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sexta-feira, 3 de junho de 2016

Artigo científico de minha autoria

         Macunaíma: a obra fílmica e seu caráter parodístico em relação à obra literária

Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues (Universidade Federal do Pará)


Resumo: Este artigo compara dois corporaMacunaíma, herói sem nenhum caráter (1928), romance de Mário de Andrade, e o filme Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade –, considerando a relação entre ambos de forma não hierárquica. A película é uma paródia do romance-rapsódia, uma tradução intersemiótica, e não é uma obra menor que o livro, cuja linguagem híbrida permite incorporar valores de outras artes. Nesse caso, a música: o Tropicalismo – um movimento musical brasileiro dos anos de 1960, que inclusive muito influenciou o cinema do país. A ‘intertextualidade das diferenças’ é um conceito útil usado por nós nesta análise. O livro modernista e o filme tropicalista mantêm um diálogo harmônico, principalmente quando pintam com cores carnavalescas um Brasil de diversidades como percurso literário de Macunaíma, herói malandro, mas do povo, sem caráter por não ter caráter distintivo, não por ser um mau caráter. 

Palavras-chave: Macunaíma; paródia; Modernismo; Tropicalismo.

Abstract: This article compares two corpora – the novel Macunaíma, herói sem nenhum caráter (1928), by Mário de Andrade, and the movie Macunaíma (1969), by Joaquim Pedro de Andrade – considering between both a non-hierarchy of relations. The cinematographic work is a parody of the novel-rhapsody, an intersemiotic translation and not a work minor than book, whose hybrid language permits to incorporate values of others Arts. In this case, Music: Tropicalismo – a musical Brazilian 1960’s movement that influenced including the movies in the country. The ‘intertextuality of the differences’ is a practical concept used for us to this analysis. The modernist book and the tropicalist film keep a harmonic dialogue, principally when paint with merry-maker colors a Brazil of diversities as a literary course of Macunaima, a tricker hero, but a people hero, without characteristic trait, not an unprincipled.  

Keywords: Macunaíma; parody; Modernism; Tropicalism.

Introdução

                     Se não é mais possível compartimentações estanques ou delimitadoras entre as artes, no emaranhado de signos e códigos que precariamente nos representam, de há muito já se desfez o mito da fidelidade no processo da tradução, no processo de transmutação de uma linguagem para outra, de um código para outro. Celebramos, agora, a criatividade, a invenção. As transposições, as traduções, nas instâncias, são, antes de mais nada, processos de (re)criação, de adaptação, de (re)ajustes,em suma, de invenção plena. (Cardoso, Joel, 2008[1])

            O multifacetado intelectual e artista brasileiro Mário Raul de Morais Andrade (professor, ensaísta, crítico literário, músico e musicólogo, poeta, romancista, estudioso da cultura brasileira) nasceu em 1893, em São Paulo, e faleceu nessa cidade, em 1945. Exerceu cargos sempre ligados à área cultural, atuando também como colunista crítico de vários jornais. Porém, notabilizou-se mesmo como escritor, produzindo vasta obra literária e ensaística. Escreveu poesia: Há uma gota de sangue em cada poema (1917), Paulicéia desvairada (1922), Losango cáqui (1926), Clã do jabuti (1927), Remate de males (1930), Poesias (1941) e Lira paulistana seguida d’ O carro da miséria (1946); contos: Primeiro andar (1926), Belazarte (1934) e Contos novos (1946); romances: Amar, verbo intransitivo (1927), Macunaíma (1928); ensaios: A escrava que não é Isaura (1925), Música do Brasil (1941), O movimento modernista (1942) e O empalhador de passarinho (1944). Foi um ativo incentivador da Semana de Arte Moderna (1922), além de teórico da literatura e da cultura brasileiras. Na literatura, foi importante líder da primeira fase do Modernismo, ao lado de Oswald de Andrade. Pautou sua escrita pela busca de renovação da linguagem literária, pesquisando sempre por técnicas originais de invenção lexical, defendendo uma língua literária de tom mais coloquial e próxima da fala popular, assumindo um nacionalismo mais crítico, portanto. Um dos mais significativos escritores brasileiros do século XX.
Nasceu o cineasta brasileiro Joaquim Pedro de Andrade no Rio de Janeiro, em 1932, e faleceu em 1988. Cursou graduação em Física (1950-1955), mas acabou por mergulhar no cinema, a partir de 1957. Rodou filmes de natureza documentarista, assim como de natureza ficcional, entre curtas e longas metragens: O mendigo (1953), O mestre de apipucos e O poeta do castelo (ambos de 1959), Couro de gato (1960), Garrincha, alegria do povo (1962), O padre e a moça (1965), Cinema Novo (1965), Brasília, contradições de uma cidade nova (1967), Macunaíma (1969), Os inconfidentes (1972), Guerra conjugal (1975), Vereda tropical (1977) e o Homem do Pau-Brasil (1981), entre outros. É unânime entre os críticos que Macunaíma é a maior de suas obras, marcadas todas pela temática histórica e social, temperadas também pela faceta satírica de um dos mais relevantes cineastas brasileiros, que flutuou entre o Cinema-Novo, o Tropicalismo e mesmo a pornochanchada.
Em se tratando do âmago, do esqueleto (por assim dizer), das obras desses dois ilustres Andrades, o filme Macunaíma segue, em seu roteiro, apenas as linhas gerais do enredo do romance de Mário de Andrade. Além do mais, logicamente, o tempo histórico sofre alterações e é esse tempo que é ficcionalizado pelo longa-metragem, a década de 1960, uma nova musculatura que Joaquim Pedro de Andrade sobrepõe ao esqueleto, como se a película fosse um palimpsesto do livro, com todas as peculiaridades que a linguagem híbrida da obra cinematográfica carrega. Dito isso, podemos considerar, para efeito de estudo, que a sinopse apresentada na capa do DVD (2006, cópia restaurada) é bastante satisfatória para complementar o que vimos aqui discutindo:

Macunaíma, uma adaptação da rapsódia de Mário de Andrade, é a história de um anti-herói, ou “um herói sem nenhum caráter”, nascido no fundo da mata virgem. De preto vira branco, troca a mata pela cidade onde vive incríveis aventuras acompanhado de seus irmãos. Na cidade, segue um caminho zombeteiro, conhecendo e amando a guerrilheira Ci e enfrentando o vilão milionário, Venceslau Pietro Pietra, para reconquistar o amuleto que herdara de Ci, o muirakitã (sic). Vitorioso, Macunaíma torna à floresta carregado de eletrodomésticos, inúteis troféus da civilização. (Macunaíma, 2006, 1DVD)

            A passagem sugere o contexto da guerrilha urbana que se contrapôs ao regime militar instaurado em 1964 e radicalizado a partir de dezembro de 1968, quando da implantação do Ato Institucional nº. 5, o  funesto AI-5. Esse contexto vai presidir toda a ambientação escolhida por Joaquim Pedro de Andrade em sua transposição de uma obra da década de 1920 para a de 1960, uma realização das mais eficazes, no que diz respeito a esse diálogo bastante comum entre o cinema e a literatura brasileira, diálogo sem hierarquia, em que as duas artes saem ganhando, além de o processo de recepção das obras ser redimensionado e enriquecido.

1 Duplo corpus
                                                                    
Espero que as aventuras bem brasileiras de Macunaíma, herói de nossa gente, divirtam e dêem o que pensar pra vocês. (Joaquim Pedro de Andrade[2])

Na revista Língua portuguesa, nº 14 (2006, p. 32), há um curioso artigo um tanto em forma de trocadilho – “O caráter de Macunaíma no cinema” – com o subtítulo do livro de Mário de Andrade, publicado em 1928, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, obra classificada pelo autor como uma rapsódia [3]. O escritor já afirmara certa vez que “em verdade, sempre será conto  aquilo que seu autor batizou com o nome de conto” (apud GOTLIB, Nádia Battella, 1985, p.9), ele próprio, como se vê pela frase, avesso a classificações limitadoras, de caráter compartimental. Aproveitando tal deixa dada por Mário, queremos ressaltar o aspecto primordial metodológico deste nosso trabalho analítico, que aqui se quer comparativo, mas não exatamente naquele aspecto consagrado pelo rótulo de dicotômico. Aqui não se trata de considerar nosso duplo corpus de estudo – a obra literária Macunaíma (de 1928) e sua transposição homônima para o cinema (de 1969) – como par antagônico, mas sim, como par complementar.  

