das rabugentas vagas
lixando o áspero solo praieiro,
aquecidas pela brasa solar
em seu itinerário pelo papel
de seda azul azul do céu,
irmanado por pequenas nuvens,
estas testemunhas tácitas
das peraltices da moleca
 e suas parceiras de praia...

Os olhos miram céticos e longe
no horizonte  veem flutuando
na baía o arquipélago marajoara.
Mas não a veem: por onde andará?
Correndo, pulando, pegando jacaré?
Catando e comendo ajirus? Goiabis?
Jambos? Mangas? Jabuticabas?

O súbito e rasante voo do pássaro
de metal anfíbio, antes de amerrissar
vai deslizando sua barriga na epiderme
deste pardacento mar-baía, para em seu ócio
assombrar os olhos amofinados,
não só na janela da Cabana Ynday,
mas na face infantil de Joana,
 a menina praieira...

O motor roncando fortemente
iguala-se ao som da arrebentação
das ondas, em seus beijos molhados
dados nas pedras da Ilha do Amor.
É uma Catalina, diz Pai André
à maravilhada menina praieira.
Vem trazendo ajuda da ONU pra nós!
ONU? O que vem a ser isso?
Se ela ainda não sabia, tão pouco
Pai André podia esclarecer,
nem Mãe Georgina, a Baiana
daquela  praia do Farol...

O avião trazia comida, leite, bolachas,
trazia roupas usadas entretanto,
 no cheiro e na cor aparentando o novo,
mas para a peralta menina praieira
a Catalina só alimentava a fantasia:
era apenas um brinquedo a mais
a seduzir seus olhos com o encanto
vivo em sua íris de negrume caboclo,
de menina-bota, bela menina-iara,
de menina do rio e da praia, irmã
das areias, do vento, do sol, das águas,
ainda hoje bricandocorrendovoando,
saltitando em meio às nuvens
em seu mundo de constantes sonhos...

Mas não mais estão ali os olhos antigos mirando,
nem está mais ali a nostálgica Cabana Ynday.
Ali, apenas meus olhos, na escuridade vagando,
e na névoa de meus sonhos voláteis,
em busca de duas mãos insofismáveis
que devem descer derramadas pelos ventos
a me guiar alçando-me na direção das nuvens...


Infância menina

Os cabelos livres,
                                 como ela,
                                      dançam
     a coreografia proposta
pelos ventos, mas enfrentando-os,
     na corrida com as colegas,
 na brincadeira de pegar jacaré
                             nas ondas da praia do Farol,
     nadando,
            pulando,
                          mer
                                   gu
                                     lhan
                                     do
nas açucaradas águas da Ilha.

O Sol em brasa
é testemunha
dessas ingênuas transgressões
de menina praieira
que vê a paisagem
         explodir em cor e luz e vida,
                                          sem culpar-se por sua infância feliz.

Sob o calor do causticante
     sol de outubro,
                           sob o belo
     branco luar
das noites equatoriais,
                           sob o cinza
     chuviscadeiro
dos meses de fevereiro e março,
                                         friozinhos,
sob as manhãs azuis
                                   e as noites estreladas,
ouve de sua mãe Georgina
    e de seu pai André
    as lições de como ler bem
        a cartilha do bom viver
e ouve ainda
as apavorantes
histórias de visagens
        e de assombrações...

E era doce tarefa
ajudar a mãe e o pai:
   ajudar na cozinha
descascando os camarões
     com a mãe
para o cardápio do Hotel Farol,
ou jardinando com o pai,
cuidando dos quintais das vivendas
dos patrões,
ensombrados por frutíferos pés de planta.
E saborear as frutas de todos os quintais
    dava sabor à própria vida...

                    O ir-e-vir rumo da escola
         ou de casa
          pela Beira-Mar
   era uma aventura cotidiana
de quilômetros e quilômetros
de contentamento
naqueles idos tempos
              de sonho de pequena aluna nota dez.

Suas infantis retinas
    testemunharam pousos de pássaros de metal,
deslizando mansamente suas barrigas
            na pele enrugada da maré de março
e vinda de dirigíveis trazendo oficiais americanos
               para a diversão no Hotel.

Como era bom viver aqueles dias
       na singela Cabana Ynday,
que Ruy Meira em pinceladas próprias
                   transformou em tela a óleo
           de simplicidade singular.

E a menina vai diuturnamente
vencendo (ainda hoje) o vento contra
     na força e na velocidade,
                        superando-o quando a favor,
    seguindo vivendo bem vividos
estes dias idos do tempo
                         de seus verdes anos...

Capelinha secular

O sagrado Coração de Jesus
pulsa gracioso
na paisagem-luz do Chapéu-Virado,
secular coração
arquitetado em pedra
e cimento e fé cristã,
sobrevive mais de um século e meio
depois de os Cabanos
ali lutarem e morrerem
por seus ideais.

Suas vozes ancestrais, em uníssono,
clamam no vazio do panorama
da madrugada: “Nossa luta,
nossa morte,
hão de não ser atos vãos?”

