O estudo a seguir nasceu sugerido por uma aula de literatura medieval portuguesa, isto é, sobre o Trovadorismo (1189/98(?)-1434), cuja relevância maior recai sobre as cantigas trovadorescas, as líricas e as satíricas. Destas, destaque se dê às primeiras, que se subdividem em cantigas de amigo e cantigas de amor.
Ao fazer referência à coita de amor feminino, o sofrimento da mulher portuguesa, na constante espera(nça) pelo retorno de seu amigo (entenda-se, amado), que demora a retornar porque pode estar morto, estar ferido, ser prisioneiro, ou por ter encontrado outra donzela por quem se enamorou ― tema constante da cantiga de amigo ―, lembramos do reaproveitamento dessa temática pelas composições de música popular brasileira, entre elas algumas de Chico Buarque, de Caetano Veloso, de Rui Barata, entre outras. Daí, veio à memória a canção “Vambora”, de Adriana Calcanhoto, perfeito exemplo acerca da temática discutida, mas atualizada pela autoria feminina, fato impossível na Idade Média.
De outro lado, no decorrer da análise do texto da autora gaúcha, deparamo-nos com uma riqueza imensa de possibilidades de abordagem, embora a extensão diminuta da letra da canção. Acerca dessa riqueza, faremos nossas considerações, um tanto ao ‘correr da pena’, o que não invalida, mas, pelo contrário, enriquece a leitura por um viés subjetivo de um leitor; contudo, este leitor que pode ganhar ares de leitor plural, um eu representando um nós.
Então, a partir de comentários sobre a letra de “Vambora”, canção da compositora e cantora Adriana Calcanhoto (1965- ), tratamos de enfocar alguns problemas relativos à leitura, tais como a falta de conhecimento prévio sobre o assunto tratado, a negligência com o contexto de produção da obra, o desconhecimento de estruturas linguísticas básicas do idioma, entre outros, que dão origem a crônicos tumores no processo comunicativo, mas que geralmente são negligenciados, porque considerados simples (ou até mesmo simplistas), visto que, muitas vezes tão veementemente tratados, paradoxalmente acabam por tornar-se lugares-comuns e, talvez por causa disso, tão pouco merecedores de crédito pelo universo de leitores em geral, que não os vê como uma questão cotidiana, já que tanto desinteresse normalmente despertam. E nesse enfoque, selecionado por nós, surge a necessidade de evidenciar a relevância que a artista gaúcha dá ao intertexto.
Segue a letra da canção, para o bom entendedor, para o qual meia palavra nunca basta, já que sempre necessitará do contexto:
Vambora
Entre por essa porta agora
E diga que me adora
Você tem meia hora
Pra mudar a minha vida
Vem, vambora
Que o que você demora
É o que o tempo leva...
Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara?
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
“Dentro da noite veloz...”
Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara?
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
“Na cinza das horas”
Muito feliz a gaúcha Adriana Calcanhoto, que consegue, como bem poucos, aliar o erudito ao popular, na letra de “Vambora”, do CD Público, de 2000, com tantas outras antológicas canções, das quais citamos como exemplares “Clandestino”, “Esquadros” e “Mais feliz”. A palavra vambora, uma palavra composta (vamos + embora), nascida justamente da variante linguística coloquial-popular, tão bem pronunciada pelo povo, tornada título e empregada de forma muito adequada na canção, faz par com o uso coloquial do verbo ter (“Ainda tem o seu perfume pela casa/ Ainda tem você na sala [...] Quando tem o seu cheiro”), este escolhido adequadamente para substituir, na canção popular, o verbo haver, ou o verbo existir, ambos a denotar, de modo bem brasileiro, o sentido da existência, o estar-ali da pessoa ausente, embora isso constitua um paradoxo, mas bem elucidado pela problemática do eu-lírico feminino que presentifica o amado ausente ― coisa bem trovadoresca, bem medieval mesmo, não é? ―, pelo sentimento de amor declarado implicitamente, que o espacializa nos recintos da casa, espaço feliz; contudo, isso só se a esperança de seu retorno se concretizar, o que desperta no leitor uma conjectura:ele, muito provavelmente, não voltará...
