SEVCENKO, Nicolau. No princípio era o
ritmo: as raízes xamânicas da narrativa. In: RIEDEL, Dirce Côrtes (org.). Narrativa: ficção e história. Rio de
Janeiro: Imago (coleção Tempo e Saber), 1988, p. 120-135.
Resenhista: Alcir de Vasconcelos Alvarez
Rodrigues[1]
Nicolau Sevcenko
(1952-2014) é um historiador brasileiro, nascido em uma família de imigrantes
ucranianos. Foi eminente pesquisador da história e da cultura brasileiras, focando em especial, em seus estudos, o
desenvolvimento e modernização das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, na
época da República Velha, dos fins do século XIX aos começos do XX. Na verdade,
a amplitude de temáticas e a abordagem teórica na produção intelectual de
Sevcenko são difíceis de se abordar em um trabalho de natureza curta como este.
Entre as diversas obras por ele publicadas, destacam-se A revolta da vacina (1983),
Orfeu extático na metrópole: São Paulo nos frementes anos 20 (1992), A corrida
para o séc. 21: no loop da montanha-russa (2001)
e Literatura
como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República (2003); também organizou o livro História da
vida privada no Brasil: da belle époque à era do rádio (1998), todas publicadas pela
Companhia das Letras. Concluiu doutorado em História Social pela USP e
pós-doutorado em História da Cultura pela London University, onde teve contato
pessoal com Eric Hobsbawm (1917-2012). Além de lecionar e desenvolver pesquisas
na USP, trabalhou na PUC-SP e Unicamp, também em renomadas universidades estrangeiras,
entre elas a Harvard University.
O texto de Nicolau
Sevcenko “No princípio era o ritmo: as raízes xamânicas da narrativa” faz parte
do livro Narrativa: ficção e
história, organizado por Dirce Côrtes Riedel, de 1988, livro-coletânea,
resultado de colóquio homônimo que foi promovido pelo setor de Literatura do
Departamento VI do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) e realizado em 25, 26 e 27 de novembro de 1987; portanto, um ano
antes da publicação do volume coletivo com matéria oriunda desse Colóquio.
Alguns eminentes autores, participantes do evento, também publicaram seus
estudos no livro em questão. Entre estes, além de Nicolau Sevcenko, estão Luiz
Costa Lima, Benedito Nunes, José Miguel Wisnik, Silviano Santiago, entre
outros.
Fato curioso é que
Dirce Côrtes Riedel organiza o livro, mas nele não tem texto publicado. Curioso
também é o modo como se apresentam os textos: primeiramente, a Exposição de cada pesquisador; em
segundo lugar, um Comentário à
Exposição, feito por outro pesquisador; e, por último, um Debate entre pesquisadores, inclusive os responsáveis pela Exposição e pelo Comentário. No caso do texto em questão, temos o seguinte: Exposição: “No princípio era o ritmo: as
raízes xamânicas da narrativa”, de Nicolau Sevcenko (pág. 120 até 136); Comentário: “A narrativa em questão”, de
Francisco Iglésias (pág. 137 até 149); e Debate:
dele participando os seguintes pesquisadores: Francisco Iglésias, Nicolau
Sevcenko, Luis Eduardo Soares, Bento Prado Jr., Benedito Nunes, Luiz Costa
Lima, Silviano Santiago e José Américo Pessanha (pág. 150 até 169).
Não se pode afirmar que
a área de interesse traçada nas linhas no estudo de Sevcenko seja restrita ou
única, já que no mínimo, a priori,
estaria ligada à Literatura e à História. Mas ainda aqui a ideia é de
restrição, já que o interesse, na verdade, é múltiplo: interessa, também, tanto
à Antropologia (principalmente no ramo da Etnologia), Linguística e Semiótica como
às Ciências da Arte e às Ciências da Religião; e como não ligar este interesse
também à Filosofia e à Sociologia? E como não considerar aquele ramo da
Geografia denominado de Geografia Humana também interessado no tema estudado? E
o que dizer em relação aos parâmetros interdisciplinares dos Estudos Culturais?
De fato, poderíamos supor um raciocínio por um caminho inverso: se as
narrativas histórica e ficcional estão diretamente vinculadas ao xamanismo dos
primórdios da humanidade, a quais áreas do conhecimento, na contemporaneidade,
não interessariam os assuntos abordados pelo autor em seu texto?