Só as estrelas respondem,
em um pulsar trêmulo,
linguagem secreta
que só ao tempo cabe
a tarefa de decifrar...


Chapéu-Virado, 21 de janeiro de 1836

Piso este solo sagrado,
onde sou apenas remanescente
dos que tombaram, heróis sidos,
mortos que caminham hoje
nas sendas da memória
de quem os reverencia.

É dia 21 de janeiro de 1836:
balas chispando o espaço
do que seria o futuro Chapéu-Virado,
alvejando as tropas em conflito
e chacoalhando meus neurônios,
excitando-os em sinapses imaginárias...

... e legalistas tombando,
cabanos tombando
e se levantando agora,
no momento em que reescrevo
suas trágicas histórias,
libertando-as do apagamento
a que o ostracismo condenou.

Os canhões trovoam, mesclados
ao som do arrebentar dos vagalhões
ali na beira da praia...

Uma praça, uma igreja, um caramanchão...
Um prédio de um antigo hotel...
O edifício Lílian Lúcia...
O chalé Porto Franco...
A orla, as farmácias, as barracas...
Banhistas, passantes, carros,
motos e bicicletas habitam este solo
em fronteira com a praia do Farol.
Os heróis tombam no combate,
clamam, num ganido candente:

Quem se lembra de nós, que lutamos desigualmente
por um punhado de menos desigualdades?!...

Um grito inaudível ecoa em minha mente...


Uma certa dialética das coisas mínimas

Muitos dizem:
                                               Ah, no meu tempo...
          O meu tempo sempre é hoje!
           Mas, no decorrer de 24 horas,
            torna-se ontem,
              e o amanhã se torna hoje,
               que vira ontem...
               Nada mais dialetizante
              porque mutante,
             tempo nunca-sempre-quase
             a esgotar-se, inesgotavelmente...
            Tempo-vento: o tudo-nada
 a bater,
                                 A esbofetear a face do ilhéu
  e desalinhar as madeixas
   da cabocla banhista,
    a lembrar que outrora
     acariciou a cara
      do autóctone-índio no moqueio,
     do corpo suadensanguentado
     do cabano na Batalha,
    a defender-se no Chapéu-Virado... 
           Do veranista no convés
do Presidente Vargas..
                                       Nas janelas do Beiradão,
           Nas Vans.
            Esse tempo-vento, tempo-ventre,
              a que porto-futuro
               guiará esse barco-ilha
                de desencanto-acalanto,
                                       ao mesmo tempo-vento?...


Um certo Mário... em uma certa praia

              Aqui, nesta calçada,
         defronte deste caramanchão,
         próximo ao chalé Porto Franco desde a Belle Époque
         mirando a Baía de Marajó ,
         sem chapéu na cabeça,
         na mão, ou virado no chão,
         contemplo um tempo
         que não vi(vi):
         vejo ali na areia
         e após na água da praia,
                                    (a banhar-se),
         a alegria descontraída
         de Mário de Andrade
                                                    é maio de 1927 ,
                    entregue às ondas
      destas águas do Chapéu-Virado,
neste tempo que não
                                              vi(vi),
mas que perco-ri
na transcendência das entrelinhas imaginárias
deste poema
que agora escrevi(vi).


No Porto Artur

A vista desliza pela paisagem equatorial...

A água e as ondas
no combate contra o muro...
O Chapéu-Virado...
O Farol, o Hotel, a Ilha...
A Baía de Marajó
bebe o céu azul equatorial,
onde os barcos resvalam
em fina película líquida
e vêm ancorar no mar de meus olhos,
bem no interior de minha íris...

O ritmo de vai-e-vem constante
quase me hipnotiza...

Ao lado, a morena-flor
suas mãos nas minhas
também tem uma vista tão hipnótica,
que é onde ancoro meu olhar
                    em plena paz...


Bela tarde na praia do Porto Artur

A contenção é só uma denominação
para o muro de arrimo
que o povo chama de paredão...

Água mole em parede dura,
tanto esmurra em líquida surra,
que de fato nada duro dura,
é o que dizem e se concretiza
como neste trocadilho
no caso desta praia com nome
de histórico personagem da Ilha.

O ângulo impõe um necessário
passeio panorâmico de olhar:
a curvilínea faixa de areia em meio
a pedras, capinzais, lagoas e arbustos
e nenhum humano ser
é emoldurada pelo paredão
de arrimo e o asfalto da Av. Beira-Mar
(que é bem verdade é Beira-Rio)...

No fundo, o Chapéu-Virado, o caramanchão;
o Farol, com sua longa linha de juruzeiros
de mãos dadas um para o outro,
                                  tão juntinhos parecem...
o Hotel Farol, a Ilha do Amor,
o Arquipélago de Marajó,
com a ponta alta da Croa Grande,
paresque querendo levantar voo,
até o céu mais azul do planeta,
tudo ali na dependência da vastidão
das águas baças da larga baía de Marajó.
A paisagem ali tão belamente descortinada
pela Mãe Natureza e capturada
pelos olhos de nós dois, Amor...