Mas o verbo em questão (ter, na flexão do presente, 3ª. pessoa do singular, ou seja, tem) também é empregado em sua forma erudita, no sentido de ‘poder dispor’ (um, entre tantos sentidos desse verbo, cujo sentido mais usual é o de ‘possuir’, ‘gozar’ ou ‘usufruir’), como um ultimato, uma decisão final e irrevogável: “Você tem meia hora/ Pra mudar a minha vida”. A palavra ‘vambora’, lembremos também, já traz como curiosidade o fato de um de seus componentes (‘embora’) ter se formado, há muito tempo, por uma composição por aglutinação (ou seja, com alteração fonética), pois se origina da expressão “Vamos em boa hora”. Em boa hora>embora; portanto: vamos embora>vumbora/umbora/simbora/bora... Tantas transformações!... Tantos metaplasmos (terminologia mais adequada para as ‘evoluções fonéticas’)!...
Gostaria de sugerir que alguém pudesse empregar em um texto a palavra/expressão já tão usual e pouco artisticamente divulgada “Borimbora?”. Trata-se de uma espécie de reduplicação de ‘vambora’. E a mim me parece tão bela, mas... Bem, esperemos por alguém que tenha a ousadia de a empregar. Ao lado disso tudo, o estudo do texto, aqui realizado, permite-nos abordar um dado de alta relevância no que diz respeito à competência leitora, isto é, o que faz um leitor ser um leitor, e não um ledor, este decodificador que permanece na superfície textual, este meio entendedor, já que apenas chega a atingir o alcance comum da trivialidade, inepto que é, pelo menos no momento, para penetrar nas entrelinhas da trama textual.
Já o leitor, esse que adentra as vísceras e penetra no âmago da mensagem expressa ― para muito além das trivialidades com as quais se conforma o ledor ―, extrai do texto as informações, muitas vezes incompletas, e inocula no interior delas seus próprios conteúdos experenciais, o que as conforma e dá sentido ao que é lido. Por isso, um dos fatores que torna um texto possível de ser compreendido é a intertextualidade, este diálogo do autor com outros autores e com o leitor, este que se torna meio autor no processo de leitura, de interpretação mesma do texto. No entanto, aquele que é o autor, o emissor da mensagem, ou enunciador, como se queira, precisa de conhecimentos do ‘inconsciente coletivo’, conteúdos da ‘estrutura’ cultural de uma nação, para engendrar sua mensagem, que imprescindivelmente necessitará de um leitor capaz de pôr os olhos bem abertos para a compreensão inclusive das entrelinhas, como já se disse, de conteúdos implítos do texto, um leitor intertextual, viajante do espaço-tempo de sua cultura, de seus próprios processos mentais, competente para o ato de até mesmo ser cético em relação às “verdades” internas ao texto. “Duvido; logo, existo!”
Feitas estas considerações, passemos ao que interessa, o intertexto: “Dentro da noite veloz” e “Na cinza das horas”. Comecemos pelo primeiro dos dois versos : Cinza das horas (1917) é o primeiro livro de poesia de Manuel Bandeira, que abre com um poema intitulado “Epígrafe”, que segue abaixo:
Epígrafe
Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.
Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugiu como um furacão,
Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó –
Ah, que dor!
Magoado e só,
– Só! – meu coração ardeu:
Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
– Esta pouca cinza fria...
Então, o verso “Na cinza das horas” é mostra notória do conhecimento e admiração de Adriana Calcanhoto pelo Modernismo brasileiro e, mais especificamente, pela obra do poeta pernambucano Manuel Bandeira (1886-1955), além de atestar domínio pela artista de uma imagética invejável, a de que tudo se desfaz, impiedosamente, mesmo que não se queira, e só sobrevivem, para nossa imensurável angústia, os vestígios, quase imperceptíveis, do que já se foi, pelas “estradas do tempo-foi” , as horas “de angústia rouca”, consumidas, das quais só restaram ‘esta cinza fria’.
Agora, passemos ao outro verso: “Dentro da noite veloz”. Trata-se de um relativamente longo poema que dá nome ao livro de poesia Dentro da noite veloz (1975), do poeta maranhense Ferreira Gullar (1930-), dedicado ao revolucionário argentino Ernesto Che Guevara (1928-1967), um dos líderes da Revolução Cubana (1959), tematizando o dia de seu aprisionamento na selva montanhosa da Bolívia, véspera, portanto, do dia de sua execução, em Higuera (09/10/1967). Segue, abaixo, o poema:
Dentro da noite veloz
I
Na quebrada do Yuro
eram 13,30 horas
(em São Paulo
era mais tarde; em Paris anoitecera;
na Ásia o sono era seda)
Na quebrada do rio Yuro
a claridade da hora
mostrava seu fundo escuro:
as águas limpas batiam
sem passado e sem futuro.