O autor deixa bem
explícito seu propósito, ao afirmar que as formas acabadas do que são hoje a ficção
e a História têm origem comum, ou seja, ambas são advindas das práticas
ancestrais xamânicas da era paleolítica. A partir daí, o que quer que aproxime
ou distancie, na contemporaneidade, os dois tipos de discursos, deve levar em
conta o que ocorreu milhares de anos atrás, naqueles tempos primordiais entre a
ancestralidade nômade e o sedentarismo, as transformações por que passou aquela
humanidade nascente, suas formas de relacionamento social, entre elas a prática
da caça e da alimentação coletiva, extremamente necessárias à sobrevivência dos
grupos, para a qual surgia a necessidade de liderança e formas de constituí-la,
o que nos conduz às práticas xamânicas, seus rituais, sua linguagem, sua maneira
de ajudar a guiar o clã no rumo de um futuro de sobrevivência mais promissora.
No texto, logo de
início, Sevcenko presta esclarecimentos sobre como será sua Exposição, qual o propósito que quer
alcançar: discutir a História e a Ficção em suas origens xamânicas, vinculando
ambas à dependência do ritmo na prática ritual. Para o autor, a discussão pode
levar a uma melhor compreensão do significado das narrativas e dos seres
humanos que as produziram e que relação mantêm com suas comunidades, revelando
a importância da memória e do poder mágico das narrativas. O estudioso dá
relevo ao contexto de produção da narrativa: o lugar de onde se pronuncia, quem
a pronuncia, os signos envolvidos na situação e tudo o mais relacionado às transformações
que foram descambar nos gêneros narrativos atuais.
Se o texto inicia na
página 120, de fato a Exposição,
propriamente dita, inicia na 121, quando o autor diz que “gostaria de ler a
epígrafe do trabalho”, e a lê. A partir daí, inicia referindo pesquisas da
paleolaringologia, que considera mais tardias do que comumente se pensava as
possibilidades anatômicas da fala, só a partir do homo erectus (entre 500.000 ou 400.000 anos atrás), causadas por
transformações no crânio e na laringe de nossos ancestrais. Sem poder respirar
enquanto se alimentam, tal ato cotidiano torna-se demorado, expondo-os aos
ataques de predadores, o que passa a exigir transporte do alimento e estocagem
até o local adequado para a ingestão em grupo (“por questões de segurança” (p.
122)), fato estimulador de interações sociais, desenvolvendo-se, a partir daí,
um sistema mais complexo de ações comunicativas.
Antes de se chegar a
esse estágio, o período pré-linguístico é calculado como iniciado há dois
milhões de anos, remontando ao australopitecos, como referência fundamental de
ancestralidade hominídea mais remota, recuando há mais ou menos dez milhões de
anos, no caso de se considerarem os primatas (daquela era remota) como nossos
ancestrais. Mas só com o erectus a
linguagem (semelhantemente a que conhecemos hoje) passaria a rivalizar com os
sinais usados na prática da comunicação pré-linguística. Já se observa no erectus, pelos seus utensílios, um gosto
pela simetria, por uma harmonia a partir de padrões, origem do ritmo,
sinalizadora de uma nascente ordem social mais complexa.
Cem mil anos atrás,
durante certo período glacial, surge o Neanderthal, que se confrontaria mais
tarde com o homo sapiens (denominado
também de Cro-Magnon), pertencentes ambos à mesma linhagem. Tendo que se
adaptar às intempéries, as espécies refinaram os modos de sobreviver, transformaram-se,
no que diz respeito às práticas sociais. Desse período vêm
[...] as primeiras evidências de
práticas cerimoniais, cultos mortuários, crenças na vida após a morte e do que
já se pode denominar, formas abstratas de arte, no sentido de formas de
simbolização e estilização. Nada disso seria possível sem a base de uma
linguagem articulada muito desenvolvida. Para além dos ritmos simétricos, a
linguagem se liga agora ao mito e à arte (SEVCENKO, 1988, p. 123).
Nesse segmento de seu
estudo o historiador não dá pistas do desaparecimento do Neanderthal. Como
leitores críticos, podemos apontar hipóteses: pode ter sido extinto na
competição com o sapiens (que ele
chama de Cro-Magnon), pode ter se miscigenado com este, ou pode não ter se
adaptado às mudanças climáticas. O certo é que cabe ao Cro-Magnon a primazia do
desenvolvimento de uma arte rupestre refinada, testemunha de um período em que
nossa ancestralidade dava passos em direção a uma complexa organização social,
moldada em um esforço coletivo de caça, que era motivo de representações
pictóricas em grutas, de grande variedade e carregadas de valores ligados à
“identidade, transcendência e imortalidade” (p. 123). Essas representações não
têm como função embelezar os paredões, mas estão ligadas a práticas cerimoniais
e rituais, o que nos dá a medida das preocupações que começam a ser despertadas,
além das que somente remetem ao duro cotidiano de sobrevivência do grupo.