A beleza da vida na maré cheia, agora,
E a nostalgia de tudo na maré seca
e na distante linha d’água,
na música se locomovendo, flutuando
na atmosfera e chegando até nós
vinda do Violão do Porto...
E a brisa batendo, esbofeteando
suavemente nossas faces
vai fazendo mais lento o tempo a passar...

A noite se imiscui por entre
os chalés seculares, e os arvoredos
dos extensos quintais.
As luas artificiais em cada poste
refratam nos pingos dos esguichos,
em cada chibatada que o mar dá no paredão,
quando migalhas de água
em múltiplos miniarco-íris
coloridamente umedecem a enseada
e molham seus olhos, minha amada,
fazendo a vida ter sentido,
para além das caipiroscas e dos vinis
escolhidos para tocar ali
na Barraca  Companheiro.

A música “Trenzinho do caipira”
lembra (não é, Coração?)
que o Patachoca, levando gente
para a Vila e de lá trazendo de volta,
é um fato singular que só na memória
dos mais velhos existe e persiste,
nem quase foto restou...
Mas nesta noite já alta e nas nossas
mentes já altas, embarcamos os dois
neste trenzinho feliz da memória,
rumo à Vila, para, deitados num leito de Eros,
sob um doce e etéreo teto onírico,
passar mais uma noite no Paraíso...


Ele

Ele pedalando
 a bicicleta na Beira-Mar
nem se apouquenta
com o calor e a luz
do Sol que adentra
suas retinas,
introjetando cores
múltiplas
nas semicerradas órbitas,
alimentadas pela beleza
contextual
ali
na enseada do Porto Artur.

O ir-e-vir cotidiano
do Maracajá ao Murubira
era-lhe um puro deslizar de pneus
deglutindo as distâncias
no entrecortar
das aragens contra,
ou a favor...
Este ciclista bonachão
apenas se preocupa
que a água siga
dos poços da Cosanpa
−cristalina e pura e farta−
para as torneiras e chuveiros ilhéus.

Somente quer saber
dos filhos bem alimentados,
da esposa feliz
exalando luminosa
beleza pelos sorrisos
da família
que de fato
tem um lar,
todos com saúde,
estudando
e sonhando
projetos de vida e de futuro...

Ele: cabeça fria,
sandália no pé,
sorriso no rosto,
braços fortes,
camisa no ombro,
mãos calejadas-carinhosas,
apesar de  pesadas
(mas que também sentiam a dor)
quando  precisavam dar
merecidas palmadas...
As piadas eram de gargalhar
quando as contava
para nós
ou para os muitos amigos...

Ele ainda segue pedalando,
renunciando a um belo nascente
surgindo lá atrás,
pingando luz
e exuberância
pela atmosfera
que vai deslizando-subindo
rumo a um azul infinito...

E segue até hoje ainda pedalando
sob um sanguinolento
pôr do sol
que se espelha na calma Baía...
E ele vai prosseguindo
por uma infindável vereda
sobre o mar
rumo ao Marajó,
este arquipélago intangível
de esperança e paz...

Morubiras o início do fim

Na camboa,
em meio à névoa
da manhãzinha preguiçosa,
o índio morubira
recolhe o peixe, o camarão,
o siri...
Os curumins-filhos o ajudam
nesse labutar cotidiano, sem muriçocas
para atazanar a paciência.

Cunhã-esposa, no estirão da areia
recolhe sementes
na companhia das cunhãs-filhas.
Também juntam tabatinga vermelha
para pintar o corpo
pra festa que aí vem.

O mar-baía, cinza...
O céu, cinza...
A névoa, branquidão
que oculta o bege
da areia praieira,
onde a lenha já está
distribuída enfileirada
em montes a espaços
pela extensão da enseada.

O verde renasce por trás
da brancura a se dissipar, aos poucos.
O guerreiro-pescador morubira
já sente antecipadamente
o cheiro do peixe no moqueio,
o sabor do beiju,
do peixe apimentado,
do cauim inspirador.
Seus sentidos todos despertos,
já antevê ali
seu povo em festa, cantando
e dançando feliz,
na realização de seus rituais.

Um trovão, dois, três e mais,
com um ribombar repetido e assustador ,
despertam de sua reflexão o índio.
Em um átimo, a paisagem
ganha espessas pinceladas de vermelho.
O mundo explode em sangue
diante do guerreiro: a tribo
covardemente atacada
velhos, crianças, mulheres,
                                       algumas grávidas,
atravessadas a espada, ou
já atingidas pelos tiros.

Sua família, sua tribo,
         todos
vítimas de algozes gananciosos,
sedentos por terras,
e pelas riquezas que delas
se pode extrair.
Veloz, o guerreiro tupinambá
corre destemido rumo aos seus
e ouve um trovão não, não é de Tupã!
                            Dor, insuportável dor!...
Diante de seus olhos, a última visão:
o chão e a escuridão.

O nada destruidor passou a imperar
na Enseada dos Morubiras...