Estalo de mato, pio
de ave, brisa
nas folhas
era silêncio o barulho
a paisagem
(que se move)
está imóvel, se move
dentro de si
(igual que uma máquina de lavar
lavando
sob o céu boliviano, a paisagem
com suas polias e correntes
de ar)
Na quebrada do Yuro
não era hora nenhuma
só pedras e águas
II
Não era hora nenhuma
até que um tiro
explode em pássaros
e animais
até que passos
vozes na água rosto nas folhas
peito ofegando
a clorofila
penetra o sangue humano
e a história
se move
a paisagem
como um trem
começa a andar
Na quebrada do Yuro eram 13,30 horas
III
Ernesto Che Guevara
teu fim está perto
não basta estar certo
para vencer a batalha
Ernesto Che Guevara
Entrega-te à prisão
não basta ter razão
pra não morrer de bala
Ernesto Che Guevara
não estejas iludido
a bala entra em teu corpo
como em qualquer bandido
Ernesto Che Guevara
por que lutas ainda?
a batalha está finda
antes que o dia acabe
Ernesto Che Guevara
é chegada a tua hora
e o povo ignora
se por ele lutavas
IV
Correm as águas do Yuro, o tiroteio agora
é mais intenso, o inimigo avança
e fecha o cerco.
Os guerrilheiros
em pequenos grupos divididos
aguentam
a luta, protegem a retirada
dos companheiros feridos.
No alto,
grandes massas de nuvens se deslocam lentamente
sobrevoando países
em direção ao Pacífico, de cabeleira azul.
Uma greve em Santiago. Chove
na Jamaica. Em Buenos Aires há sol
nas alamedas arborizadas, um general maquina um golpe.
Uma família festeja bodas de prata num trem que se aproxima
de Montevidéu. À beira da estrada
muge um boi da Swift. A Bolsa
no Rio fecha em alta
ou baixa.
Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustáquio, Ñato
castigam o avanço
dos rangers .
Urbano tomba,
Eustáquio
Che Guevara sustenta
o fogo, uma rajada o atinge, atira ainda, solve-se-lhe
o joelho, no espanto
os companheiros voltam
para apanhá-lo. É tarde. Fogem.
A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos.
V
Não está morto, só ferido
Num helicóptero iangue
é levado para Higuera
onde a morte o espera
Não morrerá das feridas
ganhas no combate
mas de mão assassina
que o abate
Não morrerá das feridas
ganhas a céu aberto
mas de um golpe escondido
ao nascer do dia
Assim o levam pra morte
(sujo de terra e de sangue)
subjugado no bojo
de um helicóptero ianque
É seu último voo
sobre a América Latina
sob o fulgir das estrelas
que nada sabem dos homens
que nada sabem do sonho,
da esperança, da alegria,
da luta surda do homem
pela flor da cada dia
É seu último voo
sobre a choupana de homens
que não sabem o que se passa
naquela noite de outubro
quem passa sobre seu teto
dentro daquele barulho
quem é levado pra morte
naquela noite noturna
VI
A noite é mais veloz nos trópicos
(com seus
monturos)
na vertigem das folhas na explosão
das águas sujas
surdas
nos pantanais
é mais veloz sob a pele da treva, na
conspiração de azuis
e vermelhos pulsando
como vaginas frutas bocas
vegetais
(confundidos nos sonhos)
ou
um ramo florido feito um relâmpago
parado sobre uma cisterna d´água
no escuro
É mais funda
a noite no sono
do homem na sua carne
de coca e de fome
e dentro do pote uma caneca
de lata velha de ervilha
da Armour Company
A noite é mais veloz nos trópicos
com seus monturos
e cassinos de jogos
entre as pernas das putas
o assalto
a mão armada
aberta em sangue a vida.
É mais veloz
(e mais demorada)
nos cárceres
a noite latino-americana
entre interrogatórios
e torturas
(lá fora as violetas)
e mais violenta (a noite)
na cona da ditadura
Sob a pele da treva, os frutos
crescem
conspira o açúcar
(de boca para baixo) debaixo
das pedras, debaixo
da palavra escrita no muro
ABAIX
e inacabada
ó Tlalhuicole
as vozes soterradas da platina
Das plumas que ondularam já não resta
mais que a lembrança
no vento
Mas é o dia (com
seus monturos)
pulsando
dentro do chão
como um pulso
apesar da South American Gold and Platinum
é a língua do dia
no azinhavre
Golpeábamos en tanto los muros de adobe
y era nuestra herencia una red de agujeros
é a língua do homem
sob a noite
no leprosário de San Pablo
nas ruínas de Tiahuanaco
nas galerias de chumbo e silicose
da Cerro de Pasço Corporation
Hemos comido grama salitrosa
piedras de adobe lagartijas ratones
tierra en polvo y gusanos
até que
(de dentro dos monturos) irrumpa
com seu bastão turquesa
VII
Súbito vimos ao mundo
E nos chamamos Ernesto
Súbito vimos ao mundo
e estamos
na América Latina
Mas a vida onde está
nos perguntamos
Nas tavernas?
nas eternas tardes tardas?
nas favelas
onde a história fede a merda?
no cinema?
na fêmea caverna de sonhos
e de urina?
ou na ingrata
faina do poema?