Se para o evangelista
João, “No princípio era o Verbo”, para Sevcenko, “No princípio era o ritmo”. Mas
João se refere ao princípio do mundo, enquanto Sevcenko refere-se aos primórdios
da narrativa, a partir do ritmo, quando o xamã exerce uma espécie de liderança
que unifica o grupo socialmente, alimentando-o no sentido da prática da
interação entre indivíduos dentro de suas famílias e as famílias interagindo no
grupo, naquela já espécie de comunidade primordial. O estudioso, para melhor
situar-se, busca o exemplo de uma pintura rupestre encontrada na gruta de Trois Frères (Três Irmãos, em português),
localizada nos Pirineus Franceses, que recebeu tal denominação em decorrência
de ter sua entrada descoberta por três irmãos pastores, em 1914. A pintura
parietal representa um xamã do paleolítico superior, com características
zooantropomórficas (ou seja, meio humano, meio animal). Sevcenko descreve muito
bem essa pintura: localização exata na gruta, como encontrá-la, as características
físicas, como traços híbridos de diversos animais. O autor faz uma longa
descrição da figura desse “feiticeiro”, minuciosamente, refletindo sobre o
porquê da localização remota na gruta, de sua postura inclinada, da razão de
ser dessa representação enigmática. Consideramos esta a parte fulcral de sua
explanação, quando apresenta, de fato, sua tese sobre a narrativa ser oriunda
das práticas xamânicas do paleolítico.
A partir daqui,
passamos a simplesmente levantar alguns pontos que consideramos relevantes no
texto de Sevcenko, sem preocupações maiores com a ordem em que aparecem na Exposição. Por exemplo, o autor
refere-se à pintura rupestre como “arte”, por causa justamente de seu propósito
não de exposição, mas de uso mágico, para tornar mais fácil a caçada. Essa
função mágica já é referida por Arnold Hauser:
O caçador e o pintor da era
paleolítica supunham encontrar-se na posse do próprio objeto desde que
possuíssem a sua imagem; julgavam adquirir poder sobre o objeto [o animal] por
intermédio de sua representação. Acreditavam que o animal verdadeiro sofria, no
mesmo preciso momento, a morte do retratado em efígie (HAUSER, apud BRASIL,
Assis, p. 178)[2].
O
xamã, no ato ritualístico de narrar histórias ̶ “Histórias tradicionais, intemporais,
eternas: histórias das origens, mitos”, p. 126 ̶ , também canta e de dança; por isso, diz-se
que é performático. E presidindo a todas as suas ações está o ritmo, que está
associado ao pulsar do coração, tendo sua dispersão por meio da batida dos instrumentos
de percussão. O andamento inicia por um compasso lento, aligeira-se conforme a performance do feiticeiro e dirige-se a
um ápice, já em um andamento rapidíssimo, deixando em êxtase não só o xamã, mas
todos ao redor. É esse ritmo que desnorteia os animais quando acuados em uma
caçada, tornando-os presas fáceis ao caçador, que também servia como motivação
aos soldados na frente de combate, no ato de enfrentamento ao inimigo na
batalha.
Para
Sevcenko: “A narrativa é uma performance integral, desencadeada e centrada pelo
xamã, ela se torna comunitária; sendo coletiva, se torna irresistível. A
narrativa não é uma exposição do assunto, é o modo supremo da experiência da
vida” (p. 126). Aprumado com essas ideias, Walter Benjamin faz uma crítica a
essa perda por parte do narrador em relação a essa qualidade de ser capaz de
contar bem uma história, o que, segundo o pensador alemão, vem ocorrendo
sistematicamente a partir do século XX[3].