Muriramba

Acolá, como pequenas e lépidas tsunamis,
os rugidos do mar-baía,
em forma de ferozes tigres
com garras e dentes espumantes
que atacam e dilaceram
a carne da indefesa falésia
da charmosa enseada do Muriramba...

Sangrando, a tabatinga vermelha
se desmancha manchando
o cremoso plasma do mar,
lavando e tingindo areias e rochas,
aos poucos deslocando as pedras da camboa,
remota lembrança ali deixada
por nossos ancestrais, pedaços
da história viva em pedras,
mixados com o fantasma dos peixes,
siris e camarões, afugentados todos
pela predatória captura industrial...

As garras e dentes espumantes
na verdade sorriem e gargalham,
         com sarcasmo
lembrando desta máxima:
                    “Àgua mole,
        em pedra dura,
          tanto bate,
                 até que fura”...

Todavia, os rugidos espumantes, ali,
não só dilaceram e arrancam pedaços,
também lambem e acariciam,
transmudando-se de rugidos
em canções, barcarolas de ninar, alimentando os devaneios
de quem vê e ouve, além de tudo o mais,
a fantasia e a beleza
de uma perenidade
            de
              vaivém e enche-vaza,
                                                   pela infinitude do devir humano...


Praia do Ariramba

O mar castiga
          os barrancos
do Ariramba
          constantemente.
As barracas
          miram o mar
e o horizonte
          apreensivamente
como se questionassem:
                            “Quando?”

O céu cinzento
às vezes manifesta
            o tácito vaticínio
sobre barrancos, barracas, árvores,
             miramares
                mirantes
como se lhes dissesse: o homem
é que consome...
   consumidor       consumador

O homem, muito mais que o mar
                                                o ar
                                                a chuva
é que consome o barranco.
Tudo some por causa
                            do homem.

          consumidor                 sumidor
          consumador                suma dor

O homem consome e some
                                     com-suma-dor.


A sucuri e São Francisco

                 A imensa sucuri
foi se arrastando
              do interior da Ilha
para o litoral,
           e seu corpo longo, pesado, cilíndrico,
deixou seu fundo rastro,
       que passou a ser
                                             caminho d’água e de canoas,
            líquida corrente escura sempre
                      deslizando sinuosamente sobre seu leito
        na direção da praia de São Francisco,
            o santo poeta, o santo ecologista...
                                         Onde estará agora, a se ocultar,
                                     tal mítico réptil?
                 Em nosso imaginário,
                                   ou no fundo escuro
              de um encantado outrora,
                                   no estuário do Rio Pará? 



No Bar Molhado

Por aqui pelo Bar Molhado,
o céu  é hoje um imenso
guarda-sol azul e branco
e a embocadura do Cajueiro
um funil líquido
na enchente
-- águas da baía
abraçadas pela ciliar mata
de mangueiros,
centenas de elevados
tentáculos contorcidos e enraizados
num tijuco cinza-cobre.

E nós dois aqui,
sem Johnny Alf,
mas com sua brisa soprando
cálida-fria, que,
em forte continuum eólico,
num átimo, em vórtice converte
em piso para nós as altas nuvens,
para contemplarmos
com olhos de garças e gaivotas
a peça encenada pela vida,
neste singular momento-luz.

Os pô- pô- pôs, na maré favorável,
desfilam lá embaixo em fluxo contínuo
pela passarela pardacenta
em veloz ir-e-vir
do comércio do pescado...

A luz rasga o ventre do céu
--o guarda-sol azul e branco--
, e uma fenda esculpida no tempo,
tal qual um mágico zíper,
se entre-abre, de relance:

em meio a uma fina névoa se dissipando,
a cena histórica se descortina:
Sim, a paragem é a mesma,
só que à esquerda
da embocadura do Cajueiro.
E Guaiy vai terminando de recolher
os peixes da camboa...

O céu, visto dali, rumo ao Carananduba,
denuncia que o dia estava
acordando, com sua suave claridade
e com as baças cores características,
despertando a natureza, preguiçosamente.
As aves, em revoadas festivas
aqui e ali... por todo lugar.

Sobre a cabeça de Guaiy
gritantes papagaios disparam
como flechas pelo ar, em busca,
certamente, de alguns pés de ingá.

O destino é, trilhando o mangue,
chegar aos companheiros da tapagem
do igarapé lá do Carananduba.
Então, ribomba com um pedaço de pau
a sapopema de uma corticeira.

Espera. Ouve a resposta companheira.
Parte na direção dela. Há boatos...
Os invasores de pele clara já chegaram...

O início do abismo sem fim chegou com eles...

O contato

Feito um talentoso malabarista,
equilibrando-se sobre
as rochas da camboa,
balaio nas costas,
lança na mão
para apanhar
os frutos do mar-baía,
espetando peixes,
coletando siris e camarões
a água embaixo
e o céu azul em cima,
o índio tupinambá
da tribo morubira
assusta-se quando
ouve os tuntuns...