2 Cinema de caráter parodístico

            Considerando todos esses fatores, partimos da idéia de que Joaquim Pedro de Andrade (essa homonímia de sobrenomes teria sido ‘mera coincidência’?) produziu uma obra cinematográfica “mostrando”, segundo o artigo já mencionado, “que é possível ser fiel a um original sem necessariamente criar adaptação ao pé da letra” (p. 32-33). O livro, aqui tido como texto-base ou texto original, já recebe um título satírico, até paródico, por ser ‘sem nenhum caráter’, já que, de modo geral, todos querem um herói ‘mocinho’: corajoso, valente, gentil, bondoso – o estereótipo do herói romântico. Contudo, vemos que o filme, aqui tido como texto-produto, texto derivado ou originário, consegue fazer paródia de um texto já tido como parodístico, apresentando um certo ‘heroísmo da malandragem’, muito comum nas letras de samba de compositores cariocas, que exaltam a imagem dos que se dão bem na vida sem esforço, mas não pelo viés, lógico, da corrupção dos políticos, do latrocínio, do seqüestro, do tráfico de drogas, no máximo uma contravenção, tipo jogo do bicho, por exemplo.

3 Intertextualidade das diferenças

            Aqui é essencial entender a relação entre os dois textos (livro e filme) como intertextual, de diálogo intrínseco não-hierarquizado[4], ou seja, a literatura não é melhor que o cinema simplesmente pelo seu caráter de texto original – hipotexto, segundo Genette –, do qual deriva o texto originário – hipertexto, segundo o mesmo autor (GENETTE, 1982, apud KOCH, 2007, p. 119) –, cuja relevância e criatividade surgem do que se pode chamar de intertextualidade das diferenças (MAINGUENAU, apud KOCH, 2007, p. 63[5]), através de um processo de releitura paródica – uma espécie de transgressão, “traição” (conforme Bazin), no bom sentido – a partir de uma tradução intersemiótica (PLAZA, 2003, p. XI), ou seja, neste caso, de uma linguagem verbal para uma de natureza que se convencionou chamar de híbrida. 
            No romance (desculpem-nos: quisemos dizer ‘rapsódia’), a narrativa se inicia assim:

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de sei anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
– Ai! que preguiça!... (ANDRADE, Mário, 1984, p. 9)

O narrador, além de revelar ser o protagonista “preto retinto” e “uma criança feia”, não faz referência a outras características físicas do ‘herói’, como por exemplo, quando este nasceu (estatura, pesagem, etc.), nem ao modo como nasceu, se chorava naquele momento, ou quais as vestimentas da mãe ou dos irmãos, nem tampouco se refere a esse nascimento como um fato cômico, elementos esses observáveis em uma foto extraída do filme de Joaquim Pedro, mostrada logo a seguir (figura 1), o que caracteriza o texto fílmico, neste caso, como preenchedor lacunar de dados que, na linguagem verbal literária, por sua própria natureza, apresentam-se implícitos e, por causa disso, mais que plurissignificativos, só evocados mentalmente pelo horizonte interpretativo do leitor, este fruidor que, tanto na obra literária quanto na cinematográfica, não encontrará referência à paternidade de Macunaíma e de seus irmãos, Maanape, o mais velho, e Jiguê, o do meio, já que o herói é o caçula.
                              
                                              Fig. 1 (LÍNGUA PORTUGUESA, DEZ. 2006, p. 32)

          
Quem atente ao episódio inicial do filme, ao qual o recorte fotográfico alude, constata a natureza parodística da transposição cinematográfica. Por exemplo, ao trecho “Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera...”, corresponde uma cena em que a “indígena” grita estridentemente de tanta dor, já que está parindo um “bebê” de dimensões impensáveis para uma criança recém-nascida, apesar da pouquíssima estatura e corpulência de seu intérprete, o ator Grande Otelo (um adulto, portanto), que, expelido do ventre da genitora, que caminhava dentro de sua palhoça, cai de cabeça no chão (como se vê na foto), logo a chorar bastante, também de forma estridente. E o que faz a mãe, então? Apenas diz para Maanape e Jiguê (irmãos do herói), ao afastar-se da ‘criança’, indiferentemente: “– Pronto. Nasceu.” Daí segue este trecho de ‘conversa familiar’:

JIGUÊ – É hômi, mãe! Olha só a cara dele, mãe. Não é bonitinho?
MÂE – Oxente! Que menino feio, danado!
MACUNAÍMA (Chorando) – Uêêêê! Uáááá!
MAANAPE – A senhora também não é nenhuma beleza, não.
JIGUÊ – Chora não, irmãozinho. Chora não. Feiúra não é documento. (op. citat.)