(a vida
que se esvai
no estuário do Prata)
Serei cantor
serei poeta?
Responde o cobre (da Anaconda Copper):
Serás assaltante
E proxeneta
Policial jagunço alcagueta
Serei pederasta e homicida?
serei o viciado?
Responde o ferro (da Bethlehem Steel):
Serás ministro de Estado
e suicida
Serei dentista?
talvez quem sabe oftalmologista?
Otorrinolaringologista?
Responde a bauxita (da Kaiser Aluminium):
serás médico aborteiro
que dá mais dinheiro
Serei um merda
quero ser um merda
Quero de fato viver.
Mas onde está essa imunda
vida – mesmo que imunda?
No hospício?
num santo
ofício?
no orifício
da bunda?
Devo mudar o mundo,
a República? A vida
terei de plantá-la
como um estandarte
em praça pública?
VIII
A vida muda como a cor dos frutos
lentamente
e para sempre
A vida muda como a flor em fruto
velozmente
A vida muda como a água em folhas
o sonho em luz elétrica
a rosa desembrulha do carbono
o pássaro da boca
mas
quando for tempo
E é tempo todo o tempo
mas
não basta um século para fazer a pétala
que um só minuto faz
ou não
mas
a vida muda
a vida muda o morto em multidão.
Mais uma vez se vê a admiração e o conhecimento de Calcanhoto em relação à poesia brasileira do Modernismo. O uso do intertexto é procedimento que se faz necessário entender com mais profundidade, quando do processo de apreensão ou fruição da canção “Vambora”, o que propicia um processo redimensionado de leitura, que se distancia da mera decodificação ou olhar superficial em relação a um texto. Pelo contrário, o leitor de Adriana Calcanhoto deve buscar ser sagaz, como ela o é, ao escolher os versos que tão bem soube explorar.
Nesse caso, temos obrigação de nos contrapor às palavras de Graham Allen: “A intertextualidade surge para nos lembrar da verdade chocante de que o que dissermos e pensarmos sempre já foi dito e pensado” . O que foi dito e pensado por Bandeira e Gullar foi redimensionado e ressignificado pela compositora gaúcha, que dignifica as palavras dos poetas, dando aos versos deles novas atualizações de sentidos, mergulhando os leitores no mar da poesia desses dois nordestinos de calibre. A poesia da música de Adriana acaba sendo uma provocação ao leitor, capaz este de fazer retomadas aos textos originais, com o fim de enriquecer o sentido da leitura que faz da canção “Vambora”, escapando assim, heroicamente, do mar abissal da trivialidade tão comum no processo de leitura cotidiana.
A ideia de polifonia , desenvolvida por Mikhail Bakhtin (1895-1975), permite-nos indicar as diversas vozes que povoam o texto de Calcanhoto, dialogando entre si e, simultaneamente, permitindo ao leitor uma cabal atribuição de sentidos: a voz do eu-lírico, que é o sujeito poético do texto ― um ser fictício, inventado pela autora ―, as vozes de Bandeira e de Gullar, percebidas claramente pela citação de seus versos, a voz da mulher pobre e camponesa da tradição Ibérica e, (por que não?) da mulher brasileira contemporânea, limitada pelas cercas da tradição patriarcal ainda vigente na atualidade.
Retomando e, além disso, desenvolvendo o que fora estabelecido por Bakhtin, Julia Kristeva (1941) diz o seguinte:
Cada palavra (texto) é uma intersecção de palavras (textos) onde pelo menos uma outra palavra (texto) pode ser lida (...) qualquer texto é construído como um mosaico de citações; qualquer texto é absorção e transformação de outro. A ideia de intertextualidade substitui a de intersubjetividade, e a linguagem poética é lida como no mínimo dupla.