Na direção dos sons,
dos porretes nas porradas
dadas nas sapopemas,
Guataçara, como flecha,
disparou ajudar o parente...

Pois algo de ruim sucedeu
com este um irmão índio
em praia próxima dali,
rumo onde o sol se levanta,
lá pela boca do Igarapé Carananduba...

O parente não flechou o peixe,
foi flechado pela arraia
o beiju hostil do fundo do rio.

Uma única lágrima doída,
porém nenhum gemido ouvido
ali naquela plaga, paisagem
onde a areia clara e a luz
        foram morar,
filhas do Céu e da Terra
(pai e mãe amorosos)
que resolveram procriar
           na Ilha do Moqueio...

Os que deveriam ser evitados,
   donos do fogo pequeno,
rodeiam o irmão, parecem cuidar dele,
aquele povo estranho,
de corpo todo coberto por panos.
Crianças, jovens, mulheres, homens,
               um com traje cor da noite,
                         cabeça raspada no cocuruto:
era o xamã dos estranhos...
Dois o levam, sustentando-o nos ombros.
Vão indo para o descampado,
lá onde habitam estes que se vestem.
Onde subiram a torre,
alta como uma siriúba,
o templo do deus deles...

Guataçara não fugiu.
Testemunhou e narrou para a tribo
tudo o que viu acontecer
ao irmão Guayí.

Três luas se passaram,
e Guayí voltou à taba
dos parentes Morubiras,
trazendo o corpo todo coberto
de panos escuros, colar no peito,
com dois paus cruzados:
estranho adorno...
Mas nada de cocar...
Trazia caixinha preta na mão,
dentro dela desenhadas aquilo
que disse ser as palavras do deus
dos que não são Morubiras.
Trouxe pequenos cacarecos
que entregou para as crianças...
No meio, pauzinhos cruzados
para pendurar no pescoço...

O fim estava se aproximando...


PELA BAÍA-DO-SOL

O caminho no Maraú

O caminhante solitário
não deixou pegadas estampadas
na areia...
Ou a chuva passou uma borracha,
ou as ondas lavaram as areias,
deixando (só-mente)
um piso liso úmido
               (para os seus sucessores),
sem rastros,
como os de um curupira sem peso
que levitasse em seu passeio,
antes de retornar para seu porto seguro:
                              Porto Max!

Nem sequer um hasta la vista!
E ainda hoje,
assim mesmo, suas pegadas
indeléveis
flutuam no espaço etéreo
de um Maraú mítico,
onde poucos conseguem
alcançar a trilha
que leve leva para seu
próprio e único
                                      Caminho de Marahú...


Maraú

As línguas dos marinhos
dragões vibram, e tão líquidas,
bailam, suavemente psicografando,
nas areias da selvagem praia do Maraú,
divulgando mensagens, vozes codificadas
de místicas ancestrais línguas indígenas, doces.

Max Martins, como um Anchieta
moderno, versifica sua imaginação
no bege macio das areias, sob um céu
às vezes nem tão inspirador, a não ser
para quem de chuva seja amante inconteste.

As escuras pedras vigiam seu passeio,
escrevilendo (com ele) o inscrito poema do vagamundo
que na praia encontra um Paraíso muito próximo dali.
As Guaribas da Ilha ora silenciam, ora em grupo guincham,
quando de longe veem o poeta se perder nos longes das distâncias,
sumindo desaparecendo dos olhos dos símios vigilantes e frustrados, tristes,
sem entender seus caminhos, novos caminhos
traçados por um trilho dele próprio,
inaceitáveis para os velhos tempos?
Ou tão respeitáveis, apenas
uma novidade
inapreciada,
até então?

Os marinhos dragões rugem,
Maaaax, Maaaaaaaaaaaaxxxxxxx,
Ma...   Ma...  Maaaaxxx...  uivos líquidos
lavam a areia e ecoam um canto/pranto
nas melancólicas tardes da solitária
enseada da praia de Mayarahú, esta
‘luz do sol ao amanhecer’, segundo os tupinambás.
Ele não volta, está em seu porto,
Porto Max, cabana de devaneios.

As pedras escuras da praia lamentam
a ausência de seu cantor, por isso
se submetem às surras das línguas
do mar: Maaaaaxx... Maaaaaxxxxxxx...

Ele já se foi... Mas estará presente, sempre
estampado na paisagem seu nome, sempre
a lembrá-lo, nas vozes a ecoar: Maaaaaxxxx....
Maaaaaxxxx, Maaaaaxxxx, Maaaaaaaaaaaa...


Instantâneos paradisíacos

A armadilha de pedras
deitada longamente
se espreguiça na enseada enevoada.
Os maçaricos em revoada
a voar povoam a paisagem praieira
ali bem próxima
da Ilha do Maracujá.

Quase geometricamente enfileiradas
e no conjunto perfeitamente encaixadas
, as pedras da camboa
semelham escuros ovos imperfeitos
, postos por esse animal gigante
a se arrastar em longa curva,
séculos atrás...

