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sábado, 12 de março de 2016

RESENHA CRÍTICA: No princípio era o ritmo: as raízes xamânicas da narrativa

SEVCENKO, Nicolau. No princípio era o ritmo: as raízes xamânicas da narrativa. In: RIEDEL, Dirce Côrtes (org.). Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro: Imago (coleção Tempo e Saber), 1988, p. 120-135.

Resenhista: Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues[1]

Nicolau Sevcenko (1952-2014) é um historiador brasileiro, nascido em uma família de imigrantes ucranianos. Foi eminente pesquisador da história e da cultura brasileiras, focando em especial, em seus estudos, o desenvolvimento e modernização das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, na época da República Velha, dos fins do século XIX aos começos do XX. Na verdade, a amplitude de temáticas e a abordagem teórica na produção intelectual de Sevcenko são difíceis de se abordar em um trabalho de natureza curta como este. Entre as diversas obras por ele publicadas, destacam-se A revolta da vacina (1983), Orfeu extático na metrópole: São Paulo nos frementes anos 20 (1992), A corrida para o séc. 21: no loop da montanha-russa (2001) e Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República (2003); também organizou o livro História da vida privada no Brasil: da belle époque à era do rádio (1998), todas publicadas pela Companhia das Letras. Concluiu doutorado em História Social pela USP e pós-doutorado em História da Cultura pela London University, onde teve contato pessoal com Eric Hobsbawm (1917-2012). Além de lecionar e desenvolver pesquisas na USP, trabalhou na PUC-SP e Unicamp, também em renomadas universidades estrangeiras, entre elas a Harvard University.
O texto de Nicolau Sevcenko “No princípio era o ritmo: as raízes xamânicas da narrativa” faz parte do livro Narrativa: ficção e história, organizado por Dirce Côrtes Riedel, de 1988, livro-coletânea, resultado de colóquio homônimo que foi promovido pelo setor de Literatura do Departamento VI do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e realizado em 25, 26 e 27 de novembro de 1987; portanto, um ano antes da publicação do volume coletivo com matéria oriunda desse Colóquio. Alguns eminentes autores, participantes do evento, também publicaram seus estudos no livro em questão. Entre estes, além de Nicolau Sevcenko, estão Luiz Costa Lima, Benedito Nunes, José Miguel Wisnik, Silviano Santiago, entre outros.
Fato curioso é que Dirce Côrtes Riedel organiza o livro, mas nele não tem texto publicado. Curioso também é o modo como se apresentam os textos: primeiramente, a Exposição de cada pesquisador; em segundo lugar, um Comentário à Exposição, feito por outro pesquisador; e, por último, um Debate entre pesquisadores, inclusive os responsáveis pela Exposição e pelo Comentário. No caso do texto em questão, temos o seguinte: Exposição: “No princípio era o ritmo: as raízes xamânicas da narrativa”, de Nicolau Sevcenko (pág. 120 até 136); Comentário: “A narrativa em questão”, de Francisco Iglésias (pág. 137 até 149); e Debate: dele participando os seguintes pesquisadores: Francisco Iglésias, Nicolau Sevcenko, Luis Eduardo Soares, Bento Prado Jr., Benedito Nunes, Luiz Costa Lima, Silviano Santiago e José Américo Pessanha (pág. 150 até 169).
Não se pode afirmar que a área de interesse traçada nas linhas no estudo de Sevcenko seja restrita ou única, já que no mínimo, a priori, estaria ligada à Literatura e à História. Mas ainda aqui a ideia é de restrição, já que o interesse, na verdade, é múltiplo: interessa, também, tanto à Antropologia (principalmente no ramo da Etnologia), Linguística e Semiótica como às Ciências da Arte e às Ciências da Religião; e como não ligar este interesse também à Filosofia e à Sociologia? E como não considerar aquele ramo da Geografia denominado de Geografia Humana também interessado no tema estudado? E o que dizer em relação aos parâmetros interdisciplinares dos Estudos Culturais? De fato, poderíamos supor um raciocínio por um caminho inverso: se as narrativas histórica e ficcional estão diretamente vinculadas ao xamanismo dos primórdios da humanidade, a quais áreas do conhecimento, na contemporaneidade, não interessariam os assuntos abordados pelo autor em seu texto?