A multiplicidade de sentidos povoa a leitura do texto da artista gaúcha, do começo ao fim, fenômeno proveniente do “mosaico” a que se refere Kristeva, característica comum às produções da modernidade, mas não exclusivas dessa época, pois é, na verdade, de tempos muito recuados que os autores de obras artísticas ― mas não apenas estes ―‘devoram’ seus antecessores, relendo-os e recriando uma outra obra, genuína, renovada. Não se diz, por exemplo, que o Classicismo é uma espécie de retomada de valores greco-latinos da Antiguidade Clássica? Em que consistia, então, a originalidade do artista daquela época? Se, para ele, os clássicos da Grécia e Roma já haviam ‘descoberto’ valores que seriam absolutos? Ora, caberia ao artista daquele período apenas ‘imitar’ os antigos? Não! Absolutamente!
Vejamos o que fez Michelangelo (1575-1564) ao esculpir uma de suas mais perfeitas obras, o Davi (1501): trata-se da estátua não de um pastor de ovelhas hebreu, franzino como é descrito no texto bíblico, mas de um atleta olímpico, tal a perfeição anatômica surgida do fator proporcionalidade entre a estatura, a massa muscular, a pesagem e a postura corporal do vencedor do gigante Golias. Uma obra monumental (pesa 5,5 toneladas e mede 5,16 metros de altura), que se pretendeu executada para ser eterna, segundo preceitos do ideário clássico dos antigos (Fídias, Zêuxis, Praxíteles, entre outros escultores), pelo próprio contexto do Renascimento, não poderia ser uma réplica do Davi do Velho Testamento. Primeiramente, as linguagens que configuram as obras são diferentes, já que o episódio bíblico explora a linguagem verbo-visual: visual, se lida silenciosamente; oral, se declamada em público, enquanto a escultura do gênio florentino explora a tridimensionalidade das formas e volumes talhados no mármore. Segundo, os contextos (sociais, históricos, culturais...) entre uma e outra obras são separados por uma fronteira milenar, o que impossibilita replicação. E diversos outros fatores poderiam ainda ser mencionados como causalidade diferencial entre a concepções dos dois davis.
Como se vê, é impossível a replicação de uma obra por outra , principalmente por causa da autoria. Michelangelo imprimiu à sua criação a marca da mentalidade de seu tempo e, mais que isso, de sua própria genialidade. Dentro dos limites existentes, dialogou de forma original entre os contextos (daí a ampliação do conceito de intertexto para intercontexto ) e as linguagens. Daí que o ‘leitor’, não o ledor, ressignificando e redimensionando sua leitura da obra, no ato perceptivo de entender o intertexto, os diálogos possíveis entre obras, autores, textos e contextos, seja capaz de passar ao largo da leitura trivial, do superficial das letras e linhas, e possa ser co-autor, seja partícipe desse processo de leitura do texto como leitura complementar do mundo.
E tudo isso aqui discutido por causa de uma canção de MPB, tão aparentemente despretenciosa, tudo isso por causa da autora-leitora Adriana Calcanhoto que, em sua letra simples, mas não simplista, brinda seus admiradores com uma pequena-grande canção. Que outras mais assim possa continuar compondo e cantando Adriana, para alegria geral, em nome da música, da poesia e da arte,.
Referências
ALLEN, Graham. A intertextualidade e sua “dupla” origem. In: Pátio, São Paulo, ano 4, n. 15.
BAKHTIN, Mikhail (V. N. Volochínov). A interação verbal. In: ____. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 2004.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2002.
BANDEIRA, Manuel. Epígrafe. In: ____. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 43.
CALCANHOTO, Adriana. Vambora. Intérprete: Adriana Calcanhoto. In: Público. Rio de Janeiro: Sony & BMG, 2000. 1CD, 700 (?) mb, 8ª faixa.
GULLAR, Ferreira. Dentro da noite veloz. In: ____. Toda poesia (1950-1999). 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004, p. 195-202.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 9 ed. São Paulo: Contexto, 2007.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça; BENTES, Anna Christina; CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2007.
MEURER, José Luiz. Ampliando a noção de contexto na lingüística sistêmico-funcional e na análise do discurso. Revista em (DIS)curso, v. 4, número especial, 2004.
O Blog trata de temas ligados à Ilha de Mosqueiro, mas não por isso pretende se isolar em um localismo infrutífero; em vez disso, procura inserir a Ilha como um lugar no mundo, enfatizando suas singularidades;por outro lado, também objetiva divulgar minhas reflexões sobre língua, linguagem e pensamento, literatura e artes em geral, além de assuntos diversos,sempre procurando revelar traços ideológicos nas entrelinhas do tecido textual, na tentativa de ser o mais coerente possível.
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