A canoa indígena aporta,
e seu tripulante tupinambá
salta imponente sobre
as seculares rochas,
cauteloso contra o possível
perigo oculto das arraias
em meio ao quase imóvel
entre a fria água e a lama cinza.

Seu reflexo duplica
na lagoa da camboa
seu poder
sobre a pouca pesca represada:
camarões, peixes, siris...

Exceto pelos maçaricos,
o único outro som que ecoa
é o do incrível silêncio,
esse silêncio que leva embora
a mim e a meu imaginário ancestral
sobre estas águas do Mar Dulce.

Na mente, estampadas
estas míticas imagens
de cartão postal antigo,
carimbos na paisagem paradisíaca:
névoa no ar, névoa no mar,
nas areias, em tudo;
nos meus olhos mareados
,
sobretudo...


O Paraíso é um acampamento em 91

                                        É noitinha ainda...
Arremesso longe a linha de pescar:
quase pesco toda a conjunção
interplanetária que no céu desenha
uma geometria triangular
Vênus, Marte, Júpiter e Saturno
derramando brilho nas águas
mornas da Baía-do-Sol,
onde me banho, à espera de
um improvável peixe fisgado
pelo meu azarado anzol canhoto.

Na verdade, a pinga já me fisgou
por completo, quase...
                                          ...me levando embora,

        ou nos calientes braços de Iemanjá           
                                                    (para o fundo das águas),
                                                    ou, quem sabe, nas asas dessa imensa
escura ave, chamada
noite de Anhangá,
       rumo aos milhares de olhos que piscam no céu...

Por trás da fogueira,
a barraca de camping
abriga os companheiros irmãos,
talvez sonhando com a Boiuna-Luna
de Macunaíma, astro flutuando
e distribuindo sua claridade
em gotas fosforescentes pingando
que nem sereno nesta praia-paraíso,
espocando no contato com as chamas
da fogueira deste improvisado acampamento.

Além dos habitantes da barraca,
também dorme um sono dos justos
a Ilha do Maracujá, logo ali e ao largo
na ilharga da praia,
um arremate no recorte da enseada,
como um barco ancorado, sempre a partir,
           e sempre a ficar,
encalhado na terra e na memória,
beleza de areia, pedras e vegetação:
um oásis para os enamorados corações.

Não vejo por aqui-agora nem Eva nem Adão,
apenas a serpente:
uma jiboia, um ofídio sem peçonha...

Inoculada em mim, sabe lá
por qual deusa ou deus,
uma outra peçonha um feitiço que me traz de volta
sempre ao Paraíso, e sua maçã
estampa-se no cartão postal
que me rodeia: são águas
                                                                                                    areias
      céu nem sempre azul com muitas nuvens
                                                                                         barracas e barrancos
                                             Ilha
                       rochas
                                                              baía
                 as canoas
                         o verde da vegetação e a casa colonial
                                                                                                     a conversa e a pinga
o dominó, o baralho
                              as caminhadas em grupo
                     a fogueira com a panela
                                                                   na lenha em brasa
                                                                                                    os banhos nas ondas a lavar
o corpo e extirpar o suor
                                              do excesso de cachaça

Foi belo o dia chuvoso,
mas a noite é encantadora...
As sombras do arvoredo dançam,
como as sombras na Caverna de Platão
a emparedar em mim um ethos ou ideário
com ares de soturnidade...

Talvez porque todos dormem,
e eu nem a garrafa me conduz
ao mundo de Morfeu...

A Lua levitando
no profundo éter noturno
geometriza no olhar
um quadro de indistinta proporção
e intangível equidistância
com a conjunção dos planetas,
astros imantados atraindo
este pescadorpoeta noctívago
banhando-se na mancha láctea
fosforescente replicada do céu
no piso líquido da baía,
esta que me traz a aromática
aragem cálida como mensagem
de uma nova vida, novo princípio...

Isso porque já amanhece o dia: a manhã beija
em brisa friazinha meu rosto insone...
As nuvens leves flutuam não só no céu,
mas muito mais em minha quase inconsciência...
Já ouço murmúrios de dentro da barraca.
Talvez agora seja o momento de levitar.
Meus pés me arrastam para fechar
os olhos e poder esquecer de quase tudo...


Dezembro, dia 8 de dezembro

Vozes seculares
sussurradas,
risos raros
,de escravos,
no bafejo da brisa da preamar,
entre um embaçado sol
e acaricia fina
de milhões de gotas vesperais
refratando 7 belas cores
de um arco-íris rejuvenecedor...

A Ilha das Pombas
é uma floresta
de verdejante vegetação
arbórea
e um oásis
de sonho e esperança
para os agrilhoados
encontrarem

com seu sonho
de Paraíso
por trás de onde
o pôr do sol
abre seus braços
de arrebol,
                    luz e nuvens

e abençoa
essa miscigenação
de ameríndios,
europeus e africanos,

enquanto a Lua
principia a pingar seus desejos
de igualdade
entre pessoas
nessa sonolenta
ilha
e
nessa doce-chuvarenta
                 Baía-do-Sol.