Na apresentação de sua obra, restaurada em DVD, Joaquim Pedro de Andrade, entre outras informações que dá, sugere ‘pistas’ de seus objetivos, quando diz: “Espero que as aventuras bem brasileiras de Macunaíma, herói de nossa gente, divirtam e dêem o que pensar pra vocês”. Lembra até o princípio horaciano de unir o útil ao agradável (“utile” e “dulci”). Divertir pode parecer ser o mais óbvio, até mesmo na escrachada paródia, na fala acima, de Jiguê, do dito popular “Tamanho não é documento” (transformado em “Feiúra não é documento”). Mas, para além desse objetivo, atinge o de dar o que pensar ao reler a idéia marioandradiana de retrato da cultura popular como espécie de retrato da nação brasileira, emoldurada por uma certa indefinição, já prenunciada no subtítulo, pois ‘sem nenhum caráter’ não significa exatamente que o herói seja um mau-caráter, “[...] ele tem caráter de um pícaro, de um picareta, de um picarus brasiliensis”, conforme Kothe (1987, p. 48-9).

4 Faces modernista & tropicalista

            Mário de Andrade, assim como Oswald de Andrade, modernistas da primeira e dita heróica fase do Modernismo brasileiro, repensaram nosso paradigma cultural de forma crítica, em busca de realizar uma obra verdadeiramente nacional, encontrando em nossas raízes históricas e nas camadas populares uma direção para as metas estabelecidas por eles. Seus caminhos deveriam não sair da rota que levaria para a criação de uma literatura brasileira por excelência. Mas Joaquim Pedro de Andrade não realizou uma releitura parafrásica da obra modernista. Sua transposição, de caráter parodístico, como já se disse, tem facetas cinema-novistas e, principalmente, tropicalistas. Daí porque o autor adota uma postura bem-humorada, de crítica carnavalizada (SANT’ANNA, 1995, p. 94) [6], a partir de um tipo especial de caótica colagem de elementos em contraposição, díspares mesmo, além do uso crítico dos lugares-comuns, que dão a impressão de um cinema de linguagem experimental que interpreta a realidade do Brasil “[...] num estilo sensual, confuso e profuso” (id., 2004, p. 61-2). Segundo a revista Literatura vestibular 2007 (p. 6): “Filmado 40 anos após o livro ter sido escrito, conseguiu, além de relatar a história de Mário de Andrade, transmitir todos os valores culturais, sociais e políticos do fim da década de 60”.

4.1 O Pai do Mutum

            A figura 2, exibida em seguida, ‘pinça’ um flash que no romance-rapsódia ocorre no capítulo X-“Pauí-Pódole”:

De manhã teve parada na Mooca, ao meio-dia missa campal no Coração de Jesus, às dezessete corso e batalha de confetes na avenida Rangel Pestana e de noite, depois da passeata dos deputados e desocupados pela rua Quinze, iam queimar um fogo-de-artifício no Ipiranga. Então pra espairecer Macunaíma foi no parque ver os fogos”(ANDRADE,1984, p. 70).

Em dado momento, um homem sobe em uma estátua e tenta explicar para o herói o que é o Dia do Cruzeiro, apontando para a constelação do Cruzeiro do Sul. O personagem faz um discurso e é contestado por Macunaíma, que sobe na estátua, dizendo ser mentira tudo o que foi dito no discurso anterior ao dele e explica que as quatro estrelas ele “[...] sabia muito bem serem o Pai do Mutum morando no campo do céu” (ibid., p. 71). Em meio à história narrada, o herói emprega o já famoso dístico: “Pouca saúde e muita saúva, / Os males do Brasil são” (ibid., p. 72). Na seqüência: “Macunaíma parou fatigado. Então se ergueu do povaréu um murmurejo de felicidade [...]” (ibid., p. 73) e o “[...] o povo se retirou comovido, feliz no coração cheio de explicações [...]”, enquanto “Macunaíma parado em riba da estátua ficara sozinho ali” (ibid., loc. citat).
  

