Aqui apresento um texto que escrevi no calor da semana anterior ao Carnaval e seu desfile oficial na ilha de Mosqueiro. Trata-se de uma percepção bem pessoal, mas que assume uma visão analítico-interpretativa de um leitor que pretende dar seu pitaco, de um ponto de vista cauteloso, ao ponto de não extrapolar os limites interpretativos, embora especule no rumo de possíveis interações com os contextos sugeridos no interior do próprio texto da letra do samba. É isso.
Primeiro, segue a letra do samba e os referidos créditos. Após, segue nossa contribuição.
COMPOSITOR: Jorge do cavaco
INTÉRPRETES: Carlinhos do Samba, Dimas Júnior, Justino e Denilson
Míticas é o meu canto de emoção
Que vai tocar os corações
Na luta em defesa do planeta
Com esperança no futuro que virá
Vamos todos preservar a terra
Ter compromisso com um mundo bem melhor
Vivendo sempre em harmonia
O homem e a natureza em perfeita relação
Preservar eis a questão
Pro futuro de outras gerações
Conservar a diversidade do planeta
Respeita e cuida sem destruição
Da Grécia berço da sabedoria
Vem pro mundo exemplo de cidadania
Liberdade com respeito e participação
Sem desigualdade social
É no poder da informação
Que vem pro mundo a transformação
O desmatamento aquece a terra
O lixo polui o rio e mar
O fogo que queima a floresta
Destrói fauna e flora sem perdão
Sou Piratas, fonte de luz que irradia
Um alerta contra devastação
Pro lindo renascer de novo
Olorum, nzambi criador do universo
Os orixás, babalorixás, babalaos relação de fé
Banthu, pinhama são vermelho e branco
Divina obra do poder da criação.
* * *
Após singrar
os Sete Mares em seus galeões imaginários, a Nação Piratiana está retornando
agora pelas águas do Rio Pará, deslizando pelas baías do Mar Dulce (de Santo
Antônio, do Marajó e do Sol) e pelo Furo das Marinhas, circunavegando nossa
querida Ilha do Mosqueiro, em meio ao balanço das grandes marés e do Carnaval
2014, aportando na passarela do samba e brindando seus brincantes e o público
em geral com o enredo Banthu e Pinhama
em perfeita relação com o Poder da Criação.
Resolveram empreender essa viagem,
não só pelos espaços, mas também pelos tempos, pelas Eras, para poderem se
nutrir de saberes e fazeres pertinentes ao tema e enredo abordados. O
propósito, em parte, é compreender por que nos tempos atuais a espécie humana,
de modo geral, pouco (ou quase nenhum) respeito demonstra em relação ao
ecossistema, e, assim, constatar que, além disso, não está se importando nem
com o futuro do planeta nem com o da Humanidade.
Outro propósito da viagem é compreender como os ancestrais de
nossa espécie pensavam a relação Humanidade-Natureza-Criador; em outras
palavras, a relação entre Deus, Ser Humano e Natureza, que na tradição
religiosa de determinadas culturas africanas, como as da nação banto, seria a
relação Olorum/Nzambi-Banthu-Pinhama:
o Poder da Criação, os Seres Humanos e os Animais, aqui a palavra tomada como
sinédoque (a parte pelo todo), representando, na verdade, toda a natureza.
Percebemos, porém, de tempos para cá, que o ser humano
ocidental fundou um modo de vida que buscou separá-lo da natureza, mas sempre
querendo transformá-la, via exploração irracional e irresponsável de seus
recursos: queimando, aterrando, desmatando, poluindo, extinguindo espécies,
levando o planeta e as comunidades humanas espalhadas pela Terra à escassez de
comida e água, ao superaquecimento, às catástrofes que surgem com as
transformações climáticas.
Na cultura religiosa dos africanos da nação banto, não há
essa separação, esse divórcio, entre seres humanos, meio ambiente e universo.
Tudo está, de fato, intimamente ligado por uma força vital e universal criadora
e unificadora, nomeada pelos sinônimos Olorum/Nzambi,
que faz com que todo o ambiente, representado aqui por Pinhama, e toda a humanidade, figurada por Banthu, comunguem de uma mesma origem e um mesmo princípio
e propósito harmonizadores.
O tema – ligado à questão ambiental– e nosso enredo – homem e
meio em harmonia entre si e também com o Criador– faz remeter panoramicamente à
Antiguidade e reconhecer indubitavelmente no pensamento dos sábios gregos as
primeiras reflexões e inquietações registradas em obras escritas, muito
pertinentes, a respeito desse futuro divórcio que caracterizará as futuras
ações impensadas do ser humano em relação ao ambiente no qual deveria se sentir
mais integrado, fato que deveria ocorrer, mas não ocorre, de modo algum, nos
tempos atuais, contexto em que a ausência de uma consciência mítica ancestral,
daqueles tempos recuados na História, muito tem prejudicado o ser humano.
Mas a USPI (Universidade de Samba Piratas da Ilha) conclama a
todos, em seu enredo e samba, um retorno a esse modo de vida, a esse ciclo
ancestral, no qual um consórcio perfeito e total do ser humano com a natureza
pode ser um anseio a ser concretizado. E é pela fé nos Orixás (Ogum, Oxum,
Xangô etc.), que simbolicamente representam as forças da natureza e fazem o
intermédio entre o plano físico e o espiritual, com a ajuda dos babalorixás e
babalaôs (os sacerdotes), que todos nós podemos despertar para uma consciência
ecológica de caráter mais pleno e ético.
Esta época contemporânea endeusa a ciência e a tecnologia,
que pouco valem sem a consciência ambiental. Todo o conhecimento produzido,
todas as invenções, inclusive a cura para tantas doenças, todas as riquezas
acumuladas e que causam a desigualdade social, tudo isso e mais o que se possa
imaginar, de nada valerão em um futuro sem futuro, de Terra devastada e doente.
Por isso, a informação deverá privilegiar uma consciência cidadã, para reservar,
preservar e conservar a diversidade em um planeta que é, verdadeiramente, nosso
lar.
E não só de informação se precisa; precisa-se também de
formação da consciência crítica para se vencer esta “luta em defesa do
planeta/com esperança no futuro que virá”. Por isso Os Piratas da Ilha estão na avenida para divulgar pela música, pelo
canto e pela dança “Um alerta contra a devastação/ Pro lindo renascer de novo”.
Assim, é preciso sedimentar no coração do povo que lutar por um futuro melhor é
preciso. É preciso preservar, para as gerações que virão, um planeta saudável
para se viver, uma plenitude de vida e de felicidade duradoura que é possível,
se lutarmos agora para trazer de volta uma relação homem e natureza mais
harmônica.
E é aí que nossa herança afrodescendente pode fazer a
diferença, pois no pensamento religioso banto o elemento Homem é visto como
parte integrante da Natureza e obra (como esta, também) da Criação. Preservando
a Mãe Natureza, estaremos agindo em conformidade com a Ética e respeitando o Criador.
E estamos deixando hoje uma herança fecunda para as gerações futuras, que nos
verão com um olhar benévolo, pois estarão lá na frente nos agradecendo pelo
belo planeta que herdaram de nós.