Praia Grande (Baía-do-Sol)

Minhas pegadas na praia
hão de quase nada durar...

Talvez antes da maré cheia,
apague-as a chuva,
a frequente chuva
da Baía-do-Sol,
que encharca não apenas
o seio da terra,
mas o coração deste escriba,
liquefazendo lembranças
de um outrora tão volátil
quanto esta tequila
que agora mesmo bebo
enquanto estas linhas
carimbam o papel,
com imaginárias mãos dadas
a caminhar de cabo a rabo,
nesta ainda agreste paisagem
da Praia Grande erma de gente,
longa enseada de saudades...

Quantos Tupinambás foram aniquilados,
para que este torrão se tornasse nosso?...
(É a arguição
                   que meu fantasma
                                              faz em direção às ondas.)

E seu bramido me responde
em meio a lamentos
e maldições
                      ininteligíveis para mim,
trôpego bêbado, perdido
entre sons, letras e sentidos.

Ah! Praia Grande...
Praia Graaande...
Graaaaaaaaaaannnndddeee...

Mergulho e me perco,
nas ondas me lavando e levando,
indo e sumindo imergindo e emergindo
no mar do sono e do sonho,
líquido fim de encantamento
em molhados braços de Morfeu e Uiara...
Ah! Praia Grande...
Praia Graaande...
Graaaaaaaaaaannnndddeee...

O vento forte da baía traz do horizonte cinzento
a chuva em chicotadas de pingos
sobre as águas e areias,
apagando quase de todo
as minhas tortuosas
pegadas...

Ah! Praia Grande...
Praia Graaande...
Graaaaaaaaaaannnndddeee...



Umas doses de nonsense


Ainda bem que
as cristas
das vagas
da vazante
guincharão
soluçando
meus espumantes
ais,
mesmo quando
meu ciclo
já houver se fechado...

Minha voz ecoará
nas areias
cuspidas pela aragem praieira,
e minhas piadas autoirônicas
, e talvez masoquistas,
rirão de mim, comigo,
sobre telhados silenciosos
de madrugadas finisseculares
                        da Ilha...

Meus olhos, os vermes
já terão saboreado há muito,
sem nunca saber
das imagens divisadas
do barco no bordejo,
contornando de longe
a Ponta do Queimado...

A pinga que bebi com amigos
na Fazendinha,
lá no Tio Joca,
há muito estará metabolizada
em suor e urina
e ressaca, nada
ficou dela em meus ossos.
Os rastros desses momentos,
estará levando-os o vento cósmico...

Nada sobrará, só sossobrará.
E o sopro desse vento derrubou-me
na água
a caneta e o papel,
onde rabisquei
isto tudo.
E entornou-me
o copo de cachaça...
Ficou-me na mão
apenas uma garrafa vazia...



DE VOLTA AO CORAÇÃO DA ILHA

Janequara: olhares para aquém e além

Já pudeste vislumbrar
a faixa arenosa
da praia de Janequara?

Ela age como uma bígama,
pois ousa trocar
com seus consortes
dois longos e
simultâneos beijos–

O beijo bege-verde
e o beijo bege-barrento
                               (ou cobreado...).

A praia se nutre
da essência da clorofila
da mata
e dos zoofictoplanctuns
do líquido fluxo
indo e vindo da Baía-do-Sol
ou do Furo das Marinhas,

       paragem esta
de cima e de longe
espionada
por olhos algodoados e azulados...

Imagine ali naquelas plagas
           uma      alma
                                                                      s o l i t á r i a
que desliza no piso
frio e macio do rio,
o remo deslocando
a montaria:

músculos, braços e mãos,
em automatismo,

enquanto os olhos
já filmam
                a verdura
das Ilhas Maruins,
absorto o pensamento
na piema
do pouco peixe,
e siri e camarão vasqueiros,
que ele está levando
para casa,

... para a casa e
               (mais ainda)
para as barrigas
                     roncando,

enquanto ao longe
um caminhão da Ricosa
na pista da ponte
Sebastião Rabelo de Oliveira,
carregando produtos
alimentícios
para o outro lado da Ilha,

onde eu,
saboreando
         uma bolacha Cream Crcker
, e sorvendo café com leite,
           deslizo a esferográfica Bic

para

, no leito destas páginas,
imprimir estas imagens
puramente ficcionais
                e
,paradoxalmente,
     nascidas da mais
           pura realidade...

Esta noite

Não pude perceber lá fora
a noite de carbono descer
em seu peso e pouso manso
e leve ruflar de asas silentes...

Pois aqui dentro, nada posso
notar do que se dissimula
sob o céu de altas estrelas
em ato sublime e cintilante
de vigiarem todas as trilhas
por esta afável Ilha a fora.

A umidade cai serenamente
sobre folhas e floresta inteira,
sobre a pelica fria e imóvel
da cobreada horizontalidade
das doces águas dos igarapés;

sobre o limo destes telhados,
não só sobre a Bucólica Ilha,
não só sobre toda a Amazônia,
mas também sobre toda a Terra.
É... a noite toma conta de tudo...