O autor deixa bem explícito seu propósito, ao afirmar que as formas acabadas do que são hoje a ficção e a História têm origem comum, ou seja, ambas são advindas das práticas ancestrais xamânicas da era paleolítica. A partir daí, o que quer que aproxime ou distancie, na contemporaneidade, os dois tipos de discursos, deve levar em conta o que ocorreu milhares de anos atrás, naqueles tempos primordiais entre a ancestralidade nômade e o sedentarismo, as transformações por que passou aquela humanidade nascente, suas formas de relacionamento social, entre elas a prática da caça e da alimentação coletiva, extremamente necessárias à sobrevivência dos grupos, para a qual surgia a necessidade de liderança e formas de constituí-la, o que nos conduz às práticas xamânicas, seus rituais, sua linguagem, sua maneira de ajudar a guiar o clã no rumo de um futuro de sobrevivência mais promissora.
No texto, logo de início, Sevcenko presta esclarecimentos sobre como será sua Exposição, qual o propósito que quer alcançar: discutir a História e a Ficção em suas origens xamânicas, vinculando ambas à dependência do ritmo na prática ritual. Para o autor, a discussão pode levar a uma melhor compreensão do significado das narrativas e dos seres humanos que as produziram e que relação mantêm com suas comunidades, revelando a importância da memória e do poder mágico das narrativas. O estudioso dá relevo ao contexto de produção da narrativa: o lugar de onde se pronuncia, quem a pronuncia, os signos envolvidos na situação e tudo o mais relacionado às transformações que foram descambar nos gêneros narrativos atuais.
Se o texto inicia na página 120, de fato a Exposição, propriamente dita, inicia na 121, quando o autor diz que “gostaria de ler a epígrafe do trabalho”, e a lê. A partir daí, inicia referindo pesquisas da paleolaringologia, que considera mais tardias do que comumente se pensava as possibilidades anatômicas da fala, só a partir do homo erectus (entre 500.000 ou 400.000 anos atrás), causadas por transformações no crânio e na laringe de nossos ancestrais. Sem poder respirar enquanto se alimentam, tal ato cotidiano torna-se demorado, expondo-os aos ataques de predadores, o que passa a exigir transporte do alimento e estocagem até o local adequado para a ingestão em grupo (“por questões de segurança” (p. 122)), fato estimulador de interações sociais, desenvolvendo-se, a partir daí, um sistema mais complexo de ações comunicativas.
Antes de se chegar a esse estágio, o período pré-linguístico é calculado como iniciado há dois milhões de anos, remontando ao australopitecos, como referência fundamental de ancestralidade hominídea mais remota, recuando há mais ou menos dez milhões de anos, no caso de se considerarem os primatas (daquela era remota) como nossos ancestrais. Mas só com o erectus a linguagem (semelhantemente a que conhecemos hoje) passaria a rivalizar com os sinais usados na prática da comunicação pré-linguística. Já se observa no erectus, pelos seus utensílios, um gosto pela simetria, por uma harmonia a partir de padrões, origem do ritmo, sinalizadora de uma nascente ordem social mais complexa.
Cem mil anos atrás, durante certo período glacial, surge o Neanderthal, que se confrontaria mais tarde com o homo sapiens (denominado também de Cro-Magnon), pertencentes ambos à mesma linhagem. Tendo que se adaptar às intempéries, as espécies refinaram os modos de sobreviver, transformaram-se, no que diz respeito às práticas sociais. Desse período vêm