Fig. 2 (LÍNGUA PORTUGUESA, dez 2006, p. 33)




4.2 O discurso reacionário

         Entretanto, como se vê na foto da figura 2, na obra cinematográfica não só Macunaíma subiu na estátua, sobem também Jiguê e Maanape. As roupas de uso quase inverossímil pelo aspecto de mistura carnavalesca de cores berrantes dão o toque tropicalista, fato esse somado aos modos e posturas ‘matutos’ em plena metrópole (São Paulo), a fundir o moderno e o arcaico (RAMOS, 1987, p. 373[7]) de uma cultura híbrida como a brasileira. E não seria absurdo considerar esta cena como emblemática da representação das matrizes étnicas formadoras de nossa nação. É aí que Macunaíma contesta o discurso (reacionário) de um personagem anônimo, que diz:

– Em defesa das nossas propriedades e pequenas economias, em defesa da mortalidade (sic) de nossas crianças; Contra o perigo da penetração em nossa terra de ideologias utópicas (sic), espúrias... Contra o ateísmo ateu (sic), contra o desregramento dos costumes e improbabilidade (sic) administrativa, que no governo passado foram a desgraça do Brasil [...]” (op. citat.)

   E, por causa disso, o herói sofre com a acusação de “Subversivo!”, e tem de fugir, enganando com criatividade seus perseguidores desatinados.

4.3 O discurso do Herói e o AI-5

            Sabemos que no DVD, restaurado em 2006, esta cena aparece, mas havia sido censurada quando o filme foi lançado no mercado, junto com mais outras seis. Sabemos que foi concluído no início de 1969, quando o diretor também é preso, em decorrência da linha dura da censura que nasce com o AI-5, em 1968. Também pudera, Joaquim Pedro mostra da parte de um defensor do golpe militar de 1964 um discurso tão incoerente e desinformado (talvez fosse melhor dizer alienado e risível), pecando até pelos erros de impropriedade lexical [8], que é contestado pelo herói e seus irmãos. O caráter parodístico é evidenciado tanto por se falar do Cruzeiro que não se pode ver por ser de dia – segundo fala de Macunaíma – quanto pelo fato inusitado/ridículo de a estátua homenagear um “Pioneiro da ginástica pelo rádio”. É gritante o escárnio, ainda mais quando os irmãos expulsam a dupla de cima do ‘monumento’ e ocupam seu lugar, com o herói fazendo o seguinte discurso (aqui transcrito em síntese):

– Aquelas quatro estrelas lá em cima, que ninguém tá vendo mesmo porque agora é de dia, não têm nada a ver com o peixe. Agora, o importante é que as pragas do Brasil é bicho de café, lagarta rosada, futebol, mosquito pium, maruim, muriçoca, borrachudo, vareja e toda essa mosquitada...
E também muita vaca braba que tem por aí, porque a vaca mansa dá leite. A vaca braba dá se quiser... E mais tudo que tem de doença, como erisipla, sarampão, espinhela caída, constipação, maleita, dor de barriga, de dente, frieira, inchaço, amarelão...
E um gigante muito do mau caráter: Venceslau Pietro Pietra, que roubou meu muiraquitã. Gente: “Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são”. (op. citat.)

                Entre uma pausa e outra do discurso, o herói ouve palmas, palavras de elogio e vaias também. Por fim, quando termina o discurso, com o dístico em destaque acima, ouve gritos: “– Subversivo! Subversivo! Comunista!”, “ – Tem que tá na cadeia!” e “ – Chame a polícia aí...” Então, o trio foge em disparada. Percebe-se então nessa passagem referida a crítica ‘corrosiva’ do diretor, como se estivesse emitindo um libelo contra um governo golpista que, para se manter no poder, não permitia críticas feitas à falta de liberdade de expressão, em qualquer setor, inclusive no cinema, daí a maneira figurada de mostrar a faceta obtusa e burra de uma censura da “ditadura escancarada” – como diria mais tarde o jornalista Élio Gaspari –, que perseguia, prendia, torturava e até matava quem produzisse um discurso, para “eles”, ‘do contra’, mesmo de elaboração ingênua, com teor de conhecimento popular e de natureza não-ideológica, como é o caso do de Macunaíma, na película.

Conclusão

                   E só o papagaio no silêncio do Uraricoera preservava do esquecimento os casos e a fala desaparecida. Só o papagaio conservava no silêncio as frases e feitos do herói.
                     Tudo ele contou pro homem e depois abriu as asas no rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. (ANDRADE, op. citat., p. 135)