E eu insulado, no interior fechado
aqui deste meu caroço de tucumã,
sou um encantado, apenas esboço
de uma lenda em que o ostracismo
é um dos emblemas mais notórios.

A noite, a Grande Noite Lá Fora,
é bem maior e mais opressora ainda
no interior deste circunspecto peito.

Tal treva infinita é a noite universal.


Tempo que enche e vaza...

Eita! A maré já está vazando!...
Logo-logo será boa hora
para despescar os matapis.
É bom ir logo, antes das 6,
soturna hora da Ave-Maria.

O silêncio quase reina ali.
O porronca marca, em sua cinza
que vai crescendo lá no canto
da boca do caboclo ribeirinho,
o líquido tempo que deságua...

... e vaza nestas barrentas águas
(lépidas como os tralhotos),
levando galhos, sementes e folhas,
lavando o tijuco mole da beira
e também minha vida cotidana...

A monotonia da aragem calma,
fazendo bailar as altas árvores,
além do calor, cachaça, maruins,
amortecem os meus músculos,
e o leve deslizar da montaria
(de) marca o navegar das horas,
nesse ritmo de folhas paradas,
quase, e d0 vaivém dos sararás
em sua faina sobre a lama...

Mas os matapis não sobem fartos
do fundo dessa senda líquida,
confortável estrada esta minha
de onde colho o alimento incerto...
É bem verdade, por mim não semeado.

Esta vida imaginada, impressa
neste papel frente a teus olhos,
é uma forma de viver virtual,
realidade recriada, revivida,
no ritmo das águas, das marés,
chuvas,  matas entrecortadas
por sinuosas estradas líquidas,
estradas tuas e minhas, ir e vir
que representa minha própria vida...


Poetissignus


               "sob a pele das palavras há cifras e códigos" (Drummond)
            Não há luz:
                                o corpo inerte
                                está na rede
            e a mente levita
            sobre ele
                    bruxuleante,
                    vaporosa
                    como um fogo-fátuo.


Esse é o momento em que gapuio
nas poças do rio seco
as melífluas palavras,
as cintilantes sílabas,
abertos oclusivos
sonoros molhados fonemas,
que se encarnam
                          em signos quase plausíveis.


               Ao sonoro luar
               tarrafeio camarões lexicais.
               Não são graúdos,
               contudo eu os maturo nos viveiros
               à flor paradigmática
               das chuvosas tardes,
               nas encrespadas águas
               barrentas... baças
               como meus olhos já tão lassos.


É nas ociosas horas noturnas
que jogo meu anzol
nas frias águas.
Mas não possso selecionar
os peixes-signos,
                                                  pois estes
               é que se fisgam
               e fisgam-me o pensar,
que se funde à lama, às águas,
às aningas, siriúbas, sararás,
caramujos, bacuís, amurés...
surucuás, gaviões-pega-macaco...

                                           Nuvens passeiam,
                                                                        o sol dorme,
a lua acorda,
                      a viola chora...
                 o murucututu agoura...

Debulhar o açaí morfológico
                                               ou amassar a abacaba semântica
indubitavelmente não é    p a r a       m i m
                                            tarefa das mais gloriosas,



pois enraizam-se em mim
centenas de raízes de mangueiros,
entrecruzando-se como ideias
herméticas.

A canoa que chacoalha
na leve maresia é a mesma
que joga, embala-me sob
verde teto fosforescente
de folhas e frutos
sintagmáticos.

                                  O corpo inerte
                                  desperta.
                                  E a mente?
                                  Apenas reflete:

"Quão laboriosa tarefa é
                   a
           (APENAS)
tentativa de poetar".

Como conseguir partir?...
De folha em folha,
flor em flor,
em cada gota de orvalho
(em seu frescor),
por entre os insetos,
vago dia a dia...
Vejo e noto
indiferentemente
cada pequeno ser
se movendo
sobre a Terra
--e sob ela--,
no meio da folhagem,
no húmus,
nas árvores,
no Céu,
nos rios...

As nuvens
cobrem e descobrem o Sol.
Suas sombras caminham
e percebo-as
sob o azul,
assim como as gotas que caem
com suavidade
ou violência
sobre esta floresta,
enfatizando ainda mais
a cor de sua clorofila...

A faixa clara
da arenosa orla
se estica
por todo o litoral
do norte da Ilha...
E vestidos requintados
agitam-se ao vento
de mãos dadas
às bengalas e cartolas,
chegando nos vapores.
A distinção passa
a povoar estas plagas,
e meu povo
começa a partir,
não sem lutar...

Os tempos são outros
nestas atuais manhãs...
E muitas e muitas luas
navegaram
pelo negrume noturno,
tendo por testemunhas
todos os olhinhos
faiscantes de nossos
curumins e cunhantãs,
espoliados das famílias
e conduzidos lá para cima.

Todos os dias vago por aí,
sem rumor e quase sem rumo.
Não sei por quê, mas, por agora,
ainda não sou capaz de partir...

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