[...] as primeiras evidências de práticas cerimoniais, cultos mortuários, crenças na vida após a morte e do que já se pode denominar, formas abstratas de arte, no sentido de formas de simbolização e estilização. Nada disso seria possível sem a base de uma linguagem articulada muito desenvolvida. Para além dos ritmos simétricos, a linguagem se liga agora ao mito e à arte (SEVCENKO, 1988, p. 123).

Nesse segmento de seu estudo o historiador não dá pistas do desaparecimento do Neanderthal. Como leitores críticos, podemos apontar hipóteses: pode ter sido extinto na competição com o sapiens (que ele chama de Cro-Magnon), pode ter se miscigenado com este, ou pode não ter se adaptado às mudanças climáticas. O certo é que cabe ao Cro-Magnon a primazia do desenvolvimento de uma arte rupestre refinada, testemunha de um período em que nossa ancestralidade dava passos em direção a uma complexa organização social, moldada em um esforço coletivo de caça, que era motivo de representações pictóricas em grutas, de grande variedade e carregadas de valores ligados à “identidade, transcendência e imortalidade” (p. 123). Essas representações não têm como função embelezar os paredões, mas estão ligadas a práticas cerimoniais e rituais, o que nos dá a medida das preocupações que começam a ser despertadas, além das que somente remetem ao duro cotidiano de sobrevivência do grupo.
Se para o evangelista João, “No princípio era o Verbo”, para Sevcenko, “No princípio era o ritmo”. Mas João se refere ao princípio do mundo, enquanto Sevcenko refere-se aos primórdios da narrativa, a partir do ritmo, quando o xamã exerce uma espécie de liderança que unifica o grupo socialmente, alimentando-o no sentido da prática da interação entre indivíduos dentro de suas famílias e as famílias interagindo no grupo, naquela já espécie de comunidade primordial. O estudioso, para melhor situar-se, busca o exemplo de uma pintura rupestre encontrada na gruta de Trois Frères (Três Irmãos, em português), localizada nos Pirineus Franceses, que recebeu tal denominação em decorrência de ter sua entrada descoberta por três irmãos pastores, em 1914. A pintura parietal representa um xamã do paleolítico superior, com características zooantropomórficas (ou seja, meio humano, meio animal). Sevcenko descreve muito bem essa pintura: localização exata na gruta, como encontrá-la, as características físicas, como traços híbridos de diversos animais. O autor faz uma longa descrição da figura desse “feiticeiro”, minuciosamente, refletindo sobre o porquê da localização remota na gruta, de sua postura inclinada, da razão de ser dessa representação enigmática. Consideramos esta a parte fulcral de sua explanação, quando apresenta, de fato, sua tese sobre a narrativa ser oriunda das práticas xamânicas do paleolítico.
A partir daqui, passamos a simplesmente levantar alguns pontos que consideramos relevantes no texto de Sevcenko, sem preocupações maiores com a ordem em que aparecem na Exposição. Por exemplo, o autor refere-se à pintura rupestre como “arte”, por causa justamente de seu propósito não de exposição, mas de uso mágico, para tornar mais fácil a caçada. Essa função mágica já é referida por Arnold Hauser:

O caçador e o pintor da era paleolítica supunham encontrar-se na posse do próprio objeto desde que possuíssem a sua imagem; julgavam adquirir poder sobre o objeto [o animal] por intermédio de sua representação. Acreditavam que o animal verdadeiro sofria, no mesmo preciso momento, a morte do retratado em efígie (HAUSER, apud BRASIL, Assis, p. 178)[2].


            O xamã, no ato ritualístico de narrar histórias  ̶ “Histórias tradicionais, intemporais, eternas: histórias das origens, mitos”, p. 126  ̶ , também canta e de dança; por isso, diz-se que é performático. E presidindo a todas as suas ações está o ritmo, que está associado ao pulsar do coração, tendo sua dispersão por meio da batida dos instrumentos de percussão. O andamento inicia por um compasso lento, aligeira-se conforme a performance do feiticeiro e dirige-se a um ápice, já em um andamento rapidíssimo, deixando em êxtase não só o xamã, mas todos ao redor. É esse ritmo que desnorteia os animais quando acuados em uma caçada, tornando-os presas fáceis ao caçador, que também servia como motivação aos soldados na frente de combate, no ato de enfrentamento ao inimigo na batalha.
            Para Sevcenko: “A narrativa é uma performance integral, desencadeada e centrada pelo xamã, ela se torna comunitária; sendo coletiva, se torna irresistível. A narrativa não é uma exposição do assunto, é o modo supremo da experiência da vida” (p. 126). Aprumado com essas ideias, Walter Benjamin faz uma crítica a essa perda por parte do narrador em relação a essa qualidade de ser capaz de contar bem uma história, o que, segundo o pensador alemão, vem ocorrendo sistematicamente a partir do século XX[3].
            Por algum motivo, quem quiser amplificar o entendimento do ensaio de Sevcenko, pode também ater-se ao Comentário que se segue ao texto, de autoria de Francisco Iglésias, no qual o leitor já encontrará resenhado o conteúdo e as formas de abordagem eleitas pelo historiador e professor da USP. Também pode ler, em seguida, o Debate, transcrito por Carlos Ernesto Nascimento Silva − que fez o mesmo com todos os demais debates do Colóquio−, com participação dos estudiosos já mencionados anteriormente, tendo aí possibilidades de contrapontos às ideias do historiador, mas também encontrará redimensionamentos de leitura, novas possibilidades de pormenorização e aprofundamento de ideias, inclusive com Sevcenko participando da discussão.
            Em seu Comentário, Iglésias tece elogios, mas também apresenta críticas ao texto “No princípio era o ritmo...”:

Nele se evidenciam mais uma vez as qualidades do jovem historiador da Universidade de São Paulo, afirmadas em obras anteriores: enorme erudição, originalidade de enfoque, proposições instigantes. Aqui, como em outras obras suas, ele nada tem de convencional. Saber erudito e saber culto (sic!), para usar a conhecida colocação de Max Scheler na conferência “O saber e a cultura (IGLÉSIAS, Francisco. In: RIEDEL, Dirce Côrtes, opus citatum, p.178).
 
            Embora seja elogioso em certos aspectos, em outros, acaba apresentando contrapontos, como neste caso:

Se concordarmos com o seu texto, pode-se questioná-lo: por que o autor escolheu este caminho e não outro? Sendo, entre os expositores, o único que é profissionalmente dedicado à História, detém-se no problema de origem da narrativa, mas não o analisa, tal como se apresenta, sobretudo, na História. O fato é que o autor se dedica, em mais da metade de suas páginas, a um universo que descobre a narrativa e a realiza como pintura, canto, dança, não como exposição. Em sentido rigoroso, detém-se na narrativa da pré-história, tal como esta é didaticamente concebida. Até aí, deve estar correto, mas o certo é que, com esse procedimento, não enfrenta o tema como é proposto no seminário que deseja a análise da narrativa como história e ficção (Idem, ibidem, p. 138 e 139. Grifos nossos).

            No entanto, o próprio autor defende-se, no Debate, afirmando que não tentou escapar ao tema do Colóquio. E, se deslocou seu texto para a Pré-História, ele o fez intencionalmente, pois é um longo e essencial período que − muitas vezes por puro preconceito histórico, zeloso somente pelo que há de registro escrito − acaba sendo menosprezado por estudiosos que só valorizam a cultura escriptocentrista e considerada oficial, justamente por ser hegemônica.
            É nessa perspectiva que se pode entender como o prestígio inicial do xamã e, mais tarde, dos poetas e dos profetas (herdeiros das práticas xamânicas) entrou em período de declínio, pelo menos no Ocidente. Já que o discurso controlado de uma sociedade sedentária, entrando em processo de originar a divisão de trabalho e as classes sociais, passa a restringir a atuação dos xamãs, dando prestígio somente às religiões oficiais do Estado, o que acaba sendo decidido pela classe governante e elitizada; já as religiões ligadas a práticas rituais consideradas “primitivas”, ou de possessão, são relegadas a plano inferior e discriminadas, como acontece comumente com o candomblé, a umbanda e (por que não?) com a pajelança.
O leitor de “No princípio era o ritmo...” põe-se diante de um texto instigante e, ainda, atual, pois levanta questões e discute ideias ainda em pauta na atualidade. E Sevcenko apresenta-se como estudioso de grande perspicácia e até mesmo ousadia, que não teme nem polêmica nem discordância, já que, nesse ponto, acaba-se tendo um alavancamento que gera avanço na área, pois propõe uma discussão séria, e não gratuita; por isso, capaz de distanciar as pesquisas e publicações do risco da mediocridade e da vaidade intelectual, tão nocivas estas aos estudos dentro da academia e, por ricochete, ao desenvolvimento do conhecimento científico.



[1] Doutorando em Letras – Estudos Literários, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará, professor da SEDUC/PA e SEMEC/Belém. E-mail: ay21a@yahoo.com.br.
[2] Vide BRASIL, Assis. Arte e origem. In: ____ . Dicionário do conhecimento estético. Rio de Janeiro: Ed. Tecnoprint, 1984.
[3] Vide BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Ruanet. 3. ed.  São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 197-221.











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