            No percurso do caminho de leitura entre uma narrativa literária e uma cinematográfica, podemos afirmar que o leitor/fruidor sempre ganha em dimensão de releitura das obras, não importa em que cronologia as percorre. A intersemiose é relevantíssima numa época cujas trocas intertextuais, tão freqüentes, irrompem de todas as direções, e não se caracterizam por serem centrífugas ou centrípetas em relação à literatura. Desde muito, essa interdiscursividade é prática bem comum entre as várias modalidades artísticas, apesar de ter se intensificado espetacularmente apenas no século XX, cujos anos finais proporcionaram a eclosão de um mundo midiático antes inimaginável, a possibilitar tal dialogismo sem precedentes. Por isso, ler o romance-rapsódia de Mário de Andrade em confronto com o filme de Joaquim Pedro de Andrade, a partir da perspectiva da intertextualidade das diferenças, sugere que o primeiro serviu de matéria-prima e realidade bruta (BETTON, 1987, p. 119) para uma reelaboração criativa nova, que teve por origem uma transposição paródica para uma outra contextualidade cultural (do Modernismo para o Cinema-novismo/Tropicalismo), o que permitiu um enriquecimento surpreendente do que Genette denominou de hipo/hipertextualidade.
            E, para finalmente concluir: pode parecer idéia simplista, todavia é sabido que tais adaptações de literatura para cinema “[...] fazem com que o espectador tenha vontade de ler os originais” (ibid., p. 119-20). E atualmente pode-se dizer que uma “[...] nova concepção de leitor e leitura exige uma postura metodológica interdisciplinar, uma interação efetiva das várias modalidades discursivas e a incorporação das novas tecnologias” (PALMA, 2004, p. 8-9). Também podemos afirmar que as artes (e as ciências também, certamente) não são pólos que se repelem; aproximam-se e atraem-se, pelo contrário, seja no ato fruidor ou pesquisador. Nessas permutas, o despertar da sensibilidade estética e seu aperfeiçoamento, assim como o redimensionamento da competência leitora, representam ganhos incalculáveis para o ensino e aprendizagem lato sensu. Para atingir esses ganhos, segundo a semioticista Lucia Santaella,

[...] o primeiro passo a ser dado é o de não dividir as linguagens em campos estanques, rígida ou asceticamente separados: a literatura e as formas narrativas numa gaveta, a pintura em outra; o cinema de um lado, a fotografia de outro; o vídeo aqui e a música lá... Ao contrário, quanto mais o tempo passa, mais me convenço de que é só nos currículos escolares que as linguagens estão separadas com nitidez. Na vida, a promiscuidade, ‘a mistura é o espírito’ dos signos. (1999, p. 14)

Então, se quisermos ousar nos processos de leitura, não devemos temer essa ‘promiscuidade’, pelo contrário, devemos nos apavorar contra a censura a esse tipo de leitura, contraposicionando-nos ao compartimental e reducional, que é tão temerosamente focalista. Leitura, de fato, só pode existir em face do ponto de vista interdiscursivo, intertextual e, mais que isso, intercontextual; portanto, holístico: a única e verdadeira leitura.  

REFERÊNCIAS

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BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2002.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Nova Cultural: Brasiliense, 1985.
BETTON, Gerard. “Teatro e cinema. Literatura e cinema”. In: _____. Estética do cinema. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins fontes, 1987. p. 107-120
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FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto de. Língua e literatura. 14. ed. São Paulo, SP: Ática, 1994. v. 3.
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GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 2 ed. São Paulo: Ática, 1985.
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KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 9 ed. São Paulo: Contexto, 2007.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça; BENTES, Anna Christina; CAVALCANTE, Mônica Magalhães.  Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2007.
KOTHE, Flávio R. O herói. 2. ed. São Paulo, SP: Ática, 1987.
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MARQUES, Amadeu & DRAPER, Draper. Dicionário inglês/português-português/inglês. 22. ed. São Paulo:Ática, 2000.
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Referências eletrônicas:

www.abralic.org.br/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/067/JOEL_SILVA.pdf -. Acesso em: 15 abr. 2009.





[1] Ver referências: Anais da ABRALIC, 2008.           
[2] Cf. início do filme em DVD.
[3] Segundo FARACO & MOURA (1984, p. 86), Mário de Andrade usa essa palavra para designar “[...] superposição de elementos aproveitados de cantos tradicionais ou populares, [...] uma colagem de diversos componentes da cultura popular brasileira, reunidos em torno da personagem central”.
[4] Conferir em < http://fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/C/correspondencia_artes.htm>. Acesso em: 22 out. 2007.
[5] Pesquisar nessa página “valor de subversão”.
[6] Cf. nessa página a “Teoria da carnavalização”.
[7] Curiosa é a idéia relacionada a traços de brasilidade a partir de “quadros alegóricos”.
[8] Vide a quantidade de Sic no parágrafo anterior.

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