Por
algum motivo, quem quiser amplificar o entendimento do ensaio de Sevcenko, pode
também ater-se ao Comentário que se
segue ao texto, de autoria de Francisco Iglésias, no qual o leitor já
encontrará resenhado o conteúdo e as formas de abordagem eleitas pelo historiador
e professor da USP. Também pode ler, em seguida, o Debate, transcrito por Carlos Ernesto Nascimento Silva − que fez o
mesmo com todos os demais debates do Colóquio−, com participação dos estudiosos
já mencionados anteriormente, tendo aí possibilidades de contrapontos às ideias
do historiador, mas também encontrará redimensionamentos de leitura, novas
possibilidades de pormenorização e aprofundamento de ideias, inclusive com
Sevcenko participando da discussão.
Em
seu Comentário, Iglésias tece
elogios, mas também apresenta críticas ao texto “No princípio era o ritmo...”:
Nele se evidenciam mais uma vez
as qualidades do jovem historiador da Universidade de São Paulo, afirmadas em
obras anteriores: enorme erudição, originalidade de enfoque, proposições
instigantes. Aqui, como em outras obras suas, ele nada tem de convencional.
Saber erudito e saber culto (sic!), para usar a conhecida colocação de Max
Scheler na conferência “O saber e a cultura (IGLÉSIAS, Francisco. In: RIEDEL, Dirce
Côrtes, opus citatum, p.178).
Embora
seja elogioso em certos aspectos, em outros, acaba apresentando contrapontos,
como neste caso:
Se concordarmos com o seu texto,
pode-se questioná-lo: por que o autor escolheu este caminho e não outro? Sendo,
entre os expositores, o único que é profissionalmente dedicado à História,
detém-se no problema de origem da narrativa, mas não o analisa, tal como se
apresenta, sobretudo, na História. O fato é que o autor se dedica, em mais da
metade de suas páginas, a um universo que descobre a narrativa e a realiza como
pintura, canto, dança, não como exposição. Em sentido rigoroso, detém-se na
narrativa da pré-história, tal como esta é didaticamente concebida. Até aí,
deve estar correto, mas o certo é que, com esse procedimento, não enfrenta o
tema como é proposto no seminário que deseja a análise da narrativa como história e ficção (Idem, ibidem, p. 138 e 139. Grifos nossos).
No
entanto, o próprio autor defende-se, no Debate,
afirmando que não tentou escapar ao tema do Colóquio. E, se deslocou seu texto
para a Pré-História, ele o fez intencionalmente, pois é um longo e essencial
período que − muitas vezes por puro preconceito histórico, zeloso somente pelo
que há de registro escrito − acaba sendo menosprezado por estudiosos que só
valorizam a cultura escriptocentrista e considerada oficial, justamente por ser
hegemônica.
É
nessa perspectiva que se pode entender como o prestígio inicial do xamã e, mais
tarde, dos poetas e dos profetas (herdeiros das práticas xamânicas) entrou em
período de declínio, pelo menos no Ocidente. Já que o discurso controlado de
uma sociedade sedentária, entrando em processo de originar a divisão de
trabalho e as classes sociais, passa a restringir a atuação dos xamãs, dando
prestígio somente às religiões oficiais do Estado, o que acaba sendo decidido
pela classe governante e elitizada; já as religiões ligadas a práticas rituais
consideradas “primitivas”, ou de possessão, são relegadas a plano inferior e
discriminadas, como acontece comumente com o candomblé, a umbanda e (por que
não?) com a pajelança.
O leitor de “No princípio
era o ritmo...” põe-se diante de um texto instigante e, ainda, atual, pois
levanta questões e discute ideias ainda em pauta na atualidade. E Sevcenko
apresenta-se como estudioso de grande perspicácia e até mesmo ousadia, que não
teme nem polêmica nem discordância, já que, nesse ponto, acaba-se tendo um
alavancamento que gera avanço na área, pois propõe uma discussão séria, e não
gratuita; por isso, capaz de distanciar as pesquisas e publicações do risco da
mediocridade e da vaidade intelectual, tão nocivas estas aos estudos dentro da
academia e, por ricochete, ao desenvolvimento do conhecimento científico.
[1]
Doutorando em Letras – Estudos Literários, pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará,
professor da SEDUC/PA e SEMEC/Belém. E-mail:
ay21a@yahoo.com.br.
[2] Vide BRASIL, Assis. Arte e origem. In:
____ . Dicionário do conhecimento
estético. Rio de Janeiro: Ed. Tecnoprint, 1984.
[3] Vide BENJAMIN, Walter. O narrador.
Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Ruanet. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 197-221.
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Acesso em: 12/03/2016.
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Acesso em: 12/03/2016.
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Acesso em: 12/03/2016.
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